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Os posicionamentos dos autores que discutem, na atualidade, o conceito de gênero são diversos e impossíveis de serem abarcados neste capítulo. Deste modo, nossa intenção é levantar algumas questões que parecem significativas para uma problematização do conceito de gênero e da categoria mulher, visto que nossa pesquisa utiliza a categoria analítica de gênero a fim de elaborar um estudo sobre duas artistas mulheres. Nosso intuito é ainda, a partir dessa discussão dos sentidos de gênero e mulher, problematizar as relações existentes entre arte e gênero, tendo como pressuposto que a categoria mulher é um constructo social não universal e que possui particularidades e especificidades como raça8, classe social e lugar.

O pensamento feminista9 não possui um todo unificado, por isso, devemos

compreendê-lo no plural. Entretanto, há dentro dessa diversidade alguns compartilhamentos que passaram a ser desenvolvidos no final da década de 1960. Em se tratando de questões políticas, por exemplo, as diversas vertentes feministas consideram que haja uma subordinação nos lugares ocupados pelas mulheres em relação aos homens. Esta subordinação feminina é inteligida de acordo com as especificidades históricas e sociais. Apesar disto, ela é pensada universalmente, visto que parece ocorrer na maioria dos períodos históricos conhecidos (PISCITELLI, 2001).

O conceito de gênero é um produto do pensamento feminista e resultado de questionamentos a respeito das causas da opressão da mulher. Ele passou a ser

8 “Atualmente, o conceito de raça quando aplicado a humanidade causa inúmeras polêmicas, porque a área biológica

comprovou que as diferenças genéticas entre os seres humanos são mínimas, por isso não se admite mais que a humanidade é constituída por raças. No entanto na década de 1970, o Movimento Negro Unificado e os teóricos que defendiam a causa, ressignificaram o conceito de raça como uma construção social forjada nas tensas relações entre brancos, negros e indígenas. Muitas vezes simulados como harmoniosos, não tinha relação com o conceito biológico de raça cunhado no século XIX, e que hoje está superado. O termo raça usado nesse contexto, tem uma conotação política e é utilizado com freqüência nas relações sociais brasileiras, para informar como determinadas

características físicas, como cor da pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam, interferem e até mesmo determina o destino e o lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira” (TERUYA, 2008, p.4). Portanto, é dentro desse sentido que utilizaremos o conceito de raça em nossa pesquisa.

9 É importante ressaltarmos que não é possível pensarmos no feminismo como um movimento único nem no Brasil e

nem nos demais países onde ele aparece. Ao contrário, o feminismo é múltiplo, por isso deve ser pensado no plural. No caso do feminismo brasileiro vale a pena ver TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no

Brasil. São Paulo, Editora Brasiliense, 1999; e PINTO, Célia Regina Jardim. Uma História do feminismo no Brasil.

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construído pelas feministas como uma forma de resistência à opressão patriarcal. Ao elaborarem esse conceito, as feministas passaram a associar suas antigas preocupações políticas a “uma melhor compreensão da maneira como o gênero opera em todas as sociedades, o que exige pensar de maneira mais complexa o poder”. Essas perspectivas feministas iniciais do gênero sustentam um interesse fundamental na posição da mulher, todavia, não excluem de suas análises possibilidades além das mulheres (PISCITELLI, 2001, p.11).

Dentro desta perspectiva, Joan Scott, em seu artigo Gênero uma categoria útil para análise, de 1995, escreve que as feministas americanas, mais recentemente, foram as primeiras a utilizarem “gênero” para defender que as diferenças baseadas no sexo são, estritamente, de caráter social. O uso da palavra feito por elas negava qualquer referência a um determinismo biológico no uso de alguns termos, como, por exemplo, o de “diferença sexual” e de “sexo”. O gênero também evidenciava as relações existentes nas “definições normativas das feminilidades”. As feministas que consideravam a produção de estudos femininos focada unicamente nas mulheres, de forma excludente, passaram a utilizar a categoria “gênero” para introduzir uma noção relacional no vocabulário analítico. Assim, a compreensão tanto das mulheres quanto dos homens não poderia ser dada de forma separada, isto é, eram definidos em termos recíprocos.

Além disso, Scott (1995) destaca o fato de algumas estudiosas defenderem a utilização do termo “gênero”, na crença de que os estudos a respeito das mulheres mudariam radicalmente os padrões no interior de cada disciplina. A inclusão das mulheres da história passaria, assim, não apenas a escrever uma história das mulheres, mas, principalmente, uma nova história. O cerne da discussão seria a forma utilizada por essa nova história para incluir a vivência das mulheres. Isto é, esta nova história estaria sujeita a maneira como o gênero seria desenvolvido como uma categoria de análise. Neste caso, as questões de raça e classe eram evidenciadas e admitidas também por aquelas pesquisadoras que possuíam uma visão política mais generalizada.

Scott (1995) considera fundamental abandonar os aspectos permanentes da oposição binária, historicizar as categorias e desconstruir os termos que fundamentam

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as diferenças sexuais. A parte fundamental da definição de gênero para essa autora baseia-se no entrelaçamento entre duas proposições: a de que esse conceito é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e a de que ele é uma forma primeira de significar as relações de poder.

Teresa de Lauretis (1994) também é uma estudiosa que faz uma crítica ao uso do termo gênero ligado à “diferença sexual”. Para a autora, o binarismo – feminino e masculino, homem e mulher – corrobora com os discursos sociais dominantes sejam eles médicos, biológicos, filosóficos, através de uma tendência de reproduzir-se e retextualizar-se nas escritas das próprias feministas. Dar ênfase ao sexual é uma forma de comprometer a própria crítica feminista e inviabilizar a diferenciação existente entre as próprias mulheres.

Lauretis (1994) sustenta que o gênero pode ser inteligido a partir do que Foucault escreve em seu livro A história da sexualidade. A visão teórica foucaultiana enxerga a sexualidade como uma “tecnologia sexual” e não como uma propriedade dos corpos, pelo contrário, ela é compreendida como uma combinação variada de efeitos produzidos nas relações sociais, comportamentos e corpos. Para Foucault, de acordo com Lauretis, nem sexualidade nem sexo seriam verdades essenciais, mas apenas construções históricas. Tratar o histórico como natural sempre é estratégia do poder. Baseada nisto, Lauretis propõe pensarmos o gênero como representação e autorrepresentação produzidos por discursos e distintas tecnologias sociais, epistemologias e críticas institucionalizadas e não institucionalizadas. Apesar da autora falar em “tecnologia do gênero” apropriando-se de alguns pontos da teoria foucaultiana, ela deixa claro que está indo além da compreensão de Foucault, cuja crítica à tecnologia sexual não levou em consideração o gênero, embora não tenha o inviabilizado.

Como mencionamos no início do texto, inúmeras são as visões teóricas de autores que, atualmente, discutem as questões de gênero e, apesar de não constituírem um todo unificado, “coincidem nos esforços por eliminar qualquer naturalização na conceitualização da diferença sexual, pensando em gênero de maneira não identitária” (PISCITELLI, 2001, p.16). Dentro deste contexto, acreditamos que o pensamento de Judith Butler se destaca. Para nossa pesquisa, especificamente,

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alguns de seus questionamentos e conceitos, juntamente com as ideias das já citadas Lauretis (1994) e Scott (1995), servem de base para repensarmos a categoria “mulher” com a qual trabalharemos.

De acordo com Butler (2003), em seu livro Problemas de gênero: feminismo e subversão das identidades, publicado originalmente em 1990, a teoria feminista tem presumido que haja uma identidade definida, entendida através da categoria “mulheres” e isso destrói os objetivos do próprio feminismo no interior de seu discurso. A autora concorda que uma política de visibilidade proposta no uso da categoria “mulheres” é importante, tendo em vista a má representação ou não representação das mulheres e, por outro lado, diz que a função normativa da linguagem pode estabelecer um sujeito tido como único e verdadeiro a respeito das “mulheres”. Butler sustenta que ao estabelecer uma coerência e unidade na categoria “mulheres”, as primeiras feministas recusaram a pluralidade de cruzamentos culturais, sociais e políticos que constroem a categoria “mulheres”. Então, mais recentemente, segundo Butler, dentro do discurso feminista alguns questionamentos começaram a surgir. Deste modo, “o próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis ou permanentes” (BUTLER, 2003, p.18).

Em um artigo mais recente, publicado em 1998, Butler escreve que as categorias de identidade não são apenas descritivas, mas sempre normativas e, consequentemente, exclusivistas. Apesar disso, sustenta que a questão não é deixar de utilizar a categoria “mulher”, mas sim usar o termo como um lugar permanentemente aberto a ressignificações. “Desconstruir o sujeito do feminismo não é, portanto, censurar sua utilização, mas, ao contrário, liberar o termo num futuro de múltiplas significações, emancipá-lo das ontologias maternais ou racistas às quais esteve restrito” (BUTLER, 1998, p.25).

A filósofa Marcia Tiburi (2013) comenta que o feminismo de Butler deve ser entendido como uma defesa de todos os tipos de desmontagens de gênero que oprimem características particulares de cada ser humano que não se enquadra dentro daquilo que é tido como o “padrão”. Neste sentido, além de preocupar-se com as mulheres, Butler defende todos aqueles que não se adequam nos discursos que dizem basear-se na “natureza” dos corpos. Butler acredita que os corpos possuem

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potencialidades maiores do que a das teóricas ontológicas clássicas que se pautam apenas em uma ideia de natureza masculina ou feminina. Para Tiburi, o pensamento de Butler transcende a questão da sexualidade e apresenta uma nova via de reflexões a respeito do lugar de todos aqueles que estão fora do padrão homem, branco europeu, como, por exemplo, os negros, os transexuais, judeus (TIBURI, 2013, p. 22 – 23). Segundo Butler:

O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser....o gênero mostra-se ser

performativo no interior do discurso herdado da metafísica da substância

– isto é, constituinte da identidade que supostamente é. Nesse sentido, o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um sujeito tido como preexistente à obra. No desafio de repensar as categorias do gênero fora da metafísica da substância, é mister considerar a relevância da afirmação de Nietzsche, em A genealogia da moral, de que “não há ‘ser’ por trás do fazer, do realizar e do tornar-se; o ‘fazedor’ é uma mera ficção acrescentada à obra – a obra é tudo”. Numa aplicação que o próprio Nietzsche não teria antecipado ou aprovado, nós afirmaríamos como corolário: não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias “expressões” tidas como seus resultados (BUTLER, 2003, p.48-58).

Dentro disto, a tentativa de Butler é a de desnaturalizar e desmistificar gênero e sexo. Diferentemente dos primeiros discursos feministas que diziam que o sexo é natural e o gênero é construído, para essa pensadora americana, ambos os termos são construídos: “talvez o sexo sempre tenha sido o gênero de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma. Assim, o discurso confunde-se com o próprio corpo na medida em que nele habita. Isto significa que para a luta feminista não seria plausível sustentar uma distinção entre gênero e sexo, ao contrário, respeitar os corpos cuja liberdade depende de serem livres do discurso que os constitui (TIBURI, 2013, p. 22-26).

Ainda na visão de Butler (2003), algumas tentativas estão sendo realizadas para criar políticas de coalizão. Nestas, a noção “mulheres” não tem um conteúdo pressuposto. Pelo contrário, elas propõem que mulheres com posicionamentos distintos “articulem identidades separadas na estrutura de uma coalizão emergente”. Apesar de

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não subestimar a potencialidade que essas políticas de coalizão podem ter, Butler destaca um aspecto preocupante que deve ser levado em conta. Os esforços para determinar e impor fronteiras entre o que é ou não o verdadeiro diálogo e quando a unidade foi ou não alcançada, podem impedir a dinamicidade da autoconstrução da coalizão (BUTLER, 2003, p. 35).

O pensamento de Linda Nicholson (2000) aproxima-se do de Butler e diferencia- se do feminismo da década de 70, na medida em que Nicholson propõe uma ideia de mulher livre de qualquer essencialismo, atenta às questões históricas e sem um sentido definido. A categoria “mulher”, para Nicholson, também não pode ser pressuposta, mas sim descoberta a partir de uma complexa rede de características que não podem ser universalizadas. Adriana Piscitelli (2001, p.20-21) afirma que, “nessa proposta, não se trata em pensar em “mulheres como tais”, ou “mulheres nas sociedades patriarcais”, mas em “mulheres em contextos específicos”. A categoria “mulher” proposta por Linda Nicholson, segundo a própria autora, permitiria reconhecer não apenas as diferenças entre mulheres, mas também as semelhanças, o que viabilizaria a prática política, visto que a mesma não exige um sentido definido para o termo mulher. Deste modo, se trataria, como já mencionado por Butler, e também defendido por Nicholson, de políticas de coalizão - “de políticas compostas por listas de reivindicações relativas às diferentes necessidades dos grupos que constituem, temporariamente, a coalização” (PICITELLI, 2001, p.21).

Portanto, o fato de usarmos desde o título do trabalho a categoria mulheres é um posicionamento político. É importante marcar que as artistas Odilla Mestriner e Marina Caram são mulheres, pois não acreditamos na existência de uma suposta neutralidade de gênero. Porém, é também importante mencionarmos que a nossa ideia de mulheres não pressupõe uma essência feminina, nem um sujeito único definido. Pelo contrário, a noção de mulheres que utilizaremos insere-se na categoria elaborada por feministas como Butler10 (2003), Nicholson (2000), Lauretis (1994), Scott (1995) que, apesar de

divergirem em alguns pontos, coincidem nos aspectos de historicizar o gênero. Ou seja, não há uma estética feminina, nem temáticas específicas elaboradas pelas mulheres, pois tanto homens quanto mulheres são categorias construídas, assim, as diferenças e

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semelhanças entre as produções artísticas existem entre quaisquer pessoas, independentemente do sexo, gênero, classe e raça.