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ARTE E POLÍTICA: prazeres e dificuldades do encontro

CAPÍTULO 1 PROCESSOS ARTÍSTICOS EM CO-LABOR-AÇÃO

1.1 ARTE E POLÍTICA: prazeres e dificuldades do encontro

Alguns trabalhos são grandes demais para que possamos dar conta deles sozinhos, ou simplesmente é mais divertido realizá-los com amigos. Qualquer que seja o caso, isto nos leva ao fértil e desafiador campo da colaboração. Quando trabalham juntos os artistas exploram o outro aspecto do poder dos limites. Existe uma outra personalidade e um outro estilo que precisam ser absorvidos e contidos. Cada colaborador traz para o trabalho um conjunto diferente de forças e resistência (NACHMANOVITCH, 1993, p. 92).

Animados com a possibilidade de investigar, questionar e experimentar maneiras de como viver-juntos, João Fiadeiro43 e Fernanda Eugênio44 desenvolveram, na cidade de Lisboa, o AND_LAB Centro de Investigação Artes-Pensamento & Políticas da Convivência. Lá, eles propuseram diversas residências artísticas, performances e trabalhos acadêmicos que tinham como objetivo o “encontro”.

Nossa ambição era ativar um lugar comum, ou seja, um lugar de “des- autorização”, onde noções dadas como adquiridas (“território” ou “autoria”, por exemplo) pudessem ser questionadas. Um lugar no qual pessoas de diferentes proveniências, graus de experiência e interesses se pudessem juntar de forma a se envolverem na discussão e na experimentação de noções transversais à arte, à vida e à política, tais como as de relação, acontecimento, decisão, auto-organização, comunidade, cooperação, colaboração etc. (FIADEIRO e EUGENIO, 2012, p. 63).

Em 2012, o sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett publicou seu livro Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação45. Nele, define em termos gerais que a cooperação se configura como trocas onde ambas as partes se beneficiam. O

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Pesquisador, dançarino e coreógrafo português. Foi coordenador do Atelier Real onde atualmente desenvolveu o projeto AND_Lab – Anthropology ´n‟ Dance – Artistic Research Scientific Creativity.

44 Doutora em Antropologia social pela UFRJ. Professora do Departamento de Sociologia da PUC/Rio e foi

colabora no projeto AND_Lab – Anthropology ´n‟ Dance – Artistic Research Scientific Creativity.

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66 autor também reconhece que tais trocas são condições da vida, uma vez que não poderíamos nos desenvolver como indivíduos no isolamento: “o apoio recíproco está nos genes de todos os animais sociais; eles cooperam para conseguir o que não podem alcançar sozinhos” (SENNETT, 2012, p. 15).

Para Sennett, a cooperação pode ser tanto formal quanto informal, por exemplo, quando “as pessoas que batem papo em uma esquina ou bebem em um bar estão fofocando ou jogando conversa fora sem pensarem de maneira autorreferencial: „Estou cooperando‟ esse ato vem envolto na experiência do prazer recíproco” (SENNETT, 2012, p. 16). Ou seja, uma simples ação como conversar revela a necessidade do encontro e da cooperação.

Esta concepção defendida por Sennett, remete ao conceito de Rede Líquida do Steven Johnson, que fundamenta uma parte da obra deCecília Salles (2008/2017) ao falar da criação como rede. Já falamos sobre isso, mas cabe retomar a partir de outro ponto de vista. SALLES (2017) narra uma história de Johnson ao se referir aos encontros entre cientistas em ambiente informais, onde se liquefaz a rigidez dos escritórios e das mesas de telescópios e provoca a emergência de boas ideias. Quando tratamos de processos artísticos em colaboração, há de se ter em mente a qualidade extensiva das relações que, como já dissemos, estão para além das salas de ensaio. Quero dizer com isso que, muitas das obras dos artistas se configuraram a partir de experiências em ambientes informais. A complexidade dos processos de criação engloba de maneira não hierárquica tanto ambientes formais como salas de ensaio, ateliês e escritórios quanto ambientes informais, mesas de bares, lanchonetes, rodas de amigos, festas etc. Esta questão parece ressoar entre os artistas e pode ser percebida na fala de Olga Lamas46 em entrevista sobre sua experiência junto ao Núcleo VAGAPARA.

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Figura 29: Olga Lamas. Foto: Selfie.

Flaviany Leite Lamas, responde pelo nome artístico-social Olga Lamas. É artista pesquisadora transdisciplinar {teatro, dança, performance e audiovisual}. Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA e Licenciada em Teatro pela mesma Universidade. http://lattes.cnpq.br/0486104272394570 (acesso em 14 de fevereiro de 2019).

67 Colaborações diretas e indiretas, porque é isso, nesse sentido quando você chama alguém para trabalhar com você ali, é um tipo de colaboração. Uma conversa informal é outro tipo, e também é, e essa informalidade acontece o tempo todo com a gente até hoje, estando os sete ou não estando os sete (Olga Lamas, 2018).

Quando falamos de processos colaborativos compreendemos as experiências que trazem em si o interesse pelo refinamento da política de cooperação, diferente das pessoas que estabelecem conversas informais sem um pensamento autorreferencial de estarem cooperando, um coletivo de artistas que escolhem construir espaços comuns para desenvolverem seus trabalhos. Inclui, nessa escolha, a consciência de estarem construindo ambientes de colaborações mútuas. Ou seja, é necessário o refinamento dos processos colaborativos com a consciência de estar cooperando sem, no entanto, perder de vista a relevância das interconexões da rede que se dão para além do coletivo.

Sob nossa perspectiva, tal refinamento coaduna com o projeto de Fiadeiro e Fernanda Eugênio quando se empenham em conviver e, a partir dessa convivência, compor (por junto) tendo como princípio a própria relação, que segundo eles trata do “encaixe situado entre possibilidades compossíveis que co-incidem” (FIADEIRO e EUGENIO, 2012, p. 68). O exercício da criação colaborativa provoca assim uma rede de relações, ou seja, tendências, percursos e acontecimentos específicos em cada processo de criação. Interessante perceber “de maneira mais genérica, que o que ganhamos com tipos mais exigentes de cooperação é a compreensão de nós mesmos” (SENNETT, 2012, p. 17).

Dito de outra maneira, a busca pela criação do comum e o desenvolvimento de redes de colaboração nos capacita a escolher o tipo de cooperação que desejamos e quais os termos das trocas. Em consequência disso, a liberdade passa a fazer parte da experiência de cooperação. Mas, não se trata de uma liberdade total e sim de uma liberdade que é sempre mediada por acordos circunstanciais. Aprofundaremos esta concepção acerca da liberdade mais à frente, quando formos tratar da autonomia-colaborativa.

Quando, também em 2012, João Fiadeiro e Fernanda Eugênio propuseram a conferência-performance Secalharidades, eles apresentam ao público a seguinte ideia:

O encontro é uma ferida. Uma ferida que, de maneira tão delicada quanto brutal, alarga o possível e o pensável, sinalizando outros mundos e outros modos para se viver juntos, ao mesmo tempo que subtrai passado e futuro com a sua emergência disruptiva (FIADEIRO e EUGENIO, 2012, p. 65).

68 Ao desenhar a imagem do encontro como ferida, estes artistas-pesquisadores nos provocam certa inversão na ideia sustentada pelo senso comum que pressupõe cooperação atrelada a ideais como consenso e harmonia. Ora, se o encontro é ferida, pressupõe dor, fissuras, desacomodações e certo desconforto. Nos rastros desse pensamento poderemos facilmente chegar a uma síntese de que a experiência da criação colaborativa nem sempre está pautada em interesses consonantes, pois que a ideia de encontro provoca de certo modo a necessidade do próprio dissenso.

A artista baiana Isaura Tupiniquim reflete sobre essa experiência de negociações e desacomodações que o processo junto ao Coletivo TeiaMUV lhe provocava:

Todas as questões, desde a compra de um arame, até as questões conceituais e poéticas dos trabalhos era discutida junto. Isso, às vezes era exaustivo porque ao mesmo tempo éramos todas, criadoras, pesquisadoras e produtoras. Era sempre um exercício de ceder e se implicar (Isaura Tupiniquim, 2018).

Observemos que tal pensamento vai de encontro àquelas perspectivas de homogeneização que imperam na sociedade moderna e assumem falas como “somos todos iguais”. O que propomos aqui é o desenvolvimento de autonomias-colaborativas:

Tal procedimento é corpóreo e opera constantemente estabelecendo trocas entre o ambiente/contexto e os corpos/sujeitos, ou seja, trata de uma relação que se configura sempre em processo, nunca fixa ou estática. O que parece interessante perceber é que a conexão entre esses processos é tão complexa que faz de nós, seres humanos, simultaneamente, autônomos e dependentes (ROCHA, 2013, p. 26).

A ideia é pensar que construímos ao longo de nossas vidas, certa taxa de liberdade que nos possibilita escolher o que fazer e como fazer. Digo construir porque autonomia não se dá, nem se recebe. Trata de uma construção que permeia aspectos individuais e coletivos. Sendo assim, toda possibilidade de escolha é sempre mediada por um contexto com arranjos e acordos específicos - dependemos dos outros para constituir o que somos. Mais adiante discutiremos melhor a ideia de autonomia-colaborativa.

Quando pensamos em um processo colaborativo que lida com diferentes pessoas e com objetivos comuns vamos além de uma relação de dependência e constituímos uma rede de codependências. Somos necessários em nossas distinções. Por isso, a necessidade de tornar a diferença e o dissenso potência e não algo que venha paralisar o desenvolvimento do processo. A busca por “um mundo no qual a diferença pudesse se propagar em uma

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assimetria infinitesimal, sem ser oferecida em sacrifício para que haja encontro, e no qual

tão pouco o encontro precisasse ser sacrificado para que houvesse simetria” (FIADEIRO e EUGENIO, 2012, p. 64).

É evidente também que, lidar com a diferença não é algo simples; muitas vezes pode gerar atritos e brigas e exige um exercício diário de escuta como afirma Lia Lordelo, ex- integrante do Dimenti:

As dificuldades, acredito, estão em acompanhar os ritmos de transformação por que passa cada artista, cada cabeça. Enquanto o grupo ganha força e notoriedade, essa trajetória se entrecruza com a de cada integrante individualmente, e é claro que isso produz atritos (Lia Lordelo, 2018).

Poderíamos pensar com RANCIÈRE47 (1996), ao desenvolver uma crítica sobre o discurso atualmente dominante que vincula a racionalidade política ao consenso e, por sua vez, o consenso à própria noção de democracia. Para ele, o dissenso não trata apenas de um conflito de pontos de vista pelo reconhecimento de verdades, mas um conflito necessário à própria constituição do mundo comum.

Escrever uma tese sobre processos colaborativos em Dança e Teatro é uma tarefa que nos coloca duplamente diante do dissenso. Primeiro, tratar dos modos como os artistas se relacionam em redes colaborativas é reconhecer que todo coletivo é feito de singularidades com perspectivas e ideias próprias, com defeitos e qualidades específicas. Ou seja, quando falamos de Núcleos, Grupos e Coletivos de artistas, não estamos nos referindo a uma massa uniforme e sem rosto, falamos de pessoas que compõem um ambiente comum de criação. Tal dificuldade se revela novamente no próprio ato de escrita. Mover-se em um emaranhado de ideias e de conceitos que tantas outras pessoas estudaram antes de nós. Tecer teias, provocar aproximações, suscitar conversas. Abrir o leque das divergências e das especificidades, por vezes contraditórias e em outras vezes complementares.

O dissenso não é a diferença dos sentimentos ou das maneiras de sentir que a política deveria respeitar. É a divisão no núcleo mesmo do mundo sensível que institui a política e sua racionalidade própria. [...] a racionalidade da política é a de um mundo comum instituído, tornado comum, pela própria divisão (RANCIÈRE, 1996, p. 368).

47 Jacques Rancière é um filósofo francês, professor da European Graduate School de Saas-Fee e professor

70 Ao tratar do conceito de política, RANCIÈRE (1996) contrapõe dois grandes modelos: a figura aristotélica do animal político e o modelo hobbesiano da luta de todos contra todos e do contrato que coloca fim a luta. Ambas firmam-se sobre uma ideia de que a política é a reunião de indivíduos ligados entre si, seja pela necessidade natural de sociabilidade ou pela superação da insociabilidade natural com o objetivo de assegurar sua conservação, Rancière defende que a racionalidade política não pode ser pensada a partir desses modelos.

A política não é em primeiro lugar a maneira como indivíduos e grupos em geral combinam seus interesses e seus sentimentos. É antes um modo de ser da comunidade que se opõe a outro modo de ser, um recorte do mundo sensível que se opõe a outro recorte do mundo sensível (RANCIÈRE, 1996, p. 368).

Movido por estes pensamentos, Rancière propõe a reformulação do conceito de política. Partindo do pressuposto de que as noções habitualmente reconhecidas identificam a palavra política ao conjunto dos processos pelos quais operam o cerceamento ou permissividade da sociedade, ou seja, a organização dos poderes e a gestão da população e dos lugares. Contrário a este pensamento, Rancière propõe dar, a este conjunto de processos, outro nome: polícia. Segundo ele, ampliando o sentido comum dessa noção, sem cunho pejorativo, mas considerando as funções de vigilância, repressão e distribuição dos corpos em comunidade.Sendo então reservada à palavra política o:

[...] conjunto das atividades que vêm perturbar a ordem da polícia pela inscrição de uma pressuposição que lhe é inteiramente heterogênea. Essa pressuposição é a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante. Essa igualdade, como vimos, não se inscreve diretamente na ordem social. Manifesta-se apenas pelo dissenso, no sentido mais originário do termo: uma perturbação do sensível, uma modificação singular do que é visível, dizível, contável (RANCIÈRE, 1996, p. 372).

Para não perdermos de vista a nossa discussão acerca do encontro e suas implicações nos processos artísticos colaborativos, é preciso reconhecer que ao reposicionar o dissenso como aspecto fundante da política e da própria constituição do comum, é necessário também colocarmos em questão a busca pelo consenso. Para Rancière, o consenso significa a supressão da política, uma vez que “o consenso não quer mais sujeitos divididos e divisores característicos da política. Em seu lugar, quer partes reais do corpo social, corpos e agrupamentos de corpos claramente enumeráveis, claramente constituídos em sua identidade” (RANCIÈRE, 1996, p. 379).

71 Sobre essa questão, BAUMAN (2003) ao tratar da formação de comunidades fala que o consenso é um acordo feito por pessoas com opiniões diferentes, um produto de negociações difíceis, com disputas e contrariedades, por vezes até brigas. Sendo assim, poderíamos pensar que o próprio consenso pressupõe certo dissenso? Talvez sim, uma vez que o consenso se dá como um acordo que emerge do ricochetear de ideias divergentes.

Questões como essa são apontadas enquanto aspecto importante de se levar em consideração quando tomamos o encontro enquanto princípio criativo em processos colaborativos. Ora, a constituição de toda coletividade em torno de um processo de criação pressupõe a diferença, não apenas pelo fato de se tratar de uma multiplicidade de pensamentos, mas pela divisão do próprio núcleo que constitui o comum.

Se há alguma razão no encontro, não é a das causas e a dos sensos, mas a razão – o ratio – das distâncias que o com-põe enquanto modulação distributiva de diferenças dinâmicas, autônomas porque co-dependentes. É este tipo de “razão” que aparece quando nos envolvemos na estimativa das variantes em jogo, no cálculo infinitesimal dos encaixes e das proporções suficientes (FIADEIRO e EUGÊNIO, 2012, p. 68).

Esta discussão transposta para um terreno das relações sociais também são reconhecidas por SALLES (2017) quando estabelece diálogos com Edgar Morin. Tal conversa entre os autores em seu livro, explica que toda sociedade humana funciona com muita desordem, aleatoriedades e conflitos. Conhecemos na história exemplos como o da Roma antiga, onde as brigas, lutas e conflitos causaram não só sua ascensão quanto a própria decadência. Sendo assim, podemos dizer que o conflito e a desordem são constituintes de toda existência social.

Na sequência deste pensamento, Fiadeiro e Eugênio propõem a necessidade de certo deslocamento de si em direção ao outro. Precisamos nos desprender de nós mesmos e questionar o que julgamos saber previamente, aceitar o encontro. Assim, eles falam sobre um re-existir a cada encontro e ser a consequência, não a causa da relação. Trata neste sentido de “deslocar para existir (eis o re-existir), empenho na manutenção e na propagação da abertura e do dissenso; recusa à concordância desejavelmente concluída do diálogo” (FIADEIRO e EUGÊNIO, 2012, p. 64). O que podemos compreender dessa fala? Recusar à concordância concluída do diálogo? Seria o mesmo que negar a possibilidade do diálogo e seus possíveis acordos? Tendo a pensar que não se trata disso, mas por outro lado, de negar o conforto e a estabilidade dos argumentos e acordos conclusivos em termos consensuais a fim de manter a abertura para a incerteza inerente ao próprio processo de estar em relação.

72 Entretanto, tal exercício não é tão simples quanto possa parecer, pois há uma tendência natural de todo sistema vivo em buscar a estabilidade, o conforto das ideias similares. Por isso, talvez, é tão comum percebermos que nos aproximamos de quem compartilha de ideias similares às nossas e nos distanciamos dos que divergem de maneira mais radical. Para lidar com a diferença e manter a fagulha acesa do desejo de coletividade, é necessário ocuparmo-nos de “distrairmo-nos suficientemente do Eu para ativar a atenção para o entorno e ao manusear não manipulativo dos encaixes possíveis, a calibragem fina entre persistir e desistir para então, re-existir” (FIADEIRO e EUGÊNIO, 2012, p. 65). Ao reconhecer a necessidade do empenho comprometido com o projeto de construir o comum, os artistas que se lançam no complexo mundo da criação colaborativa em terrenos artísticos, devem ser corresponsáveis pelas maneiras de viver-juntos e os resultados dessa convivência. Ao retornarmos ao que nos diz SENNETT (2012), em relação à cooperação em termos formais – quando temos consciência de que estamos cooperando e refinamos as possibilidades da construção do comum através do exercício da convivência, veremos que o autor nos alerta sobre a necessidade de uma atitude recíproca, ou seja o engajamento de ambas as partes a fim de realizar algo que não seria possível de ser feito sozinho. Na esteira desse pensamento, o autor também afirma a processualidade da vida e a necessidade dos acordos e dos termos da cooperação serem flexíveis, tendo em vista que tanto os sujeitos implícitos neste processo quanto o ambiente se encontram em constante transformação.

A necessidade de tal reciprocidade também é observada na fala de João Fiadeiro e de Fernanda Eugênio quando refletem que:

O encontro só é mesmo encontro quando a sua aparição acidental é percebida como oferta, aceite e retribuída. Dessa implicação recíproca emerge um meio, um ambiente mínimo cuja duração se irá, aos poucos, desenhando, marcando e inscrevendo como paisagem comum (FIADEIRO e EUGENIO, 2012, p. 65).

Isabela Silveira48 apresenta a reflexão sobre o exercício de estar junto decorrente do envolvimento com o Núcleo VAGAPARA e parece que ela percebe questões semelhantes a

73 FIADEIRO e EUGENIO (2012) ao comentar sobre as relações de trocas provenientes do encontro com o outro: “o VAGAPARA, é um grande ensinamento sobre como não se machucar na colaboração. Ou como ganhar também, não só doar, receber. Fazer trocas mais horizontais, ao invés de ser doação vertical” (Isabela Siveira, 2018).

Quando observamos as experiências de criação em colaboração o que parece interessar aos artistas envolvidos nessa malha complexa parece ir além da quase ingênua conversa na mesa de bar descrita por SENNETT (2012) que trouxemos anteriormente. Diante do comprometimento com o desenvolvimento de autonomias-colaborativas em processos de criação artística é necessário que estejamos dispostos a exercitar a escuta e a reciprocidade. Para tanto, é preciso atentar para a diferença entre conversas dialéticas e conversas dialógicas uma vez que:

A conversa é como um ensaio, que depende da capacidade de escuta. [...] Os procedimentos dialéticos e dialógicos facultam duas maneiras de praticar uma conversa, uns pelo jogo de contrários que leva a um acordo, outros pelo ricochetear de pontos de vista e experiências de forma aberta (SENNETT, 2012, p. 37).

Ao tratar de criação colaborativa, a segunda maneira parece fazer mais sentido, pois assume o dissenso de maneira positiva fazendo com que os conflitos e discussões não sejam submetidos ao desejo cego de provar nenhuma verdade. Tarefa um tanto difícil se partimos do ponto que:

A sociedade moderna está gerando outro tipo de caráter. É o tipo de pessoa empenhada em reduzir ansiedades provocadas pelas diferenças, sejam de natureza política, racial, religiosa, étnica ou erótica. O objetivo é evitar qualquer sobressalto, sentir-se o menos estimulado possível por diferenças profundas (SENNETT, 2012, p. 19).

E como superar a tentativa de homogeneização característica da sociedade de consumo no estágio atual do capitalismo, muitas vezes camuflada em perspectivas consensuais? Esta parece ser uma questão chave para aqueles que desejam investir em processos de criação colaborativa. Arriscamos dizer como FIADEIRO e EUGÊNIO (2012), que é preciso re- existir a cada momento.

Figura 30: Isabela Silveira. Foto: Clebel Silva.

Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas pela UFBA, Bacharel em Interpretação Teatral pela