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CAPÍTULO 2 PROCESSOS ARTÍSTICOS EM COLABORAÇÃO E RELAÇÕES DE

2.4 ENTRE NÓS 2

Ao final desse capítulo, que discorre sobre temas diversos, é preciso ter em mente que todas essas discussões trazidas aqui, confluem para tecermos um panorama complexo acerca das relações de poder na atualidade e suas implicações nos processos artísticos colaborativos.

No estágio atual do capitalismo que vivemos, é possível observar que o poder deixou de ser soberano e invadiu todas as esferas de atuação da vida se configurando como biopoder. Diluiu-se nas veias dos corpos capturando nossos desejos, sonhos, ideias, nossa criatividade e até nossa capacidade de produzir conhecimento. Simultaneamente, a vida age em contrapartida ao poder com uma potência incontrolável. O movimento que se instaura na tensão entre biopoder e biopotência move artistas em diferentes contextos a se encontrarem para, juntos, desenvolverem projetos democráticos de criação e gestão de grupo, bem como questionar as hegemonias e os modelos neoliberais que tendem a sufocar a democracia.

Como toda coletividade pressupõe diferenças, então a política que emerge no encontro dos artistas é pautada em uma perspectiva dissensual, o que descreve o conflito como fundamental ao desenvolvimento da racionalidade política e não como um obstáculo a ser superado. Em seus grupos, núcleos e coletivos, os artistas enfatizam princípios democráticos como soberania popular (a coletividade é quem decide em assembleias), igualdade política e de participação nas instâncias de poder (todos são corresponsáveis pelos acordos e pelas decisões). Desse modo, os artistas desenham uma proposta de democracia que é compreendida como possibilidade de exercício da autonomia coletiva. A correlação entre democracia e economia gera problemas que podem inviabilizar o projeto democrático e o sufocamento da autonomia coletiva, uma vez que a economia produz desigualdades, na medida em que a democracia almeja a igualdade política. O que NEGRI (2015) considera como biocapitalismo, revela que a própria vida e toda produção de subjetividade foram colocadas como mercadoria, de modo que não há como fugir, somos todos produtos e produtores desse sistema.

129 A crise da representação que se instaurou nos países democráticos no final do século XX, também é um dado relevante para esta pesquisa. Apontada por diversos autores das ciências políticas como algo que inibe o desenvolvimento da democracia, a representação configura uma proposta de democracia que alude à soberania popular, mas não permite ao povo a participação efetiva nos espaços deliberativos de exercício do poder público.

Em suas coletividades, muitos artistas vêm encontrando soluções provisórias para enfrentar e resistir as estruturas de dominação. Com formatos mais flexíveis, eles têm optado por não eleger um único líder, não se fechar em seus próprios grupos, estabelecer parcerias e colaborações com outros artistas, colocar suas ideias como proposições artísticas e políticas, além de se fazerem presentes, e não representados por outrem, nos espaços decisórios e de debate. Consideramos estes processos como resoluções temporárias e respostas circunstanciais dos artistas, ao contexto político e econômico atual no Brasil.

Entre pesquisadores e artistas que trabalham em colaboração, outras formulações também vêm sendo consideradas acerca da noção de autoria, dialogando com a perspectiva de sujeito pós-moderno. Ou seja, um sujeito constituído de identidades transitórias e fluidas, em contraponto à ideia que delimita o sujeito enquanto indivíduo fechado em si e possuidor de uma essência imutável. No terreno da autoria, esta questão se formula a partir da diluição do sujeito autoral - considerado o gênio criador - em direção a um autor que é entendido como organizador de discursos pré-existentes. Neste sentido, o novo - em termos autorais, se encontra no modo singular como são organizadas as informações que já existem no mundo. Um autor que em sua singularidade é plural, feito de encontros e trocas com os outros.

Assim, há uma transferência da noção de autoria do sujeito para a ação. Um gesto autoral que só se completa no encontro com o outro, um espectador que ao acessar a obra constrói sentidos, captura ideias e cria suas próprias relações. Ao criar e compartilhar sua obra, o artista propõe uma abertura de espaço para o encontro, sendo toda criação também cocriação, e toda autoria também coautoria. Constitui-se, assim, uma rede complexa de discursos que se contaminam entre si, provocando outras e outras e outras relações. Um movimento que não se estanca. Uma coautoria que se tece junto, em rede.

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SEGUNDO DESENHO DA PESQUISA

Figura 31 – Segundo desenho da pesquisa. Imagem autoral (Fevereiro/2018).

O reconhecimento de que não há pureza e nenhum sistema está isolado no mundo, me levou ao segundo desenho da pesquisa. Neste momento revelo outros encontros e trocas entre os integrantes do grupo com outros sujeitos, para além dos componentes do coletivo, que alimentam o próprio fazer da coletividade. Entretanto, ainda permanece a ilusão de uma membrana que delimita um único grupo e aponta outros encontros pontuais que não configuram coletividades.

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Terceiro nó da questão

Ao chegar neste momento nossa conversa dará uma nova guinada, sem perder de vista que estamos tratando - em diferentes direções, das relações de poder nos processos artísticos em colaboração. Cabe agora apresentar um panorama das políticas públicas no Brasil. Sendo assim, interessa observar a maneira como se configuram relações de poder entre os agentes culturais, o Estado, as empresas privadas e as instituições de fomento. Neste circuito instável de trocas e negociações se observa, muitas vezes, a omissão do Estado Brasileiro no que tange às políticas culturais. Em outros momentos o que se percebe é a ação do Estado com práticas de censura e de repressão e o investimento em produções e projetos culturais que se alinhem aos pensamentos do governo.

A instabilidade tanto econômica, em termos de investimento, quanto política, em termos de gestão e representatividade do Ministério da Cultura, também é outro problema que atinge os agentes culturais e o desenvolvimento de Políticas Públicas de Estado com temporalidades maiores do que os limites de cada governo.

O nó da questão fica ainda mais tenso quando adentramos na discussão acerca das “políticas de editais”, um problema evidenciado pelo fato de que o instrumento de distribuição de recursos que é o edital se traveste de política cultural. Esta prática gera projetos desenvolvidos em curto prazo e a não continuidade dos trabalhos dos agentes culturais, que ficam a mercê do edital abrir e dos seus projetos serem aprovados.

Por fim, chegaremos na discussão do que representam os editais de manutenção de grupos. As demandas observadas no contexto da produção cultural foram encaminhadas pelos agentes culturais ao Estado. Dentre essas demandas havia a crítica ao modelo de editais que permitia trabalhos temporários, mas não subsidiava de fato a continuidade dos trabalhos dos artistas e certa estabilidade financeira. Por este motivo, começaram a ser criados os Editais de Manutenção de Grupos Artísticos, que tinham por objetivo possibilitar a continuidade das ações de grupos. No entanto, esta pseudo-estabilidade esbarra nas burocracias, nos prazos de execução predelimitados e nas demandas de produção que acabam por minar a fluidez das relações nos núcleos e coletivos exigindo hierarquias e funções mais fixas.

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