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CAPÍTULO 1 PROCESSOS ARTÍSTICOS EM CO-LABOR-AÇÃO

1.4 ENTRE NÓS 1

Ao finalizarmos este capítulo, peço atenção do leitor para que possamos retomar algumas questões afim de deixá-las mais presentes para seguirmos nosso caminho sem perder de vista nossa busca por observar como vêm se configurando as relações de poder nos processos colaborativos de alguns artistas da Dança e do Teatro no Brasil.

Sendo o corpo um resultante provisório da troca de informações com o ambiente e com outros corpos, assumir o encontro e a colaboração nos grupos, núcleos e coletivos como potência54 criativa na produção artística significa uma resposta dos artistas a uma estrutura de poder que se configura de maneira menos hierárquica e centralizadora. O que gera a diluição da imagem do diretor/coreógrafo como figura que detém o poder de posicionar suas ideias e desejos, e a emergência dos intérpretes-criadores com mais autonomia e responsáveis politicamente pela sua participação no coletivo.

O processo de criação enquanto investigação de princípios e dispositivos que geram objetos estéticos não se organiza de forma linear e não configura ponto de origem ou resultado final. Trata de um gesto inacabado que tem rastros anteriores inclusive ao momento em que se julga ter tido uma ideia para a criação de um trabalho e não finda no momento da apresentação da obra.

Entretanto, é necessário atentar para o fato de que o trabalho do artista não se limita à sala de ensaio e ao momento da criação. Existe toda uma logística de pré e pós-produção que inclui estudar mecanismos de fomento, escrever projetos, montar equipe de produção e de divulgação, gerir financeiramente o projeto, prestar contas etc. Tais atividades demandam tempo, disposição e engajamento do artista, tanto quanto o processo da criação da obra.

A cooperação como parte do processo colaborativo aponta a necessidade de lidar com algumas questões como: o deslocamento de si para ouvir os desejos e as propostas do outro; pôr em dúvida verdades e pressupostos afim de viver o encontro e o que pode ser

54 Giorgio Agamben em seu livro A potência do pensamento, se pergunta: “O que significa: Eu posso?” Na

esteira dessa pergunta o autor nos leva a pensar sobre a potência a partir da definição de Aristóteles: “Como pode, então, uma sensação existir na ausência de sensação, existir uma aisthesis no estado de anestesia? Essas perguntas nos introduzem imediatamente no problema daquilo que Aristóteles chama de dynamis, potência (um termo ao convém recordar que significa tanto potência quanto possibilidade e que os dois significados nunca foram dissociados” (AGAMBEN, 2017, p. 245). Outra questão bastante relevante apontada por Agamben neste texto é o fato de que toda potência é impotência. Nestes termos impotência não significa ausência de potência, mas a potência de não passar ao ato: “a tese define, assim, a ambivalência específica de toda potência humana, que, em sua estrutura originária, mantém-se em relação com sua privação, é sempre - e em relação à mesma coisa - potência de ser e de não ser, de fazer e de não fazer” (AGAMBEN, 2017, p. 249).

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gerado no “entre” da relação; saber lidar com o dissenso como potência e fundamento político em contramão à ideia de consenso que gera a homogeneização e a padronização.

É no dissenso que reside a possibilidade do exercício de desenvolvimento das autonomias. Uma autonomia que se constrói em relação, mediada por acordos, restrições e possibilidades. O que se deseja fazer, o que se pode fazer, como é possível fazer e em qual contexto? Em uma coletividade, as opiniões são divergentes, conseguimos superar o ideal do consenso e aceitar os dissensos ao invés de impor acordos?

Em uma coletividade, com objetivos artísticos comuns, a relação entre o modo de fazer, ou seja, os acordos estabelecidos em processo, a metodologia da criação e as relações hierárquicas, tudo isso constitui a forma do trabalho artístico. Sendo assim, ética e estética estão coimplicadas e estabelecem uma relação de codependência. Isso se revela, por exemplo, quando percebemos que na estrutura de grupo do Dimenti que tinha um diretor fixo, a assinatura poética (traços singulares reconhecidos nas obras) do grupo era mais evidente. Em contramão, o Coletivo Couve-flor, por ter uma organização mais flexível onde cada artista desenvolvia projetos próprios e havia alternâncias nas funções se torna menos reconhecível essa assinatura comum, no entanto, é possível perceber que esta “forma” é resultado da própria descentralização do poder e do controle das proposições. Discutiremos, a seguir, de maneira mais cuidadosa essa questão das relações de poder nos processos colaborativos.

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Segundo nó da questão

Algumas teses desenvolvidas por Foucault nos movem a pensar: o poder não é uma unidade, nem é exercido por uma identidade única, tampouco é matéria que pertence a alguns e não a outros. O poder é plural, é relacional, se emaranha em redes dinâmicas que moldam a vida em níveis muitas vezes imperceptíveis. Trata de um dispositivo desenvolvido historicamente que toca a todos sem distinção, ninguém escapa. Tal perspectiva contrapõe a ideia de poder unificado pelo Estado e pela figura do Soberano.

No estágio atual do capitalismo ocidental que vivemos: a subjetividade, a imaginação, a criatividade, o desejo, a cooperação, tudo se tornou capital imaterial. Ou seja, mesmo o que considerávamos mais íntimo e inviolável - o corpo e a vida, foram capturados pelo poder (PELBART, 2003).

Alguns autores como Hardt e Negri vêm reconhecendo na multidão meios de escape da lógica neoliberal e possíveis respostas que deslocam o poder que se imprime sobre a vida. O encontro e a coletividade com características específicas que tensionam hierarquias e representações em ambientes de assembléias e discussões, muitas vezes dissensuais, mas preservando o direito de fala e voto de todos, são exemplos dessa potência da multidão. No campo da Dança e do Teatro, este tipo de estratégia que convoca à participação do coletivo é bastante comum. Seria possível então pensar que os grupos, núcleos e coletivos de artistas são linhas de fuga que burlam os meios pelos quais se exercem o poder ao experimentarem novas formas de cooperação?

Por outro lado, o próprio capitalismo se alimenta e produz formas de cooperação e capacidade de colaboração. Pois uma rede tão complexa quanto esta não daria conta de permanecer sem estabelecer zonas de trocas, contágios, contaminações e fluxos de informações. Sendo assim, como é possível produzir coletividades que rivalizem e desacomodem as redes de poder dominantes?

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