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OS ARTISTAS E A “POLÍTICA DE EDITAIS": submissão e subversão

CAPÍTULO 3 PROCESSOS ARTÍSTICOS EM COLABORAÇÃO E AS POLÍTICAS

3.2 OS ARTISTAS E A “POLÍTICA DE EDITAIS": submissão e subversão

O que seria um edital? Importante nos perguntarmos antes de prosseguir nessa conversa. O edital é uma ferramenta legal prevista no direito administrativo que se formula como ato escrito e se afirma como uma resolução oficial de interesse público. Nele, são dispostas determinações, regras, avisos e comunicados, em geral divulgados em plataformas públicas (Diário Oficial da União, dos estados ou dos municípios e sites oficiais) e/ou nos principais meios de comunicação da imprensa oficial.

Esta prática perpassa todas as esferas de funcionamento das políticas do Estado e surge como principal meio de democratização e fiscalização da distribuição da verba pública. Desde o início do mandato de Gilberto Gil, no Ministério da Cultura, durante o primeiro governo de Lula, o Estado, por meio de suas instituições de incentivo e desenvolvimento de políticas culturais, adotou o que vem sendo chamado pelos agentes culturais de “política de editais”, como forma de distribuição democrática dos recursos públicos. Entretanto é importante evidenciar que “os editais não são políticas públicas, mas sim instrumentos de realização dessas políticas” (MONTEIRO, 2014, p. 32-33).

Neste mecanismo de fomento, apesar de ao longo dos anos ter possibilitado efetivamente maior distribuição e democratização da verba pública, é possível reconhecer algumas limitações apresentadas. Principalmente, quando o que deveria servir como instrumento para financiar atividades culturais se torna, em muitos contextos, a única possibilidade de desenvolvimento do trabalho dos artistas. Fernanda Perniciotti80, pesquisadora da área do jornalismo cultural observa que:

Atualmente, as políticas culturais em todo o país, independente da área específica de atuação, respondem aos princípios dos editais e ao modo de compreensão da cultura a partir das leis de incentivo, mesmo quando não se tratam de renúncia fiscal. O edital funciona como um modo de compreensão da elaboração cultural, principalmente no que diz respeito ao

80 Graduada em Comunicação das Artes do Corpo na PUC/SP, onde concluiu o Mestrado. Atualmente está

146 tempo em que um projeto artístico pode ser pensado e financiado. A potente disseminação dos editais se transforma em uma mediação que, sem restrições se expande, independente do partido político ou perfil de governo do país, vide a sua vigência desde 1986 (PERNICIOTTI, 2015, p. 06-07).

Apesar dos editais serem praticados como forma de atuação dos governos desde os anos 80, a entrada do Governo Lula marca, principalmente, a redistribuição da verba pública. Neste momento, a FUNARTE retoma suas atividades após quase dez anos sem lançar nenhum edital. Então o governo começa a investir em editais específicos para os diferentes segmentos culturais inserindo, assim, no horizonte dos artistas, outras possibilidades de financiamento para seus projetos, além das leis de incentivo que contemplam, até hoje e majoritariamente, os artistas já consagrados nacional e internacionalmente e que possuem influência na opinião pública e nas práticas de consumo.

É interessante observar como este momento impacta na produção dos agentes culturais em todo o país: diversos grupos, núcleos e coletivos de artistas começam a emergir. Não é que antes esta prática de coletividade não existia, afinal sabemos que desde os registros do surgimento do teatro, na Grécia Antiga, haviam companhias e grupos de artistas organizados. Mas, interessa-nos perceber a grande proliferação desse modo de organização. Nas entrevistas realizadas, ao longo desta pesquisa, verificamos que praticamente todos os coletivos de artistas que integram o trabalho, exceto o Grupo Dimenti, falam sobre a experiência de terem surgido a partir de um edital que financiou algum projeto. E que, esses mesmos grupos, se mantiveram produzindo durante os anos que trabalharam juntos, basicamente via os editais. Ricardo Marinelli do coletivo Couve-flor, lembra que o primeiro edital dessa “geração Lula”, lançado pela FUNARTE, foi uma caravana de circulação de espetáculos. Naquele momento, os sete integrantes do coletivo tinham terminado sua temporada de estudos e investigações na Casa Hoffman e tinham, cada um deles, montado um solo. O Couve-flor se formou, oficialmente, ao ser comtemplado nesse edital da FUNARTE para circular com os solos de seus integrantes. Além disso, no decorrer da existência do Couve-flor, eles viveram praticamente dos editais, apesar de inúmeras investidas em tentar subverter essa lógica e produzir criativa e economicamente, que não foram bem sucedidas.

O Couve-flor se manteve quase que exclusivamente por editais. A gente passou os oito anos continuamente tentando achar estratégias pra levantar grana que não fosse desse jeito, mas nunca aconteceu de fato. Quase toda

147 semana essa discussão surgia. Vamos fazer festa, vamos fazer jantar, vamos conseguir um marchant, vamos fazer crowdfunding, vender rifa. Tentamos algumas dessas coisas, mas não era viável, e ficou menos viável ainda a partir do momento em que a gente resolveu administrar uma sede. Então cada um mandava os seus projetos e já reservava uma verba ali de manutenção do espaço, que nem sempre era suficiente, passamos um monte de perrengue, fizemos um monte de dívida, mas sempre que estava todo mundo quase desistindo de manter o espaço, aparecia alguma grana milagrosa pra manter mais uns meses (Gustavo Bittencourt, 2018).

Já no caso do TeiaMUV, elas observam que nunca trabalharam com empresas privadas e que, desde o começo do coletivo, os editais foram importantes para o desenvolvimento dos trabalhos do coletivo:

Nunca tivemos fomento de empresas privadas, mas desde o começo só trabalhávamos mediante um projeto aprovado em edital. Essa relação com editais determinava bastante nosso modo de operar, e era ao mesmo tempo o que viabilizava e o que coagia nossa produção, pois muitas vezes precisávamos apresentar as coisas num tempo que não era o desejado por nós, ou limitava algumas mudanças estratégicas ou criativas no trabalho, nos exigindo a constante justificativa de absolutamente tudo que fazíamos, mas hoje, não entendo mais isso como algo tão desagradável como entendia naquele tempo (Isaura Tupiniquim, 2018).

A observação de Isaura nos encaminha a pensar sobre esta contradição que a “editalização” provoca. Se, por um lado, investe-se na produção cultural, distribue-se recursos de maneira mais transparente e faz emergir grupos, núcleos e coletivos, por outro, cerceia as possibilidades do trabalho artístico de se desenvolverem livremente. No contexto da Bahia, os editais da SECULT, com recursos do Fundo de Cultura do Estado da Bahia estão atrelados à legislação da Lei de Licitações do Estado. Isso implica dizer que há um grande número de restrições como, por exemplo: não poder comprar comida, para contratar algum serviço de empresas devem-se apresentar três orçamentos e contratar o menor, não poder comprar materiais permanentes, entre outros impedimentos. Essas restrições, na prática, constrangem a própria criação, emoldurando dramaturgias e possibilidades de investigação.

Ainda sobre o TeiaMUV neste contexto na Bahia, quando houve o alinhamento político entre o Governo Federal, com Lula, e o Governo Estadual, com Jacques Wagner, ambos do PT, Isaura observa que:

O contexto, a meu ver, era muito favorável. Havia na Escola de Dança da UFBA, por onde todas nós passamos e nos conhecemos, um fervor criativo

148 e político muito grande, muitos grupos se formando e experimentando diferentes modos de criar, as políticas públicas para as artes tornando-se algo que podíamos alcançar e intervir. Foi o início da era Lula e havia um sentimento coletivo de esperança por melhoras significativas na vida das minorias, na cultura, na educação com a reforma universitária estimulando o encontro com as diferenças, o maior acesso a educação superior etc. Conjugando a efervescência criativa na universidade com a abertura de diversos editais estaduais e federais, foi possível, mobilizar o mercado ou a economia da arte. Contudo, havia crítica às formas de poder e de governo, havia crítica às formas de produção de subjetividade, de construção de corpos de cidade, enfim, havia uma sensação de que a arte estava agindo na micropolítica mesmo sendo estimulada e ao mesmo tempo cooptada pelo governo (Isaura Tupiniquim, 2018).

Importante reconhecer também que havia uma postura de abertura no governo Lula para que ocorresse a efetiva construção de políticas públicas e sua implementação e que foi decorrente da organização de movimentos sociais, principalmente compostos por artistas, gestores e demais agentes culturais. O movimento não foi unilateral. Houve uma mobilização nacional que foi crescendo e culminou com um governo cujo entendimento de Cultura foi sensível a tais vozes. Mas, sabemos que ainda há muito o que fazer e já temos pesquisas e dados significativos para avaliar a lógica da “editalização” e avançar nas propostas a serem desenvolvidas em futuros governos.

PERNICIOTTI (2015) ao discutir a questão da “editalização” na área da Cultura, observa que este modo de atuação se tornou cada vez mais recorrente em projetos como os das leis de incentivo, que configuram modos de privatização dos bens públicos, uma vez que, como já dito transferem o poder de decisão sobre os bens públicos para os setores de

marketing das empresas privadas. Sendo assim, “a renúncia fiscal exercida via editais

implantou um modelo de pseudopolítica cultural que acabou por reger todo um pensamento na cultura” (PERNICIOTTI, 2015, p. 05). Segundo a autora, esta prática escorre não apenas em projetos de empresas privadas que gerem a verba pública, mas também, nas empresas que usam financiamento próprio.

Outro problema gerado pelos editais é o fato de que, por serem um mecanismo jurídico, eles apresentam um vocabulário próprio da área e, portanto, pouco acessível à grande parte da população brasileira. Isso sem levar em consideração que, pelo próprio caráter de ser um ato escrito, o edital já exclui do seu campo de atuação, a parcela analfabeta ou semi-analfabeta da população, que infelizmente, em nosso país, ainda é uma realidade. Portanto, torna-se imprescindível observar que o edital, apesar de surgir como elemento democrático, é em si também excludente. Na área cultural, por exemplo, o modelo de

149 formulários de apresentação de projetos artísticos importou, na maior parte deles, a lógica de produção escrita de um projeto acadêmico que tem regras e vocabulários próprios. Ao fazer esta importação, os gestores culturais responsáveis pelas instituições de incentivo e apoio às produções culturais não promoveram as adaptações necessárias à área da cultura. Sendo assim, quando os editais começaram a se tornar o principal instrumento de fomento, quem dominava a técnica da escrita de projetos eram os artistas que estavam dentro dos centros acadêmicos. E o funil vai se fechando ainda mais, pois não trata de qualquer artista, nem de qualquer curso acadêmico, sabemos que a maior parte das graduações em Artes, no país, nem sempre preparam seus estudantes para escrever projetos. Em geral, essa atividade é desenvolvida nos trabalhos de conclusão de curso ou, posteriormente, quando os estudantes se interessam em ingressar em um curso de pós-graduação. É muito pouco.

Com esse panorama, uma parcela dos artistas que estava produzindo fora da academia, não conseguiu acessar, inicialmente, este modelo implantado pelos editais ou, se conseguiu, se associou à alguma Produtora cultural. Sendo assim, de certo modo a “editalização” provocou ou revelou um apartheid social. De um lado, os intelectuais e acadêmicos das

artes, do outro, os artistas que não entraram na universidade e os “marginalizados” socialmente (culturas populares, culturas indígenas, culturas afro-brasileiras etc.). Entretanto, a conduta democrática do governo Lula, através dos Colegiados Setoriais e das Conferências Nacionais de Cultura (CNC), foram ao longo dos oito anos desse governo, aprimorando este mecanismo junto à FUNARTE. Com o tempo, os projetos puderam ser submetidos gravados em áudio e não apenas escritos - esta ação tinha o objetivo de facilitar o público que tinha pouco domínio da escrita. Também foram abertos editais específicos para atender à Cultura Negra e Indígena, bem como editais que consideravam questões identitárias e de gênero.

Outra crítica, desenvolvida por PERNICIOTTI (2015), diz respeito ao modo como os editais estabilizam certos hábitos cognitivos nos artistas, determinando jeitos de compor projetos e obras. Para fundamentar este argumento, Perniciotti recorre aos estudos de Helena Katz e Christine Greiner, já trazidos por nós em capítulo anterior, que dizem respeito à Teoria Corpomídia: “com o tempo, a reprodução de algumas estruturas vai sendo especializada pelo corpo que, por sua vez, fica cada vez mais apto em transitar pelos caminhos já reconhecidos” (PERNICIOTTI, 2015, p. 08).

150 A rede de pré-disposições que vem propondo o processo de financiamento à cultura como um equivalente da política cultural se tornou um hábito cognitivo do corpo, que não é capaz de rejeitar as informações com as quais entra em contato, e, contaminado, passa a reproduzi-las. Como proposto anteriormente, o que se produz não está desassociado das condições de produção, e as manifestações artísticas têm sido testemunhas disso (PERNICIOTTI, 2015, p. 08-09).

Ou seja, se pensarmos como a autora propõe, poderemos compreender como as condições do meio são codeterminantes para a construção de hábitos cognitivos. Etimologicamente hábito, vem do latim habitus que significa condição, aparência, comportamento. A partir do século XIV a ideia de hábito começa a ser associada no senso comum com as “práticas costumeiras”, com a recorrência. Se observarmos bem, tanto a significação etimológica como a noção construída no senso comum, revelam-nos e coadunam com as pesquisas em ciências cognitivas sobre hábito como processo determinante na construção cognitiva dos seres humanos. A repetição tem um lugar bastante relevante na aprendizagem, pois o hábito se constrói com a recorrência de certos padrões. Entretanto, sabemos que tais repetições não se conformam como cópias, pois é característica do corpo não haver reproduções idênticas; a cada nova repetição, há taxas de permanências e de transformações. Cabe observar que na Teoria Corpomídia não se estabelecem hierarquias na coimplicação corpo-ambiente. Ambos se constroem mutuamente e em relações de contaminação.

Entretanto, cabe observar que algumas estruturas que configuram os contextos são bastante rígidas. Neste sentido, as imposições do meio ao corpo podem se dar de maneira pouco equilibrada, criando restrições significativas, como no caso dos editais. Observada sobre outro prisma epistemológico, em certa medida até contrária ao adotado por Perniciotti81, esta questão é debatida por Giltanei Amorim Paes82 em diálogos que perpassam pela sociedade disciplinar - delineada por Michel Foucault em Vigiar e Punir, e a sociedade de controle - defendida por Edson Passetti em Anarquismos e Sociedade de

Controle. Importante compreender que na perspectiva de Giltanei, não se trata de uma

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Na Teoria corpomídia com a qual Perniciotti dialoga, não há hierarquias entre corpo-ambiente, eles coevoluem em processos de contaminação; sendo assim, a estrutura dos editais e os artistas estabelecem redes de codeterminações onde um está modificando o outro mutuamente e initerruptamente. Por outro lado, na perspectiva da sociedade de controle, o poder do capital envolve o corpo de modo a cooptá-lo a trabalhar alimentando o próprio sistema capitalista, neste caso o corpo/artista fica aparentemente sem chance de subverter a ordem do capital, pois até as subversões são fruto dessa cooptação.

82 É criador de dança, produtor e curador. Possui licenciatura em dança pela Universidade Federal da Bahia e é

mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA - http://lattes.cnpq.br/5049517194134588 (acesso em 23 de fevereiro de 2019).

151 transição da sociedade disciplinar para a do controle, estes dois paradigmas coexistem “de modo correlacionado, que por horas chocam-se, compactuam-se, complementam-se e organizam uma sociedade que conserva e reconfigura parâmetros controladores” (PAES, 2015, p. 12).

O argumento desenvolvido por Giltanei passa, principalmente, pelos modos de produção e os mecanismos de poder, vinculados ao capital financeiro. Ele observa que o entendimento de produtividade na sociedade do controle se difere do da sociedade disciplinar, na medida em que, na disciplinar se deseja adestrar o corpo de modo que ele reproduza padrões predeterminados. Há, neste caso, a evidência de uma dicotomia que prioriza o saber manual em detrimento do intelectual, separando-os cognitivamente, enquanto que, na sociedade do controle, o que se busca é controlar a potência inventiva e criadora. Assim mantém-se a dualidade: “o saber manual não é descartado, apenas é controlado” (PAES, 2015, p. 46).

Ao contextualizar esse argumento no campo da Dança, Giltanei tece uma crítica aos editais que remonta àquela ideia trazida anteriormente de que os editais são excludentes e provocam uma separação entre os acadêmicos e os artistas que estão produzindo fora das universidades. Para ele, as relações entre os fazedores da Dança e o Estado seguem os mesmos protocolos da produtividade da sociedade do controle. Em cada novo edital aberto, inúmeras propostas são inscritas e um pequeno grupo é selecionado, diante da quantidade de propostas não aprovadas ou de processos de criação que se desenvolvem sem apoio institucional. Os selecionados validam um discurso bem elaborado e compreendido nos termos exigidos pelo edital, “em outras palavras, os agentes da dança que operam sobre a lógica da produtividade intelectual parecem ter mais oportunidades de se relacionarem com os mecanismos de fomento do Estado do que aqueles agentes que estão „limitados‟ ao trabalho manual” (PAES, 2015, p. 46).

Instaurados como dispositivos de exames, os mecanismos de fomento, com seus formulários de apresentação de propostas culturais elaborados para serem utilizados pelos agentes intelectualmente habilidosos, instauram, nas relações entre os agentes da dança, as noções de meritocracia e competitividade. São merecedores dos financiamentos aqueles considerados retoricamente legíveis; aqueles que, julgados sob os novos parâmetros da produtividade intelectual da sociedade de controle, são considerados produtivos. Diante da nova ordem da intelectualidade como parâmetro de meritocracia, a competição se torna acirrada. O outro já não é visto, apenas, como possibilidade de associação criativa, mas também, como possível ameaça ou como possibilidade de alianças que viabilizem a apropriação e/ou manutenção de poderes no centro dos mecanismos de

152 financiamento estatais. E os que conseguem estar no centro do poder, no centro da legitimação do que é considerado ideal produtivo, acabam por se tornarem os exemplos a serem seguidos por aqueles que se encontram na margem. Noções de melhor e pior proliferam-se no campo da dança (PAES, 2015, p. 48).

É neste momento da discussão que Giltanei coloca em dúvida o nosso próprio argumento desenhado no capítulo anterior, quando apontamos o encontro como um contra- dispositivo capaz de impulsionar os artistas em seus grupos, núcleos e coletivos a transgredir as normas neoliberais, apontando para outros modos de associação e de produção. Para Giltanei, a rede tecida pelo capitalismo na atualidade entrelaça cooperação e competição. Encontramo-nos e cooperamos para sermos mais fortes e competir com os outros. Ou seja, talvez o próprio encontro seja provocado pelos poderes controladores que nos fazem acreditar que estamos cooperando porque queremos e não porque somos levados a isso. Essa perspectiva parece chegar a um lugar bastante fatalista. Somos todos cooptados pelo regime capitalista e todo movimento feito é sempre um modo de consolidar as estruturas já postas e gerar mais renda e mais competitividade.

É interessante que o argumento de Giltanei parta de Foucault para chegar nesse lugar, uma vez que o próprio Foucault sugere, ao tratar da biopolítica, uma saída que posteriormente foi desenvolvida por Giorgio Agamben, Antônio Negri e Michael Hardt, e que nos parece mais conveniente. Se sobre a vida age o biopoder (poder sobre a vida), irremediavelmente sobre esse poder age uma potência de vida indomável (biopotência). E, no encontro, na multidão, segundo NEGRI e HARDT (2005), é possível acessar a biopotência da multidão. Uma força contraria ao que está posto pelos poderes que se manifesta pela própria necessidade de se manter vivo. Como uma fita de fita de möebius: um lado é o avesso do outro.

153 Figura 32: Fita de möebius. Ilustração autoral (09/12/2018).

Porém, tentaremos remontar o que tangencia uma possível conversa entre as questões trazidas por Pernicciotti que fala sobre os hábitos cognitivos produzidos pelos editais nos corpos dos artistas e as ideias propostas por Giltanei, quando ele observa explicitamente as relações de controle na temporalidade prevista pelos editais: tempo marcado para elaboração do projeto, tempo marcado para a execução e tempo marcado para a prestação de contas. Restrições como estas não levam em consideração a temporalidade do próprio processo de criação, que não obedece a uma cronologia preestabelecida, mas que necessita de tempo de maturação e investigação, tempo para depurar as informações. Esse tempo é variável e