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INSTABILIDADE, ESTABILIDADE, INSTABILIDADE: as estruturas

CAPÍTULO 3 PROCESSOS ARTÍSTICOS EM COLABORAÇÃO E AS POLÍTICAS

3.3 INSTABILIDADE, ESTABILIDADE, INSTABILIDADE: as estruturas

Caminhando para a parte final desta tese, convido o leitor a retomar o assunto dos sistemas complexos. Tecemos, no decorrer destas páginas um panorama amplo, subscrito em uma rede de conexões que fala sobre os modos de produção dos artistas da Dança e do Teatro no Brasil atual. Reconhecemos pontos de tensão nessa rede que se apresentam como

nós que provocam crises. A crise desestabiliza o sistema, provoca a necessidade de rever

hábitos já construídos e estabelecer novos acordos.

Na medida em que o sistema ganha complexidade, ele aumenta sua capacidade de relação e de troca com outros sistemas bem como tolera mais a desorganização. Esse movimento não é nada propício. Pelo contrário, é tenso, bifurcado com arestas. Se por um lado a dinâmica de troca e de contaminação entre sistemas distintos provoca crise e tensão, por outro, como já foi dito, o sistema tende a criar hábitos e buscar o equilíbrio. Mas o equilíbrio para o sistema significa sua morte, significa parar de trocar. Compreender a complexidade significa assumir o desequilíbrio, a desordem e a instabilidade. MORIN (2011) fala que o universo inteiro é mistura de ordem, desordem e organização. Não podemos eliminar do universo o acaso, a dúvida, o imponderável.

A ordem para Edgar Morin é a repetição, a recorrência, a constância. Tudo que pode ser previsto com certa exatidão. Já a desordem é a irregularidade, a inconstância, o desvio, o acaso. Se no mundo só houvesse ordem, não haveria inovação, nem criação. Mas se só houvesse desordem não seria possível a existência, pois não teria nenhum ponto de estabilidade onde fosse emergir uma organização: “pode-se dizer, grosso modo, que quanto mais complexa uma organização, mais ela tolera a desordem. Isso lhe dá vitalidade, pois os indivíduos estão aptos a tomar iniciativa para resolver tal ou tal problema sem ter de passar pela hierarquia central” (MORIN, 2011, p. 93).

Em termos evolutivos é possível perceber que tal processo não é linear. O movimento é de avanços e retrocessos. Isso se observa, também, na história das sociedades; não se caminha apenas para frente e com certezas. A complexidade coincide com a incerteza, com a contradição e com o acaso. Morin fala sobre o princípio da black-box - reconhecer o objeto de modo à contorná-lo, pô-lo entre parênteses. A partir da análise das entradas do sistema (input) e das saídas do sistema (output) busca estudar os resultados do funcionamento do sistema sem, no entanto, adentrar no mistério da caixa preta, “ora, o problema teórico da complexidade é o da possibilidade de entrar nas caixas-pretas” (MORIN, 2011, p. 35).

160 Então, estamos aqui adentrando as caixas pretas e vasculhando os mistérios a fim de revelar os problemas e as tensões nos modos de produção dos artistas da Dança e do Teatro.

Dito isto, voltemos a observar que, no início deste capítulo, apresentamos um breve panorama da estruturação, da fragilização e da recorrente desestruturação do MINC e das políticas públicas de fomento à Cultura. A instabilidade histórica que observamos no MINC e na FUNARTE repercute como um efeito cascata, provocando instabilidade nas produções artísticas e na vida dos artistas que buscam maneiras de viver do seu trabalho em um contexto que não apresenta muitas alternativas. Vive-se em uma corda bamba, entre o não ter investimento do Estado e ter os editais que premiam um número quase irrelevante diante da demanda real. Entretanto, a necessidade inventiva dos artistas está sempre ali. A potência de vida que teima em resistir. Buscam sempre alternativas para criar a partir da precariedade. Mas, viver de gambiarra e nessa instabilidade constante também provoca hábitos no corpo, como vimos. Aprende-se a viver com pouco e a criar alternativas. Como diz Isabela Silveira “na falta eu performo, na fartura eu fico sempre confusa”. Assim, nos acostumamos a viver na falta, desejando um dia ter condições de trabalho que permitam a almejada estabilidade financeira.

Quando o grupo, núcleo ou coletivo ganha um edital de manutenção83, parece resolver este problema, pois se concretiza a possibilidade de ter a estabilidade desejada. No entanto, trata-se de uma pseudo-estabilidade, financiada por um mecanismo de fomento que tem um tempo de execução mais estendido. Justamente por ter essa temporalidade, a maior parte dos editais de manutenção de grupo tem mais de uma prestação de contas - parcial (1 ou 2) e final. A liberação da verba também é distribuída, mediante a aprovação da primeira prestação, depois libera-se a segunda parcela e assim por diante. O edital de manutenção de grupos, em tese, daria condições necessárias para a continuidade dos trabalhos artísticos durante um ou dois anos. Porém, acaba por gerar instabilidades nas relações que se encontram atadas à execução de um projeto longo, às prestações de contas geralmente muito exigentes e com pouca maleabilidade, e à necessidade de centralizar algumas funções.

As condições burocráticas e enrijecidas da maioria dos editais de manutenção provocaram alguns problemas para os núcleos e coletivos pesquisados. Observamos, em diferentes falas do Couve-flor, do Núcleo VAGAPARA e do Coletivo TeiaMUV, questões

83 Os editais de manutenção de grupos que me refiro são a nível estadual na Bahia via SECULT e FUNCEB,

com verba do Fundo de Cultura. E a nível nacional financiado pela Petrobrás. A FUNARTE não teve editais específicos para esta categoria, mas abria espaço em algumas edições do Edital de Dança Klauss Vianna também para projetos de manutenção de grupo.

161 comuns. Como centralizar funções como produtor, gestor financeiro e proponente do projeto? Funções que sustentam, dão condições e limites para que as outras atividades aconteçam. Esses coletivos criaram o hábito de trabalhar com alternância de funções e de lideranças. Aí de repente alguém tem que assumir por um ou dois anos a mesma função? E começam a aparecer problemas como, quem cobra dos outros os prazos, quem contabiliza as ações que já foram executadas, quem faz os pagamentos das contas etc. E o lugar da centralização da hierarquia começa a virar um peso.

O que percebo é que a submissão ao edital em favor da aparente estabilidade proporcionada por este mecanismo de fomento, muitas vezes, fere ideologicamente o coletivo. Os artistas se veem tendo de realizar certas ações e se organizar de um modo que é contraditório com seus desejos de construção coletiva. Estas tensões acabam gerando instabilidade dentro do coletivo. E os integrantes já não se veem mais entusiasmados para trabalhar e desenvolver o projeto juntos.

Então, a instabilidade no campo das políticas públicas, gera um contexto instável para a atuação dos artistas. Os artistas, por sua vez, vivendo em contexto instável, criam hábitos de sobrevivência, mas desejam a estabilidade. O edital de Manutenção de Grupos Artísticos traz a estabilidade temporária, mas a burocracia, os entraves na gestão pública e a necessidade de centralizar certas funções para lidar com as exigências do edital, provocam instabilidade nos grupos, núcleos e coletivos.

Não podemos afirmar que tal instabilidade, gerada pelo edital de manutenção, provocou o fim desses grupos. Seria muita ingenuidade tratar o objeto de forma tão linear e causal. Sabemos que, em cada contexto específico, em cada grupo, núcleo ou coletivo houve questões singulares e distintas. Entretanto, o desgaste para lidar com as regras do edital potencializou, de forma negativa, as diferenças entre integrantes.

No caso do Núcleo VAGAPARA, ao final do projeto de manutenção ainda houve uma nova montagem. Mas, o coletivo já não tinha mais o mesmo entusiasmo e motivação; após a temporada de estreia foi se dispersando. Até que um dia, eu mandei um e-mail me desligando oficialmente e os demais foram afirmando também que já não fazia mais sentido compor o coletivo.

Os couves, como se chamavam os integrantes do Couve-flor, entenderam o final do coletivo ainda no decorrer do edital de manutenção. O projeto previa dois anos de execução e, ao final do primeiro ano, eles conversaram e decidiram escrever cada um uma carta aberta de finalização do coletivo e publicá-las.

162 O final do Grupo Dimenti foi decisão tomada por Jorge Alencar e Ellen Mello, de manterem a produtora e transformarem o modelo de grupo em outra coisa. Uma espécie de produtora/plataforma de criação artística. Para Jorge Alencar o projeto de manutenção foi uma forma de reconhecer que os interesses já estavam caminhando em direções muito diferentes. Então, eles resolveram montar um espetáculo, produzir um filme e uma exposição como celebração do fim e dos novos começos.

O Grupo Alvenaria de Teatro estava tentando se reorganizar após a saída de Daniel Guerra e de Raiça Bomfim, quando foram informados que iriam receber a verba para executar o projeto de manutenção. Eles resolveram cumprir as metas e executar o projeto, mas ao finalizarem o período do edital pararam de trabalhar juntos.

E as mulheres do Coletivo TeiaMUV não afirmam o fim dos trabalhos. Hoje, elas moram em cidades diferentes, mas mantêm um grupo nas redes sociais e se falam com alguma frequência. Às vezes, até planejam voltar a fazer algum projeto juntas, mas essa ideia ainda não se concretizou desde o final do edital de manutenção.

Relatar a maneira como cada coletivo escolheu terminar ou não seus trabalhos juntos, tem a ver com o entendimento de que a degradação, a desestruturação, a desintegração, a morte e até o movimento de fechar ciclos, fazem parte do processo de todo sistema: “o fenômeno da desintegração e da decadência é um fenômeno normal. Ou seja, o normal não é que as coisas permaneçam tais como são, pelo contrário, isso seria inquietante. Não há nenhuma receita de equilíbrio” (MORIN, 2011, p.89). Assim, não se trata de uma perspectiva romantizada, nem fatalista - isso inclusive reduziria esse objeto de estudo. Sabemos que o fim dos grupos, núcleos e coletivos não delimita a morte da rede e dos sujeitos.

Então perguntamos: o que fica para além do fim dos coletivos? A experiência de ter vivido o encontro. O encontro como contra-dispositivo à política do capital. O encontro como possibilidade de troca, como construção de ambientes democráticos, como modo de emancipação e de ação nas micropolíticas, como reflete Isabela Silveira, sobre o processo com o VAGAPARA e seu fim:

[...] a gente chegou a resultados concretos, financeiros. Demonstrando que sim, é efetivo. Sim, é possível. Sim, é funcional. Sim, faz bem. Sim, dá resultado. Eu pego o portfólio e assim, bicha a gente produziu, viu?! Tá vendo que não precisa ser tudo sofrido, doído, maltratando, disputando, se matando? Eventualmente muitas vezes vai ser cansativo, chato, um porre, mas eu não tenho que pesar mais, é mais doloroso (Isabela Silveira, 2018).

163 O que se aprende com o encontro não fica lá depois que a convivência termina. Isabela Silveira reflete sobre isso quando afirma que o currículo seguiu com ela, as memórias da vivência seguem com ela, os laços de afeto permanecem e o crescimento artístico foi para a vida. O que se gerou de subjetivamento não ficou lá quando terminou o coletivo. De maneira geral, todos os artistas entrevistados falam de como a experiência nos coletivos transformaram os artistas que continuam sendo. E o que se aprendeu, continua a reverberar infinitamente em suas práticas como professores, gestores, críticos, curadores ou artistas.

Assim, vai ser também quando você (leitor/leitora) terminar de ler essas páginas. Você pode terminar de ler a tese, mas as discussões postas e as relações que você criou, ao entrar em contato com minhas ideias desenvolvidas aqui, permanecerão com você.