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2. Redes de transmissão da prática artesanal da fabricação entre os são-bentenses

2.1. O artesanato das redes

No Brasil o artesanato de redes era uma atividade disseminada em grande parte do território, com maior ênfase no Norte e Nordeste. Em seu início era uma atividade puramente doméstica, que passou a ter um valor de troca entre os artesãos especializados em sua maioria mulheres. (ROCHA, 1983).

A peculiaridade do artesanato das redes de dormir em São Bento representa uma organização de trabalho de uma atividade primitiva, já que suas raízes estão calcadas na tradição indígena. A rede inicialmente é utilizada como um produto utilitário para usufruto próprio, em seguida tornou-se subterfúgio econômico para São Bento nos períodos anuais baixos para a agropecuária.

No Nordeste brasileiro a confecção das redes artesanais existiu frequentemente. A produção se dava nas fazendas dentro das unidades familiares, obedecendo a um valor de uso e em outros casos valor de troca. “Quem viveu no sertão do Nordeste até 1910 sabe perfeitamente que rara seria a fazenda onde a rede fosse objeto de compra. Era uma indústria doméstica e tradicional.” (CASCUDO, 2003, p. 25).

Enquanto a fabricação de redes consistia em uma prática artesanal, não existia pelo que nos parece (através de pesquisa historiográfica e o conflito da mesma com as fontes orais) uma divisão de trabalho, embora a fabricação englobasse todos os participantes do seio familiar. (BEZERRA, 2013).

Uma característica importante da „indústria doméstica‟ em São Bento se dá pela contribuição dos filhos maiores e menores de idade, para a ajuda das mulheres da família na preparação do fio e o trato com o tear. Não devemos esquecer que o artesanato das redes é uma atividade que nasce na zona rural, a figura masculina estava com mais frequência voltada para a agricultura, nos períodos de estiagem as atenções começam a se voltar para a confecção das redes.

Como já vimos através de relatos de são-bentenses, a fabricação de redes em seu modo artesanal, e em nível familiar era bastante rudimentar. O tear de madeira, ou mais conhecido tear de pau, horizontal, o mais antigo, o tear de três panos, só permitia tecer um pano de 60 cm de largura de cada vez, para a rede ficar pronta nos padrões de 1,80 m de

largura, eram necessários três panos, que eram untados em um processo posterior de costura, por isso o nome tear de três panos⃰.

Fazendo uma análise do discurso da colônia de narradores, como os do senhor Cícero Emídio, do senhor Boqueirão, como também a fala de Jaci Severino de Sousa mais conhecido na cidade como Galego Sousa, podemos perceber uma atribuição dos mesmos ao início da prática artesanal da fabricação das redes voltada para a figura feminina.

O primeiro relata como já vimos, que com aproximadamente a idade de 10 anos, já ajudava na preparação do fio para o tear de sua irmã mais velha. O segundo atesta que mesmo vindo de uma família de tradição pecuarista, sua mãe comprou um tear, chamado tear de cia⃰ para começar a fabricação de redes, mas que só com a iniciativa de seus irmãos a partir de 1972 é que sua família deu início a essa fabricação. O terceiro informa que desde sua infância, sua mãe já possuía um tear de três panos para a fabricação de redes de utilização da família. Este narrador ainda relata que ele e seus irmãos ajudavam a sua mãe na tessitura da rede, e na preparação do fio, enquanto seu pai trabalhava na agricultura, serviço que eles também ajudavam a desempenhar.

Jaci Severino de Sousa, mais conhecido na cidade como Galego Sousa, tem 53 anos, atualmente é Deputado Estadual, e antes de ingressar na vida política, assumindo como prefeito duas gestões na Prefeitura Municipal de São Bento/PB 2005-2012, viveu uma extensa trajetória no trabalho com as redes. Tendo começado ainda quando criança no fabrico de redes artesanais para utilidade familiar, como também a venda e troca do produto, no sítio Várzea Grande, onde vivera com seus pais e seus oito irmãos. Ao atingir os dezoito anos de idade começou o ofício de redeiro, vendedor ambulante de redes de dormir, no qual o entrevistado nos alega que passou quinze anos de sua vida exercendo esse ofício, levando as redes são- bentenses para os quatro cantos do Brasil e alguns países da América do Sul como Bolívia, Peru, Paraguai, Argentina, Venezuela e Uruguai.

Galego Sousa, conta-nos como antes de se tornar tecedor, seguidamente redeiro, a prática da fabricação artesanal de redes era feita na residência de sua família no Sítio Várzea Grande. Em um dos seus depoimentos, ele nos exprime a lida na vida rural, o envolvimento de toda a família na agricultura e o início da fabricação de rede que se tornou o segundo trabalho da família:

(...) Lá na Várzea Grande, ali naquelas terras que hoje ainda existem, inclusive agora a pouco eu tava vindo de lá, a gente ampliou, comprou mais não é! Mas foi lá, nos pedacinhos de terra que ele criou, eles criaram a gente, e a gente logo a partir de nove, dez anos também todo mundo começou a trabalhar na roça, e o nosso segundo

trabalho foi a venda da rede. Da roça pra venda de rede não é! (Informação verbal)

12.

O envolvimento com o espaço onde a prática era desenvolvida ainda é muito forte na fala do narrador. Tal percepção fica nítida no uso dos advérbios de lugar e de tempo usado pelo mesmo, o sentimento de pertencimento é bastante aflorado em trechos que situam o sítio Várzea Grande como „logo ali‟. A ideia de não querer se afastar de suas antigas experiências, mesmo pertencendo na atualidade a um contexto e uma realidade histórica totalmente diferente da época que está sendo remetida pelo exercício da memória é expressa quando o narrador faz questão de levantar que o sítio, ou melhor, as terras da família „hoje ainda existem‟.

Em se tratando de uma memória coletiva, podemos notar também a experiência de aprendizado do narrador tanto na lida do que o mesmo chama „o trabalho na roça‟, quanto na fabricação das redes, ambas as práticas repassadas por seus pais. A primeira pelo pai, a segunda pela mãe, que tendo por sua vez herdado a mesma também pela sua mãe, repassa aos filhos, já que era necessário o aprendizado dessa peculiaridade econômica entre os são- bentenses. O narrador faz a ligação do espaço como o local onde seus pais os criaram, ele e seus irmãos, como também o espaço onde os mesmos aprenderam o trabalho necessário para que fosse desenvolvido ao longo de suas vivências.

É interessante trazer a tona o debate de Thompson acerca dos costumes. O historiador britânico enxerga os mesmos como algo que se consolida pela própria prática e pela experiência que as pessoas adquirem de determinada existência (1998). O sistema de atividades em comum realizadas pelos homens é transformado em valores e significados compartilhados, que se acharão a partir da sua transmissão envolvidos em um misto de experiências que tem seus sentidos explicados pela necessidade e pelo contexto nos quais essas pessoas em comum estão inseridas.

Se analisarmos a fabricação das redes como um processo de transmissão, veremos que desde sua feitura pelos indígenas, apenas como objeto de utilidade, da fabricação até o ato de dormir em redes acaba por se transformar em um costume. O costume se transforma em experiências vividas e compartilhadas a partir do momento em que o mesmo reflete sua prática entre os demais que dividem um espaço.

Essa prática desenvolvida, aplicada e repassada é expressa na fala do narrador quando é levantada a ocorrência de teares nas casas existentes no sítio Várzea Grande e

12 Entrevista concedida por SOUSA, Jaci Severino de. Entrevista. (set. 2015). Entrevistador: Joyciana da Silva

regiões vizinhas. Ele relata que o uso de teares de madeira era corriqueiro nas casas da zona rural, inclusive na sua, que havia um tear pertencente ao seu irmão, e que ele fazia às vezes de tecedor com a idade de quatorze anos:

(...) Eu ainda adolescente na época, mas já havia o pessoal trabalhando na rede não é! Os meus irmãos eles começaram com um tearsinho de madeira não é! A gente fala o tearsinho de pau, e eu ainda teci no tearsinho de pau, eu com quatorze anos naquela época já, mas eu ainda teci naqueles tearsinho de madeira que você jogava a lançadeira⃰ pra um lado, jogava pra outro, com a mão não é! Fazia os três panos aqui e aí costurava, juntava e tal, e fazia a rede não é! (Informação verbal) 13.

A prática da fabricação de redes em São Bento assume por vezes uma ação pedagógica. Haja vista que uma educação formal do homem sertanejo, no sentido do aprendizado de códigos e saberes passados através de uma instituição de ensino, se apresentaram durante décadas, em algo difícil. O acesso à escola por esses homens de modo particular sempre se mostrou muito escasso. O frequente trabalho para ajudar aos pais no sustento da família, garante por vezes, o desenvolvimento das práticas constituídas pela experiência humana que ultrapassa qualquer limite pedagógico formalizado.

O aprendizado de tais práticas vai recorrer à tradição oral, de maneira que sejam absorvidos os modos de fazer estabelecidos por determinada experiência cotidiana, nesse caso, a tradição oral aparece no mais das vezes, com uma pesada carga de „costumes‟. (THOMPSON, 1998, p. 15).

É com base nessa análise de Thompson que procuramos esclarecer o processo de transmissão da prática de fabricação das redes entre os são-bentenses, e como a divisão do trabalho familiar dessa fabricação, influenciava as experiências desses homens e mulheres. Através da vivência do último narrador aqui elencado, podemos perceber que a fabricação na zona rural era algo costumeiro, e que a família desempenhava papéis particulares fundamentais no processo.

No último caso, a mãe do narrador fazia redes para o consumo, seu pai se empenhava na agricultura, serviço que o narrador deixa claro que os filhos também ajudavam, mais tarde, quando seu irmão adquire outro tear, ainda de madeira, inicia-se uma fabricação mais voltada para a venda e a troca. Outro detalhe em grande medida pertinente nesse debate é a questão da transmissão dessa prática entre as gerações, e o encontro das mesmas por meio de um saber compartilhado. Esse saber implica não só na permanência da mesma, mas também no não

desaparecimento da memória e da vivência daqueles que antes que essa história estivesse sendo contada, já desempenhava tal ação.

Tendo em vista tal evento, a análise acerca de uma pedagogia voltada para a tradição oral, é o que podemos atribuir a essa transmissão de técnicas particulares de experiências sociais, ou da sabedoria comum da coletividade. Segundo Thompson (1998) tal aprendizado iniciado ainda na infância, funciona como a iniciação em uma prática habilitada pelos adultos. Encaixamos tal reflexão na fala do Galego Sousa e do senhor Cícero Emídio que elucidam de maneira pormenorizada, a transmissão de uma prática através de gerações familiares, e o desenvolvimento da mesma por eles, levando-os a também participar de uma série de “rituais” de experiências compartilhadas entre os comuns nos seus convívios. Vejamos:

(...) A minha mãe, a gente plantava algodão na época não é! E ela descaroçava o algodão, botava a gente pra descaroçar o algodão. Ela fazia o fio num engenhozinho à mão pra fazer a rede, então era trabalho 100% artesanal naquela época não é! (...) A minha avó também, descaroçava o algodão, pra fabricar rede pra o consumo de casa não é! Na época eu até falo que nasci na rede, porque na minha casa na época não tinha cama, porque cama era difícil, era uma coisa assim que era só pra aquelas pessoas que tinham uma condição melhor, e como os nossos pais a condição era muito pouca como agricultor, a minha mãe mesmo fazia as redes, com a gente ajudando, os meninos todos trabalhando com ela, fazia as redes que a gente precisava, fazia em casa mesmo, num tearsinho pequeno, não era nem aquele tear da lançadeira, era um tearsinho pequeno que ela fazia umas tirinhas, aquelas tirinhas e tal e emendando até chegar à largura da rede. (Informação verbal) 14.

Podemos notar a partir dessa fala que o saber referente à prática da fabricação das redes é algo que se têm entre os moradores do espaço discutido como uma obrigação em sua transmissão. O aprendizado é passado desde a avó do narrador, depois sua mãe, até chegar entre os filhos e ao agente da fala. Nota-se ainda algumas modificações, pois até essa prática mudar de utilidade, ela teve que merecer um caráter econômico até se tornar o que aqui chamamos de subterfúgio.

A prática artesanal da fabricação das redes como podemos ver através da fala de Galego Sousa, é um trabalho que envolvia todo núcleo familiar, com uma pequena exceção do pai, que se envolvia com mais intensidade na lida da agricultura. Os demais filhos ajudavam a mãe a descaroçar o algodão, para fazer o fio em uma espécie de engenho manual. Essa prática como avalia o narrador, já era realizada por sua avó, muito provavelmente a mãe do mesmo participou do mesmo aprendizado da prática do trabalho artesanal com as redes como norma.

Posteriormente sua mãe passaria esse saber para os nove filhos, que por sua vez aprenderiam a técnica artesanal, com utilização de ferramentas rudimentares para preparação do fio, e com teares de madeira, que sempre precisava emendar as malhas de fio para produzir uma rede na largura adequada, formando uma experiência de aprendizagem linear.

Logo esse aprendizado, como iniciação em habilitações dos adultos, serve como mecanismo de transmissão entre as gerações como já falamos. A criança faz seu aprendizado das tarefas caseiras, primeiro junto à mãe ou avó, mais tarde (frequentemente) na condição de empregado doméstico ou agrícola (THOMPSON, 1998).

No que diz respeito aos mistérios da criação dos filhos, a jovem mãe cumpre seu aprendizado junto às matronas da comunidade. O mesmo acontece com os ofícios que não têm um aprendizado formal. Com a transmissão dessas técnicas particulares, dá-se igualmente a transmissão de experiências sociais ou da sabedoria comum da coletividade (1998, p. 18).

Thompson faz essa análise através da realidade da sociedade rural e manufatureira da Inglaterra do século XVIII. Podemos ver que mesmo pertencendo há tempos e espaços totalmente distintos, a forma de transmissão de experiências é algo que está arraigado na vida social dos homens, deste modo, as especialidades no modelo dessa transmissão não vão diferir em muito em diferentes lugares do mundo. Porém, são as necessidades e os contextos que delimitam a prática a ser exercida por determinado grupo, elas também delimitam as pessoas que vão programá-las em suas experiências, como também de forma direta ou indireta o tempo de duração das mesmas.

Cícero Emídio também nos relata, outro saber referente à fabricação de redes em seu modo artesanal, que da mesma forma, fora transmitida por entre as gerações, a preparação da tintura do fio para a confecção de uma rede colorida. Podemos observar, que a forma como se preparava o tingimento do fio era totalmente alusiva às formas como os índios praticavam o artesanato, com a matéria prima extraída do próprio solo de onde habitavam.

Ele relata um pouco da dificuldade dessa preparação do fio, sempre associando a fabricação das redes com os períodos de seca, nos quais obrigatoriamente migravam para outros sítios da zona rural da região de São Bento:

(...) Nós num sabia o que era fio, aí tingia aquela listrinha⃰, com jenipapo, casca de jenipapo cozinhada com angico, a casca de jenipapo dava um azul bem... Escuro, decorado que eles achavam até bonito, mais grande não é! E o angico dava um

vermelho que nós chama escarlate não é! Era as duas cor. Agora isso acabava o pano e não mudava a cor num sabe? Segurava mais do que mesmo a tinta. Aí foi daí que a gente começou ver fio, depois já da idade de quatorze anos, eu não tinha nem quatorze, aí nós saímos com... Parece que na idade de dez anos nós já saímos do Boqueirão, viemos pra aqui, pra essa casa que eu lhe falei, nessa casa do Xique- Xique, na casa de João Emídio, aí depois de 53 pra 54, foi três anos escasso de inverno, em 58 trabalhei na rodagem⃰, aí depois Chico Gago foi pra rodagem e daqui ele me levou pra trabalhar lá no Recanto no tear, enchendo espola⃰ essas coisas. (Informação verbal) 15.

Quando o narrador fala: „nós não sabia o que era fio‟, ele quer dizer fio em sua forma industrial, o mesmo era todo preparado manualmente, em um circuito de elaboração que ainda iremos exemplificar. O narrador ainda alude mais um processo da preparação do fio, o tingimento⃰, em sua forma totalmente artesanal. O relato do senhor Cícero Emídio entra em consonância com o de Galego Sousa na questão do fio, quando o primeiro fala do processo do tingimento, e o segundo da colheita do algodão, até o descaroçamento do mesmo, e a transformação em fio.

O primeiro ainda exprime o seu pertencimento ao leito balouçante, como umanorma de aprendizagem e necessidade, já que as camas eram um artigo utilizado apenas pelos mais abastados. Seria inimaginável a possibilidade da interrupção de tal prática, por qualquer indivíduo diferente, que venha a ter contato com ela e seus praticantes, assim, tendo em vista que a prática seguida da experiência compartilhada adquire um status de norma.

Na narração do senhor Cícero Emídio, vemos que nem mesmo os problemas com a estiagem, entre outras dificuldades, que muitas vezes os faziam migrar de uma região para outra, estancava o processo de aprendizagem da prática e da transmissão da mesma. Contando somente as experiências do narrador e excluindo os demais de sua família, observamos que foram três mudanças: do sítio Boqueirão para o Xique-Xique e deste para o sítio Recanto. Nos três casos, o narrador assumia funções diferentes no processo, que variava de acordo que idade do mesmo ia avançando.

O artesanato de redes em São Bento foi disseminado por toda parte do espaço em questão, sendo uma prática genuinamente doméstica, que passou a ter um valor de troca entre os artesãos especializados, em sua grande maioria mulheres.

A partir do momento que determinadas experiências são superados e que novas gerações aparecem e não partilham do mesmo corpo de referências essas experiências são

15 Entrevista concedida por SILVA, Cícero Clementino da. Entrevista I. (set. 2015). Entrevistador: Joyciana da

relegadas e esquecidas, em São Bento, a passagem da fase artesanal para manufaturada, fez com que a prática se modificasse para atender as demandas que a produção passou a exigir.