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3. Memórias enredadas: a modernização na fabricação e seus agentes impulsionadores

3.1. São Bento e a „construção‟ do industrioso

A palavra indústria foi, e podemos dizer que ainda é usualmente referida ao trabalho de uma forma geral. Possuir uma indústria já significou, na maioria das vezes, possuir uma ocupação útil. Contudo, é importante analisar aqui, o percurso da construção do sentido do termo industrialização para estabelecermos parâmetros no tipo desta atividade usual no espaço discutido neste trabalho.

A partir da segunda metade do século XVIII, industrialização passou a significar uma produção em grande escala, localizada em locais fabris, com uso de maquinaria e grande quantidade de mão de obra, com o objetivo de atingir um mercado consumidor. O Dicionário de Conceitos Históricos analisa que “O conceito de industrialização está intimamente relacionado à noção de sociedade industrial. Ambos os conceitos apresentam, muitas vezes, um sentido evolucionista, sendo interpretados como estágios da capacidade humana de produzir, de transformar a natureza.”. (SILVA, Henrique; SILVA, Kalina, 2014, p. 230).

No limiar do processo de industrialização temos o artesanato, que através do artesão produz peças e objetos com os quais se identificam, com a utilização de ferramentas simples. Na maioria dos casos o proprietário dos meios de produção é também o proprietário da matéria prima, mas levando em consideração que tal situação tende a variar de acordo com o tipo de produção e o meio no qual está inserido.

A fase posterior, a manufatura, consiste num estágio em que a técnica ainda é artesanal, mas a organização e divisão do trabalho se tornaram mais complexas, foi o que, por exemplo, ocorreu em São Bento com o início da utilização do tear batelão. Este tear foi capaz de manter um status de artesanal, mas conseguiu dividir o trabalho entre os membros da família, e aumentar progressivamente o processo produtivo, já que por sua vez, passou-se a utilizar também do fio industrial.

A classificação temporal do processo de industrialização através de suas fases de desenvolvimento nos permite tornar mais fácil o entendimento das atividades produtivas na história. Tal classificação sugere que as diversas sociedades, ao longo do tempo, apresentam diferentes capacidades técnicas e produtivas. São justamente as peculiaridades técnicas e

produtivas entre as diferentes sociedades que permitem que em pleno século XXI, no Brasil, que tem uma economia considerada industrializada, ainda existam atividades artesanais, ou parcialmente artesanais, que não desapareceram totalmente, chegando muitas vezes até a se tornar uma atividade produtiva vinculada ao mercado externo.

Que a cultura da rede exerce um forte papel econômico para a cidade não se tem dúvidas, porém muitas vezes a utilização do termo indústria das redes em São Bento pode tornar-se equivocada. Haja vista que, o processo de fabricação ainda se encontra em sua grande maioria concentrado nas mãos de pequenos fabricantes que, pelo fato de se encontrarem na cidade em grande número, é capaz de manter a atividade de fabricação ininterrupta. O fluxo intenso da fabricação permite uma circulação significativa dela dentro e fora do município através do trabalho dos vendedores ambulantes de redes, ou como o chamam na cidade, os famosos redeiros.

A base econômica da chamada indústria têxtil de são Bento é a tecelagem de redes de dormir, e ela marcou de maneira bem intensa a economia do município, pois se tornou responsável em abranger a maior parte da população economicamente ativa. O desenvolvimento econômico de São Bento através da fabricação das redes, posicionou a mesma dentro do estado como uma das cidades paraibanas com os maiores índices de arrecadação, e também se tornou uma das cidades que mais cresce em termos populacionais. Esse último fator é estabelecido, por muitas pessoas se deslocarem de suas cidades em busca de empregos, já que a mesma enfrenta poucas dificuldades nessa área, uma vez que quase todos os trâmites econômicos estão ligados às movimentações com a indústria têxtil.

Porém, no debate sobre industrialização em São Bento, é necessário atentar para o fator que permeia a construção do nome da cidade associado ao „industrial‟, tendo em vista que, diversos fatores culminaram para que a cidade adquirisse tal categoria econômica. Podemos enumerar alguns deles como, por exemplo, o vasto envolvimento da população no trabalho com a fabricação das redes, que possibilita que progressivo número de redes fabricadas seja vertiginosamente crescente.

Pode-se explicar tal fator levando em consideração um exemplo simples, em São Bento, quando um indivíduo não trabalha unicamente para a fabricação, troca e/ou venda das redes, geralmente há uma mistura de ocupações, sendo possível que uma pessoa tenha um trabalho formal, com carteira assinada em qualquer um dos estabelecimentos comerciais espalhados pelo município. Porém à noite, ou nos demais momentos de folga, a mesma pessoa pode vir a se envolver com algumas das etapas do processo de fabricação das redes,

geralmente na fase do acabamento como entrançar torcer, fazer varanda, dentre outros processos.

No cotidiano dos são-bentenses podemos encontrar a criança na escola durante uma parte do dia, e na outra metade realizando um pequeno trabalho relacionado à fabricação. Muitas vezes essa prática contribui até mesmo na educação dos filhos, uma vez que não consiste em uma obrigação, mas sim em um ensinamento da importância do trabalho, da divisão do tempo diário, da disciplina na ajuda dos pais. A mãe de família também em pleno ano de 2015 não se exclui do processo de fabricação, muitas vezes ela concomitantemente se divide entre o trabalho doméstico e o trabalho nas redes. As etapas mais usuais atualmente entre as mulheres são-bentenses que se encontram nessa categoria passam ponto, empunham, fazem o caré, ou se limitam no trabalho paciente e primoroso das feituras com as varandas artesanais.

Entre os homens, estes muitas vezes, têm como principal meio de sustento a fabricação das redes. Na grande maioria, aquele que tem os melhores salários são os tecedores, estes se dedicam unicamente a este processo, às vezes são responsáveis pela mecânica dos teares quando a fábrica ainda utiliza de máquinas rudimentares que não exigem tanto conhecimento técnico. Quando não se limita ao ofício de tecedor, se volta para os serviços que chamam de diarista, ou seja, urdir, alvejar e tingir o fio.

Muitas vezes homens se juntam a outros para realizar trabalhos fora dos ambientes das tecelagens, ou seja, juntam-se em equipes para realizar algumas fases do processo de acabamento das redes sem precisar se limitar a uma única fábrica, realizando tal procedimento para diversas fábricas com proprietários e demandas diferentes. O empunhamento é atividade realizada tanto por homens quanto por mulheres, e em uma estatística quase geral, esse serviço é realizado fora do ambiente fabril, deixando a rede pronta, dobrada em fardos já preparada para a comercialização.

Todo esse envolvimento populacional com a fabricação permite que a demanda exigida seja suprida com rigidez, e o ciclo de fabricação seja anualmente ininterrupto com números de vendas altíssimos. Mesmo em uma produção que não consista em um modo de fabricação totalmente industrial, o que poderia retirar da cidade esse categoria produtiva, ou até mesmo polo industrial no sertão da Paraíba como é comumente chamada.

Podemos avaliar que cerca de 40% da fabricação das redes em São Bento ainda é artesanal. No capítulo anterior, observamos que essa porcentagem está relacionada às fases de acabamento que geralmente acontecem dentro de outros estabelecimentos que não sejam as próprias tecelagens. Algumas dessas etapas são a mamucaba, a franja, a varanda, estas ainda

consistem em uma prática artesanal, mas que hoje geralmente são processadas desse modo apenas entre os que trabalham para pequenos fabricantes, as tecelagens mais desenvolvidas já utilizam de maquinários para estes processos.

Porém, ainda existem processos envolvidos na fabricação de redes que não se utilizam de máquinas de maneira alguma para sua realização, até pelo fato de que não existe maquinário para desenvolver tal procedimento. O empunhamento é um exemplo de atividade realizada braçalmente, utilizando apenas de uma rústica ferramenta de madeira chamado popularmente de „banco de empunhar‟. Posterior a essa fase o caré, que também é serviço puramente artesanal que consiste em revestir os punhos das redes com cordões que formará uma argola que será enganchada aos tornos⃰ ou armadores dispostos nas paredes.

Os outros 60% do processo de fabricação das redes consiste na parte da tecelagem, a parcela industrializada da produção. As fases anteriores à tessitura encontram-se hoje bastante diferentes do modo artesanal manufatureiro, o tingimento, por exemplo, já não é constantemente realizado uma vez, que existe já a disponibilidade de fios em todas as cores, contudo, muitos ainda utilizam a prática do tingimento. Enquanto a urdidura acredita-se que, fora abolido o processo de urdir artesanalmente, uma vez que não localizamos nas fábricas visitadas o uso da urdideira tradicional de madeira, só foi possível observar as urdideiras elétricas, que só necessitam da ação humana para ligar e desligar a máquina.

Observar o discurso não só nas entrevistas formais que foram realizadas para o presente estudo, mas como também durante conversas informais, foi essencial para identificarmos que dentre o conceito de nível da fabricação das redes na cidade que está suplantado na experiência dos são-bentenses, os mesmos se referem à cidade como industrial. Isso ocorre pois estes, comparam São Bento com as demais cidades da região como Patos, Catolé do Rocha, Pombal, Brejo do Cruz, ambas na Paraíba, como também muitas vezes Caicó no Rio Grande do Norte. Segundo esses são-bentenses essas cidades mais antigas relacionadas a São Bento e mesmo assim, não têm o mesmo nível de desenvolvimento econômico nem possuem uma atividade de fabricação que englobe dentro dela uma parcela majoritária da população.

Eles também atestam que São Bento é uma cidade industrial pelo número de fábricas que são muitas, que empregam, ou distribuem serviços entre os autônomos. Não se atentou o fator de na Cidade não haver fábricas de fios especializadas, o fio utilizado na fabricação de redes em São Bento é comprado de cidades como Cajazeiras/PB, Recife/PE, Fortaleza/CE, sendo que sua transformação em cordões ou em massa para tessitura é realizada na cidade.

O motivo das redes estarem sempre relacionadas à história de são Bento, ao seu estilo de vida, também pelo fato dela ter se tornado o meio de sobrevivência principal dessas pessoas, acarreta um olhar de „evolução‟ da prática, que está ligada a uma espécie de lembrança de como tudo começou, como se desenvolveu, e a forma de como ela foi importante para o desenvolvimento da cidade e do povo que nela reside. Essa importância está sempre explícita na narração dos são-bentenses como o caso de dona Maria que nos relata que “A rede foi uma coisa muito boa, porque a gente não ganhava nada né, aí nas redes ganhava

qualquer coisa” 21.

Dona Maria resumiu o que muitos são-bentenses avaliam sobre a fabricação e comercialização das redes, através dela, foi possível ganhar alguma coisa, algum pecúlio, uma renda, já que outros recursos eram pouquíssimos. Agricultura somente de subsistência, pecuária, para um pequeno criador em nada adiantava, a rede foi um artigo promissor, que esperava a perspicácia de um povo que a utilizavam apenas para dormir suspenso no ar, para aperfeiçoar seu marketing e torna-la famosa dentro e fora do Brasil.

Uma das explicações mais detalhadas quanto à consideração da cidade de são Bento como industrial foi a de Galego Sousa, na qual ele exemplifica o seu posicionamento com argumentos que salientam tanto o que é ser indústria para a população, quanto o que é ser indústria para os órgãos governamentais que estabelecem os índices industriais:

(...) São Bento na minha opinião é um polo industrial, porque nós começamos de baixo, pequenininho, nós não temos um incentivo de bancos, muito poucas empresas tem esse incentivo aqui, e tudo é construído com recurso próprio. (...) O município ainda não separou uma área para a construção de um polo industrial, hoje as nossas fábricas elas são distribuídas em vários bairros. (...) Nós temos a Pancor, nós temos as Redes Santa Luzia que é muito conhecida não só aqui na Paraíba como em outros estados não é! Nós temos outras empresas que são fabricantes, que são do ramo da fabricação que são indústrias. Vamos supor, os 40% artesanal, talvez agregue mais mão de obra, mais funcionários, do que os 60% industrial não é! Certo que, pra eles a indústria é que geralmente vai render, que aparece mais porque é carteira assinada, é registrado tal, é o que vai render pra o Governo Federal, vai render ICMS pra o estado que vai mostrar que aquele pessoal tem que produzir tanto pra que a empresa tem que mostrar essa produtividade a cada mês, a cada ano, e com isso, o estado tem aquela fatia, aí pra eles o que se conta é isso. 22

21 Entrevista concedida por CUNHA, Maria Silva Araújo. Entrevista. (out. 2015). Entrevistador: Joyciana da

Silva Medeiros. São Bento/PB, 2015. 1 arquivo. Mp3 (22min 57s), p. 8.

22 Entrevista concedida por SOUSA, Jaci Severino de. Entrevista. (set. 2015). Entrevistador: Joyciana da Silva

É interessante observar que a cidade não possui uma área que concentre as tecelagens existentes. Tanto as grandes, como o exemplo da Pancor, que hoje está localizada em uma região distante dos bairros residenciais, que convivem paralelamente com as fábricas, quanto as pequenas, que pelo fato de terem nascido entre um grupo familiar, logo, estabeleceu-se nos bairros e ruas de moradia de seus donos, pois muitas vezes saíram das dependências de suas casas.

Como avalia Galego Sousa, a cidade não mantém um polo industrial no sentido restrito da palavra, pois a mesma não adquire um setor de concentração das tecelagens em uma única zona afastada do centro da cidade, ou seja, numa zona periférica, como geralmente se exige dos polos industriais até mesmo para a manutenção da facilidade de comunicação e transporte entre as indústrias nelas distribuídas. Contudo, o mesmo levanta que a cidade assume tal categoria, uma vez que mesmo sem a existência dessa exigência básica dentre as cidades industriais, o fluxo de transporte e comunicação entre as mesmas é intenso, mesmo se concentrando no percurso da extensão territorial habitada da cidade, em convivência com fábricas de grande e pequeno porte.

Quanto à divisão da fabricação das redes entre artesanal e industrial que consiste no fator base para o questionamento quanto à industrialização de São Bento, o mesmo inquere que os 40% artesanal agregue mais mão de obra do que os 60% industrial. Haja vista que, em uma tecelagem de grande porte, um único tecedor pode trabalhar no manejo de até dez teares de uma única vez.

Tendo em vista o desencontro e a diferença de lucro entre o grande e o pequeno, o „industrial‟ de São Bento se priva das exigências de uma indústria, mantendo um caráter manufatureiro, uma vez que, em contrapartida com as exigências do governo, irão bater de frente com elas, o que tornaria inviável produzir em menos quantidade e com a mesma carga tributária imposta pelo governo.

A fabricação de redes que, como já vimos, funcionou como subterfúgio econômico até se encontrar hoje na matriz do desenvolvimento da cidade. Consiste no resultado de uma prática utilitária que tem suas raízes fincadas na tradição indígena, conseguiu ser transmitida entre gerações, adentrar na vida do homem sertanejo. A rede se transformou em artigo de comercialização e se desenvolveu como peça fundamental da economia de uma cidade na qual seus moradores aperfeiçoaram o sistema de comercialização, ultrapassando a venda do artigo, mas também trocando por matéria prima, serviço, e enviando são-bentenses Brasil a fora para mostrar o produto e vender a preços elevados, trazendo renda e desenvolvimento para a cidade.

Talvez essa coragem e força de vontade, que fabricantes de redes de outras cidades não tiveram como o caso de Jaguaruana/CE, que foi na década de 1970 grande fabricante de redes no Brasil, que fez com que a fabricação da cidade se elevasse, e a fama do produto se espalhasse, e que de acordo com o número de peças que saem da cidade para serem vendidas, coloque o nome de São Bento junto à categoria de „industrial‟, o número faz jus ao patamar econômico que a mesma recebe, porém o estilo de fabricação utilizado, não.