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O limiar histórico da transformação do artesanato das redes de dormir

2. Redes de transmissão da prática artesanal da fabricação entre os são-bentenses

2.2. O limiar histórico da transformação do artesanato das redes de dormir

A prática do artesanato das redes fora bastante disseminada dentro e fora do município, sendo que este manteve uma peculiaridade própria, sua fundamentação dentro do seio familiar foi tão expressiva, que uma manufatura do processo, só começou a existir bem recentemente, nos idos da década de 1940 aproximadamente (CARNEIRO, 2001).

Quando o fio de algodão começou a ser agregado ao valor industrial dentro do estado da Paraíba, mais precisamente na primeira década do século XX, é que ocorre um pulsar mais forte do desenvolvimento manufaturado no município. A fabricação artesanal só começou a se modificar com a utilização do fio industrializado na tecelagem do pano, em fins da década de 1930. (ROCHA, 1983).

Esses fios começaram a circular através de alguns comerciantes locais, que vendiam produtos manufaturados utilizados na região, juntamente com um sistema de troca que consistia no modo pelo qual o comerciante vendia o fio a crédito, para posteriormente receber redes prontas como pagamento. Mesmo que o uso de teares de madeira ainda fosse predominante dentro da fabricação, o uso do fio industrializado já garantia uma aceleração no processo, já que começaria a extinguir a fase de preparação do fio artesanalmente para a urdidura.

Todavia, é provável que durante o início da utilização do fio industrializado, aproximadamente 1930, o uso do fio artesanal ainda fosse constante entre os fabricantes domésticos. Tendo em vista tal problema, nos deparamos com um embate entre a historiografia sobre o tema, e a pesquisa das fontes orais. Podemos averiguar que o percurso da modernização na fabricação, caminhou a passos mais largos através da incorporação dos fios industrializados pelos produtores, mas que, o mesmo não chegou com tanta pressa a todos que tinham a prática como principal meio econômico.

A análise do discurso entre partes determinantes das falas de quatro narradores nos induz a uma problematização da questão acerca de avaliarmos até que ponto essa modernização foi precisa, até as esferas de grupos produtores que ela atingiu no seu período inicial. Dentre esses narradores, apenas um exprime a utilização de fio industrializado dentro da prática da fabricação das redes em sua respectiva unidade familiar.

A começar da narradora mais velha de toda colônia, a senhora Ana da Silva Medeiros, irmã do já conhecido narrador Cícero Emídio. Dona Ana como é mais conhecida possui data natalícia no ano de 1923. A narradora é pioneira na fabricação de redes em sua família, a mesma adquiriu um tear de três panos, quando ainda morava com toda sua família, composta por seus pais e mais nove irmãos no sítio Boqueirão. Ela exprime em uma de suas falas que começou com a idade de doze anos a trabalhar na fabricação artesanal de redes, ou seja, por volta de 1935:

Comecei com doze anos trabalhando de noite e de dia, fazendo rede dos outros (...). Os meus irmãos tudo trabalhava em fio (...) eu mesmo preparava o fio (...) tudo manual, o engenho era, pra fazer o cordão no engenho manual sem ter nada. (...) Era tudo na mão. Passava a mamucaba⃰ fazia tudo (Informação verbal) 16

Dona Ana se expressa livremente ao pronunciar que com a idade de doze anos começou a trabalhar fabricando redes, em um tear que era seu, mas que as redes eram feitas por encomenda, não eram dela. Ela nos exprime que durante esse início, o fio que utilizava para a produção era artesanal, produzido por ela e seus irmãos. No que compete ao modo de produção utilizada por eles, a narradora evidencia que era „tudo manual‟.

O depoimento acima nos informa que mesmo com a utilização do fio industrializado em São Bento, a regra não aconteceu de modo geral, tendo suas exceções, como no caso particular da produção de dona Ana, que através da voz aqui já exposta de seu irmão Cícero Emídio, foi elucidado que o processo artesanal de preparação do fio para a urdidura ainda se estendeu por um período bastante significativo.

Cícero Emídio na idade de dez anos já ajudava sua irmã no processo de preparação do fio, até mesmo o tingimento, totalmente artesanal. O mesmo nasceu em 1938, o narrador começou a ajudar a desempenhar a preparação do fio para o tear de sua irmã com a idade de dez anos, isso implica dizer que ainda em 1948, esta família específica ainda não utilizava fio industrializado.

No núcleo familiar da senhora Maria Silva Araújo Cunha, mais conhecida na cidade como Maria de Edvar, aconteceu com uma significância peculiar. Esta nasceu em 1943, residia juntamente com sua família no sítio Várzea Grande, e com aproximadamente dez anos de idade, ajudava sua mãe na fabricação das redes totalmente artesanais, ou seja, por volta de

16 Entrevista concedida por MEDEIROS, Ana da Silva. Entrevista. (out. 2015). Entrevistador: Joyciana da Silva

1953. Porém, após o êxodo para a zona urbana em 1958 já havia a utilização de fios industrializados, como podemos ver na narração:

Quando eu era menina mãe já tecia, (...) eu já me criei trabalhando em rede. Depois que eu vim pra rua em 58, eu lembro que nós morava ali naquela rua de Olegário, aí eu tecia num tear de pau, jogando a lançadeira. (...) A rede foi uma coisa muito boa, porque a gente não ganhava nada não é! Aí nas redes ganhava qualquer coisa. (...) A gente comprava o fio pronto, (...) agora mais atrás, antigamente, eles plantavam e fiavam em casa não é! Tinha um bicho de fiar e fazia a rede de três panos. De primeiro era assim. Mas no tempo que eu comecei já tinha o fio. (Informação verbal)

17.

No caso particular da família de dona Maria, o fio que utilizavam para a fabricação já era industrializado. Isso implica que esse núcleo familiar fora alcançado pela modernização do processo de fabricação, contudo, a narradora ainda evidencia que antigamente o algodão era plantado e fiado em casa, como ela exprime: „tinha um bicho de fiar‟. A mesma se refere a um engenho no qual era torcido o fio para a preparação do mesmo e seu ajuntamento em carretéis para serem posteriormente urdidos. Ela lembra esse processo recordando que era a essa maneira que sua mãe fabricava as redes de dormir.

Até esse processo de melhoramento das técnicas de fabricação da rede ter chegado ao seu ápice de fato, e atender a grande parcela que vivia da produção de redes, é possível que de 1930 até por volta de fins da década de 1950, células familiares já desfrutassem do advento da industrialização no espaço em questão, como por exemplo, fazendo uso dos fios industriais. Mas por sua vez, é possível que uma parcela expressiva das „indústrias domésticas‟ ainda participasse do evento de fabricação totalmente artesanal.

O caso mais recente, o do também já conhecido narrador Galego Sousa. Este nasceu em 1962, e em uma narração já exposta, lembra que em fins da década de 1960, descaroçava algodão com seus irmãos, para sua mãe fazer a preparação do fio para a urdidura em um pequeno engenho a mão. Galego Sousa relembra o quanto era difícil dividir o tempo entre o serviço na agricultura e o serviço da produção de redes, que sendo totalmente artesanal, exigia muito tempo dos familiares. Ele fala sobre toda a trajetória de trabalho durante a semana, como podemos observar:E a gente trabalhava é... Até no domingo, o sábado trabalhava o dia todo, e o domingo trabalhava até o meio dia mais ou menos, tanto na agricultura, quanto na tecelagem também 18.

17 Entrevista concedida por CUNHA, Maria Silva Araújo. Entrevista. (out. 2015). Entrevistador: Joyciana da

Silva Medeiros. São Bento/PB, 2015. 1 arquivo. Mp3 (22min 57s), p. 4, 6, 8, 12.

18 Entrevista concedida por SOUSA, Jaci Severino de. Entrevista. (set. 2015). Entrevistador: Joyciana da Silva

O narrador toca na questão do encontro entre o artesanal e o industrial quando fala sobre os teares de pau coexistindo com os mecânicos como podemos observar a seguir: Mas

começou tudo assim, o tear de pau que hoje não existe mais, na época era tudo tear de madeira, tinha teares aqui na cidade já industrial, tear elétrico que a gente sempre falou, mas eram poucos. 19

O narrador elucida que essas lembranças partem de quando ainda tinha a idade de quatorze anos, ou seja, por volta de 1976. O advento da tecelagem em si, se deu em São Bento a partir de 1958, quando Manoel Lúcio começou a trazer teares mais eficientes para colocar em sua fábrica. Esse processo de modernização foi longo, e como observa nosso último narrador, em 1976, ainda existiam teares de madeira, o chamado tear batelão⃰.

FOTO 02: Tear batelão.

FONTE:ROCHA, José Bolivar V. da. São Bento: estudo sobre a manufatura de redes-de-dormir. João Pessoa: edições UFPB, 1983, p. 20.

Na fase inicial de utilização do fio industrializado, o processo de fabricação continuou moldado nas experiências anteriores, ainda com status de „indústria doméstica‟, e a tessitura através dos teares de três panos, este por sua vez, em fins da década de 1940 já estava quase totalmente substituído pelo tear de cia. Em seguida, principalmente a partir de 1958 a introdução do tear batelão ofereceu modificações na produção, uma vez que transformou o caráter da prática de fabricação em nível dos artesãos. Primeiro porque houve uma inversão de papéis no processo, os homens começaram a ficar encarregados da tecelagem dos panos, uma vez que com o uso desse tear necessitava-se de maior esforço físico na sua operação, pelo fato deste ser maior e mais pesado.

O tear batelão era largo, e permitia tecer o pano na largura padrão para a confecção da rede, este também incluía o uso da lançadeira. A incorporação masculina no processo de fabricação, agora mais assíduo na tecelagem, começou a exigir fio em maior quantidade. Essas modificações não só transformou o caráter da produção, de artesanal para manufaturado, como também a prática de fabricação familiar, uma vez que estas culminaram na entrada expressiva de toda família no processo de fabricação, dando início a uma divisão interna de trabalho dentro das unidades familiares. (CARNEIRO, 2001).

No processo de transição do artesanato para manufatura das redes em São Bento, podemos analisar através da tradição oral, como o resultado dos tecelões que, reunidos sob o mesmo teto, dividem o trabalho entre os membros da família, a partir da compra da matéria- prima, produzida por um setor capitalista 20, passa por uma organização de trabalho, até a fase da comercialização do produto acabado (ROCHA, 1983).

A fabricação de redes de dormir em São Bento nasce no seio familiar, se moderniza a partir dos avanços técnicos da indústria em meados de 1960 com a incorporação dos teares mecânicos. Com o limiar do desenvolvimento do que poderíamos chamar de „indústria doméstica‟, a mão de obra passa a ser cada vez mais dividida, e englobando cada membro da família, inclusive os menores de idade, de ambos os sexos, que ajudavam na preparação de enchimento de espolas. A fase do acabamento da rede ficou a cargo das mães de família, que receberam a categoria de feiteiras⃰, elas recebiam, muitas vezes, a ajuda das moças que pertenciam àquela família, como filhas, sobrinhas e afilhadas.