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A articulação dos conceitos estruturadores com as competências específicas da História

De que modo as competências indicadas e os conceitos estruturadores apresentados se articulam para orientar a seleção de conteúdos programáticos, os procedimentos de estudos e os novos conceitos que deverão ser construídos?

Para responder, ainda que parcialmente, essa pergunta, retomamos a questão dos conceitos estruturadores. Simplificadamente, poderíamos dizer que esses conceitos – que não são definitivos – são chamados de “estruturadores” porque eles ajudam a organizar racionalmente o conjunto das expressões da vida humana, material e simbólica, em diferentes formações sociais.

História

Nós, professores, precisamos ter claro – e procurar caminhos para esclarecer os alunos – que a história que estudamos não corresponde ao passado total, integral e concretamente vivido pelas pessoas de diferentes épocas e espaços, incluindo a história de períodos recentes:

As situações concretas da vida (passada ou presente, real ou simbólica), que constituem a matéria fatual da História, são as expressões aparentes (visíveis) das estruturas organizacionais (invisíveis). Através delas, podemos desvendar a organização de diferentes sociedades, em diferentes épocas históricas, perceber suas diferenças e semelhanças, a organização do trabalho, do espaço, as atividades econômicas, as camadas sociais, as formas políticas, as mentalidades, enfim a cultura, o “contexto”. Através da comparação de contextos, podemos perceber que existem diferenças fundamentais entre sociedades da mesma época cronológica (diversidade cultural), assim como podemos perceber a transformação de uma mesma sociedade no tempo (noção de processo). Fazendo isso, estamos construindo conceitos. (Menandro, 2000, pp. 69-70).

É isso que as ciências fazem. Elas constroem conceitos por meio dos quais analisam e interpretam os dados e as informações da realidade, buscando soluções para problemas detectados: “sem conceitos nada se vê […] cada conceito que conquistamos refina e enriquece nossa percepção de mundo” (Veyne, 1983, p. 30).

O objetivo do ensino de História no ensino médio é o desenvolvimento de competências e habilidades cognitivas que conduzam à apropriação, por parte dos alunos, de um instrumental conceitual – criado e recriado constantemente pela disciplina científica –, que lhes permita analisar e interpretar as situações concretas da realidade vivida e construir novos conceitos ou conhecimentos. Ao mesmo tempo, esse instrumental conceitual permite a problematização de aspectos da realidade e a definição de eixos temáticos que orientam os recortes programáticos, bem como, apontam para novas possibilidades de criação de situações de aprendizagem.

Tendo em vista a impossibilidade de estudarmos o conteúdo total da história humana, e conscientes de que toda organização de conteúdos programáticos opera por seleção, baseada em noções cultural e historicamente estabelecidas, podemos fazer algumas comparações e apontar algumas direções.

A organização curricular tradicional da História, disseminada na maior parte das escolas, destaca alguns acontecimentos considerados como marcos, para, a partir deles, construir um quadro didático em que os acontecimentos são inseridos numa continuidade espaço–temporal linear, ordenado por uma lógica de causas e conseqüências.

Assim, por exemplo, a Independência do Brasil, pautada como item importante do conteúdo programático, é explicada por suas conexões causais com uma série de acontecimentos políticos imediatamente anteriores, ordenados em seqüência linear, como se a própria sucessão cronológica contivesse, em si mesma, a força explicativa. Essa organização se baseia numa noção de processo histórico como mudança linear, que destaca os acontecimentos singulares ou particulares, o que resulta num conhecimento fragmentado.

Se, no entanto, tomarmos a noção de processo histórico como um processo de mudança direcional, no qual os sujeitos históricos, em meio a indeterminação das

relações sociais, constroem os caminhos possíveis, inscrevendo nas diferentes dimensões temporais (conjunturas e estruturas) os acontecimentos que repercutem de modo variado nos diferentes espaços de ação (privado ou público, local, regional ou mundial) e que contêm diversos elementos (políticos, econômicos, sociais, culturais), teremos uma nova possibilidade de análise e interpretação da Independência do Brasil. Conforme a opinião de Nicolas Davies:

[…] o episódio da Independência do Brasil, em 1822, não pode ser entendido dentro da seqüência de episódios imediatamente anteriores, mas como parte da conjuntura das Guerras Napoleônicas, Revolução Francesa, Revolução Industrial inglesa, Independência dos EUA, conjuntura essa que se insere no fato estrutural, de longa duração, de constituição do capitalismo na Europa Ocidental (Davies, 2000, p. 99). Ou, também, poderíamos considerar a Independência do Brasil dentro da estrutura de desenvolvimento do capitalismo mundial em direção à interna- cionalização da economia, no contexto da formação dos Estados nacionais, destacando o potencial explicativo desse conceito para a compreensão das relações internacionais (formação de blocos econômicos) e dos problemas que se colocam para a cidadania (participação política e poder efetivo de influenciar as decisões de Estado; as identidades nacionais, étnicas e mundiais) e outras questões do mundo contemporâneo.

Os conceitos, em geral, contêm um potencial explicativo e problematizador, funcionando também como balizadores na seleção de conteúdos significativos. Em outras palavras, não é preciso partir da diversidade fenomênica que configura o campo factual da História para constituir um currículo. Pode-se fazer o inverso, isto é, partir da problematização de aspectos da existência social contemporânea que envolvem vários conceitos e daí prosseguir para o campo factual, buscando temas que colaborem com a construção de uma compreensão mais abrangente e com a tomada de posição frente as problemáticas levantadas.

Vejamos o caso do conceito de cidadania, que perpassa todas as disciplinas: Do ponto de vista da formação histórica do estudante, a questão da cidadania envolve escolhas pedagógicas específicas para que ele possa conhecer e distinguir diferentes concepções históricas acerca dela, delineadas em diferentes épocas. O significado, por exemplo, que a sociedade brasileira atual tem de cidadania não é o mesmo que tinham os atenienses da época de Péricles, assim como não é o mesmo que possuíam os revolucionários franceses de 1789. O sentido que a palavra assume para os brasileiros atualmente, de certa maneira, inclui os demais sentidos historicamente localizados, mas ultrapassa os seus contornos, incorporando problemáticas e anseios individuais, de classes, de gêneros, de grupos sociais, locais, regionais, nacionais e mundiais, que projetam a cidadania enquanto prática e enquanto realidade histórica.

A compreensão de cidadania em uma perspectiva histórica, como resultado de lutas, confrontos e negociações, e constituída por intermédio de conquistas sociais de direitos, pode servir como referência para a organização dos conteúdos da disciplina histórica. A partir de problemáticas contemporâneas, que envolvem a constituição da cidadania,

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