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1 Da Mímesis helênica à atividade mimética segundo Paul Ricœur

1.3 ARISTÓTELES E A MÍMESIS NA POÉTICA

1.3.2 As artes miméticas e seus critérios de diferenciação

Para Aristóteles, são artes miméticas a Poesia, a Escultura, a Pintura, a Música e a Dança. Analisaremos nesta seção os problemas colocados pelos modos de diferenciação entre tais artes miméticas. Lembremos que, segundo o Estagirita, elas se diferenciam pela consideração de três critérios diferentes: a) pelos meios imitativos; b) pelos objetos que imitam; c) pela maneira como imitam.

Essencialmente, são dois os meios imitativos considerados na Poética, ambos perceptuais: a visão (em que se situam Escultura, Dança e Pintura) e a audição (em que se situam Poesia e Música):

Pois tal como há os que imitam muitas coisas, exprimindo-se com cores e figuras (por arte ou por costume), assim acontece nas sobreditas artes: na verdade, todas elas imitam com o ritmo, a linguagem e a harmonia, usando estes elementos separada ou conjuntamente. (ARISTÓTELES, 1447A, 1993, p. 17)

Ao tratar dos objetos, Aristóteles não leva em consideração nada além da dança e da poesia. Enquanto esta imita ações humanas, aquela imita caracteres, estados de ânimo e ações. Imbricado aqui está o aspecto dos caracteres, segundo o qual os homens podem aparecer, na imitação, melhores, semelhantes ou piores do que o são na realidade. Essa divisão que toma o caráter como objeto é válida para todas as artes imitativas, sem exceção, embora, no caso da música, Aristóteles não forneça nenhum exemplo.

Sobre o último modo de diferenciação, considera-se somente a poesia (tragédia, comédia e epopéia), estabelecendo-se a diferença entre a maneira

narrativa (“[...] assumindo a personalidade de outros, como o faz Homero, ou na

própria pessoa, sem mudar nunca [...]”; Cf. ARISTÓTELES, 1993, p. 25) e a

dramática (“[...] mediante todas as pessoas imitadas, operando e agindo elas

mesmas.”; Cf. loc. cit.).

Seguiremos de perto, a partir deste momento, as ponderações de Cláudio William Veloso (2004, p. 71-167), sobre os três critérios de diferenciação.

Investigando o verbo miméomai (µιµέοµαι) nos capítulos iniciais da

Poética, Veloso parte da morfossintaxe do verbo, destacando que miméomai só

existe na forma médio-passiva e é sempre transitivo, exigindo um acusativo expresso ou subentendido. A forma acusativa é exatamente a que emerge do texto aristotélico no capítulo que trata da divisão segundo o objeto (ARISTÓTELES, 1993, Cap. II, p. 21-23) e aqui Veloso nada vê de novo, do ponto de vista da linguagem. Todavia, no Capítulo I da Poética (Ibid., p. 17-21), o estudioso fluminense aponta como digno de nota o emprego do dativo e de construções com

διά + genitivo, pouco usuais, apesar de já utilizadas por Píndaro, Platão (no Crátilo, 423a) e Xenofonte (Memorabilia, III 10, 2). Para Veloso, o dativo refere-se ao

mímema (µίµεµα). Segue-se daí a demonstração de que o sujeito do verbo pode ser o próprio meio: a aulética, a citarística, a tragédia imitam. Sendo mimémata (µιµήµατα) e podendo imitar, tais termos, no vocabulário e no pensamento aristotélico, não podem, segundo o analista, serem tomados necessariamente como

artefatos, como se houvesse “uma relação privilegiada entre imitação e técnica

produtiva” (VELOSO, 2004, p. 92), sendo os meios antes propriedades das coisas. No que se refere ao modo, a que Aristóteles dedica o Capítulo III (1993, p. 23-27), Veloso, talvez já enfadado, conclui secamente que “essa divisão parece dizer respeito a uma particular forma de imitação, a saber,a poesia, de modo que não poderia constituir um critério de divisão do gênero dos imitadores” (VELOSO, 2004, p. 93). Aliás, no parágrafo seguinte, Veloso condena a efetividade dos três critérios, considerando-os incapazes de configurar uma “divisão como se deve” (VELOSO, loc. cit., grifos do autor).

Apesar de entendermos a Poética como um tratado de mimética e não como um tratado sobre a tragédia, o que justifica o apurado zelo etimológico e filológico de Veloso no que diz respeito à riqueza do campo semântico de miméomai, ousamos entender — e ainda mais com um trocadilho — que o apuro não nos deve por em apuros. Senão, vejamos:

Quanto ao meio, lemos em Aristóteles (1993, p. 21):

Fiquem assim determinadas as distinções que tínhamos de estabelecer. Poesias há, contudo, que usam todos os meios sobreditos; isto é, de ritmo, canto e metro, como a poesia dos ditirambos e dos nomos, a Tragédia e a Comédia – só com uma diferença: as duas primeiras servem-se juntamente dos três meios e as outras, de cada um por sua vez. Tais são as diferenças entre as artes, quanto aos meios de imitação.

Seria insensato admitir que não há aí uma distinção entre as espécies de poesia imitativa, ainda mais quando o Estagirita vem de estabelecer diversas outras dessemelhanças atinentes ao meio imitativo, que alcançam a pintura, a música, a dança e a poesia épica.

Sobre o objeto da imitação que distingue as espécies de poesia imitativa, pomo-nos de acordo com a ressalva de Veloso, que nos adverte de que é, “na

verdade, uma divisão dos imitados, que, por imitação justamente, passaria aos imitantes” (2004, p. 94). Todavia, após investigar as ocorrências das noções de vício e virtude em outros tratados aristotélicos (Física, Metafísica, Categorias, etc.), Veloso conclui que ali são tomados como relativos — e que, portanto, não estabelecem entre si a relação de contrariedade que constitui o gênero —, o que significará que não fornecem os termos para a divisão segundo o objeto do gênero dos imitadores (Ibid., p. 102). Veloso também admite que o contrário possa ser verdadeiro e que virtude e vício constituam um gênero e que, portanto, possam transmitir, ao serem imitados, sua diferenciação aos imitadores.

Novamente, não nos parece que na Poética o problema seja determinar que traços diferenciais constituem os imitadores como um gênero, o que, contudo, seria plausível, em uma reflexão de teor metodológico em que se defende que Aristóteles, ao criticar duramente a prática dicotômica em uso na Academia, propõe um método a partir do qual se deve partir dos gêneros (Cf. Veloso, 1993, p. 78). Descartada em nossa leitura a aproximação metodológica de amplo espectro, enxergamos na

Poética a necessidade de distinguir conforme o objeto (os homens de caráter

maciçamente vicioso, virtuoso ou meramente intermediário) as espécies de poesia imitativa, sendo, mais uma vez, insensato admitir que, no contexto específico do mundo helênico de então, não se diferenciem Tragédia e Comédia conforme esses objetos da imitação.

Quanto ao terceiro e último critério, o modo de imitação, pretende Aristóteles distinguir entre poesia narrativa e poesia dramática, o que o leva também a distinguir Epopéia de Tragédia. Aqui Veloso (2004, p. 112) explora a seguinte possibilidade: havendo uma tripartição ou “bipartição com subdivisão de um de seus ramos”, não se respeita a exigência de contrariedade, havendo antes a diferenciação segundo uma contraditoriedade, que, não dando margem à existência de intermediários, levaria o raciocínio a uma divisão binária de tipo platoniano que, novamente no cenário de um método aristotélico próprio, seria indesejada.

Aqui situaremos nossa opinião sob o abrigo do estudo de Gérard Genette, “Fronteiras da Narrativa”, em que se lê: “Para Aristóteles, a narrativa (diegesis) é

um dos modos da imitação poética (mimesis), o outro sendo a representação direta dos acontecimentos por atores falando e agindo diante do público” (GENETTE, 2008, p. 266). Genette, a propósito da divisão teórica da dicção poética em Platão, enxerga, no Capítulo III de A república, a existência de dois modos puros, que são o narrativo, próprio da poesia ditirâmbica, e o mimético, próprio do teatro. À Epopéia cabe um modo misto ou alternado. Da diferenciação da divisão teórica proposta pelos dois filósofos, afirma Genette:

A classificação de Aristóteles é, à primeira vista, completamente diferente, pois reduz toda poesia à imitação, distinguindo somente dois modos imitativos, o direto, que é o que Platão nomeia propriamente imitação, e o narrativo, que Aristóteles denomina, como Platão, diegesis. Por outro lado, Aristóteles parece identificar plenamente não só, como Platão, o gênero dramático ao modo imitativo, mas também, sem levar em consideração em princípio seu caráter misto, o gênero épico ao modo narrativo puro. Essa redução pode prender-se ao fato de que Aristóteles define, mais estritamente do que Platão, o modo imitativo pelas condições cênicas da representação dramática. (2008, p. 267-268)

Veloso recusa a hipótese de Genette, não apenas ao interditar a divisão ontológico-binária platônica como método argumentativo em Aristóteles, mas também ao afirmar, categoricamente, que “[...] em momento algum de Poet. 3 Aristóteles trata da encenação” (VELOSO, 2004, p. 108). A verificação na Poética nos leva à referência que opõe o modo narrativo àquele que se dá “mediante todas as pessoas imitadas, operando e agindo elas mesmas” (ARISTÓTELES, 1993, p. 25). Ora, o simples imaginar um Prometeu imitado e “operando e agindo ele mesmo” fora do espaço cênico (ou de sua indicação pela leitura do texto) parece- nos já servir de resposta veemente à objeção de Veloso.

Genette arremata a questão dissolvendo parcialmente, neste tópico, a oposição entre os pais da filosofia, o que nos parece ser, de fato, a posição mais acertada:

A diferença entre as classificações de Platão e Aristóteles reduz-se [...] a uma simples variante de termos: essas duas classificações concordam bem sobre o essencial, quer dizer, a oposição do dramático e do narrativo, o primeiro sendo considerado pelos dois filósofos como mais plenamente imitativo que o segundo: acordo sobre o fato, de qualquer modo sublinhado pelo desacordo sobre os valores [...] (2008, p. 268).

Perfilhamos, portanto, sem maiores apreensões, a leitura que entende existirem dois modos imitativos, narrativo e dramático, a respeito de cuja existência estão de acordo Platão e Aristóteles. Dito isto, resta considerar um ponto importante do desacordo entre ambos.

Independentemente de Platão aplicar sua mímesis a todas as coisas, como um dos momentos metafísicos de sua cosmologia, e de Aristóteles propor e aplicar um uso restrito da mímesis, excluindo dele os domínios das ciências práticas e teóricas, ao tempo em que delimita seu espaço àquele das ciências da poiesis (cf. SÁNCHEZ, 2006, p. 131-166), interessa-nos entender que também há uma noção de produção indissociável da mímesis aristotélica: o processo de construção do muthos cabe inteiro no gênero das artes de produção pensadas conforme Platão no Sofista. Novamente, apesar do desacordo em foco amplo, encontram-se os dois em perfeita consonância sob um foco restrito.

Uma segunda razão se consorcia aqui à primeira. Sendo os meios imitativos essencialmente humanos, sendo seu objeto a ação vista do ângulo da essencialidade do caráter do homem e seus modos emanados de uma produção humana — e admitindo-se a Poética como um tratado de mimetologia —, é mesmo imperativo conduzir nosso raciocínio à exploração do muthos e de sua produção, como efetivo

elemento definidor da mímesis. Para fazê-lo, recorreremos a Paul Ricœur, em cujo pensamento veremos reencontrarem-se, harmoniosamente, as abordagens de Platão e Aristóteles.

1.4 PAUL RICŒUR, O MUTHOS E O MODELO TRIÁDICO DA