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1 Da Mímesis helênica à atividade mimética segundo Paul Ricœur

1.2 A MÍMESIS NO SOFISTA DE PLATÃO

1.2.2 A mímesis como produção

É nesse ponto que Marcelo Pimenta Marques, no ensaio Mímesis no Sofista

de Platão: produção, já havia superado os impasses tocados pela aporia colateral

involuntária em Iglésias, ao sustentar que:

[...] A produção é algo de múltiplo, mas ela unifica-se à medida que ela é esta potência que faz com que algo que não era seja levado a ser. Como na agricultura ou no caso do cuidado do corpo, também no caso da mimética, trata-se de compor e fabricar seres a partir

daquilo que é, mas que não é uma outra coisa, e que não era aquilo que ele vem a ser através da produção. De modo que os não-seres passam a ser pela ação da fabricação que constitui um novo ser. Nesse sentido, a produção não implica uma geração a partir do nada, do impensável contrário do ser. (MARQUES, 2001, p. 171)

Para Marques, o Sofista é um diálogo que busca definir um tipo de produtor e que, para isto, esboça uma análise das artes e, particularmente, da arte da produção. Ao fazê-lo, o Estrangeiro, que vê no sofista a pretensão de desempenhar o papel de produtor divino, estabelece diferenciações que conferem relevo ao aspecto ético- político, produzindo uma visada antropológica, distinta daquela que pode ser dita puramente cosmológica, como é o caso do Timeu.

O humano pode, legitimamente, nesse contexto grego, pretender participar da produção divina, pela imitação com conhecimento (mimética sábia). Todavia, o poeta e o sofista buscam uma participação tal através da doxomimética (imitação sem sabedoria, fundamentada na opinião), o que priva ambos da condição indispensável de êxito, que é a inteligência, o saber, o conhecimento.

Ao rebater a interdição parmenídica, portanto, Platão se fundamenta em uma distinção constituída a partir da oposição “produção divina / produção humana”, revelando que a primeira “age com inteligência através da ação de uma razão e de uma ciência”, ou seja, “é determinada por um lógos que lhe serve de medida” (MARQUES, 2001, p. 171), enquanto o sofista se diferencia do divino “pela falta de inteligência produtora e pela falta de ciência na realização de sua arte” (ibid., p. 174).

Tanto A hora da estrela como A rainha dos cárceres da Grécia oferecem a oportunidade de retomar a distinção entre mimética sábia e doxomimética, se observarmos o problema sob o ajustamento que a diferença entre os contextos exige. Parece-nos que, em ambos os casos, o problema não pode mais ser a “falta” de ciência na arte, uma vez que os romances em estudo não se situam em um contexto social em que a arte seja um meio privilegiado de formação geral dos indivíduos. Trata-se, principalmente, de estabelecer as vicissitudes do “lógos que

lhe serve de medida”, ainda mais quando este lógos é deliberadamente posto em questão. Esta discussão será retomada no primeiro capítulo da Segunda Parte deste trabalho. Retomemos, por ora, o raciocínio que vínhamos desenvolvendo.

Outro elemento distintivo importante, igualmente ignorado por Iglésias, diz respeito ao problema da imagem no conjunto do pensamento de Platão, cuja consideração leva, necessariamente, ao reconhecimento da singularidade da elaboração do tema no Sofista. Enquanto no Timeu e em A república pode-se entender, como bem demonstra Marques, que a distinção entre imagem e coisa se vai tornando secundária na exata medida em que “[...] a própria coisa torna-se imagem face à forma inteligível que é seu paradigma [...]” (ibid., p. 176), no Sofista “[...] a alteridade da imagem e da coisa é precisamente o que é visado no primeiro plano, sendo que a predominante é a perspectiva da participação das formas entre si [...]” (ibid., p. 176). A maior contribuição deste estudo de Marcelo Marques parece- nos decorrer desta distinção: no Sofista acrescenta-se uma segunda perspectiva ao problema analisado nos outros dois diálogos, que é a análise da arte da produção mimética no contexto da participação das formas aos gêneros superiores (“Ora, os mais importantes desses gêneros são precisamente aqueles que acabamos de examinar: o próprio ser, o repouso e o movimento”, Cf. p. 178)6 e não mais unicamente a visada primeira, que analisa a produção mimética sob o aspecto da noção de que o Ser das coisas se dá por participação nas formas. Partilhando dessa mesma perspectiva complexificadora, Jovelina Maria Ramos de Souza propõe entender a mímeses platônica como “[...] o resultado tanto de uma identificação como de um movimento de tensão entre o modelo e a cópia [...]” (SOUZA, 2003, p. 54).

Apesar da célebre passagem platônica sobre a imitação da imitação em A

República, é no Sofista que se encontram a consideração mais sistemática sobre a mímesis, considerada em si mesma. Reconhecemos que é grande o número de

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Trata-se do fragmento 254D. Sobre o exame da combinação entre os gêneros supremos, veja-se a dissertação de André Antônio Ribeiro, A filosofia da linguagem em Platão (2006), principalmente a seção 4.8, “Os ‘gêneros mais importantes’”, p. 116-119.

pensadores7 que se concentram, ao tratar do tema, naquele primeiro texto, lançando um silêncio, que nos parece injustificável, sobre este último. Ao acolher a assertiva de Marcelo Pimenta Marques, que parte do pressuposto de que a leitura da mímesis platônica centrada do distanciamento da verdade contida no modelo ideal tanto é célebre quanto o é equivocada, é que privilegiamos o Sofista nesta seção.

Convém ainda esclarecer em que ponto se baseia a percepção do equívoco a que acabamos de nos referir. Primeiramente, no que toca à eleição do Sofista, atentemos para a evidência contida no fato que, ao submeter a imagem a um rigoroso exame, Platão retoma e aprofunda a problemática que fora tratada em A

república, cuja perspectiva não é primeiramente ontológica, mas ético-política. No Sofista, inverte-se a mirada e, sem negar a perspectiva ético-política, a perspectiva

ontológica assume o primeiro plano8:

A mímesis sofística é produção de imagens em três níveis: imagens dos seres (simulacros), imagens do próprio produtor (do sofista como sábio) e do seu interlocutor (o jovem que acredita estar em contradição quando não está). A produção de imagens é uma re- fabricação dos seres, inclusive dos humanos, que, por suas

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Cf. RICŒUR, Paul. Temps et récit, 1983, p. 72: “[...] Retenons de Platon le sens métaphysique donné à la mimèsis, en liaison avec le concept de participation, en vertu duquel les choses imitent les idées, et les œuvres d´art imitent les choses. Alors que la

mimèsis platonicienne éloigne l´œuvre d´art de deux degrés du modèle ideal qui en est le

fondement ultime, la mimèsis d´Aristote n´a qu´un espace de déploiement: le faire humain, les arts de composition.” Cf. também LIMA, Luiz Costa, Mímesis: desafio ao pensamento, 2000, p. 31: “Assim como tiveram em Platão seu adversário de respeito, a mímesis antiga encontrou em Aristóteles seu grande sistematizador. [...] Como textos poéticos, a exemplo dos homéricos, constituíam a base da educação grega, ao filósofo [Platão, ESM] repugnava pensar que os estudantes 'se tornariam trapaceadores'[...] e que alguns deles fosse logrado pela pretensão de conhecimento, 'quer por parte dos poetas, quer pelos poetas em nome de seus personagens'” [citando Woodruff nos trechos entre aspas simples, 1992, p. 82, ESM]. 8

Comentando as técnicas examinadas pelo Estrangeiro, Marques afirma: “Em cada uma das técnicas, trata-se de seres humanos e de suas atividades, sobretudo de suas trocas. Esse plano antropológico constitui um fio condutor que atravessa o diálogo, o que nos permite afirmar que, mesmo no Sofista, articulado ao plano ontológico, há sempre uma dimensão ético-política na qual se enraíza a pesquisa sobre as formas e que dá sentido a ela.” (MARQUES, Marcelo Pimenta. Platão, pensador da diferença: uma leitura do Sofista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 80)

implicações ético-políticas, deve ser pensada e apreendida em seu ser último, o ser do não ser, que só pode ser o ser da diferença. (MARQUES, 2001, p. 179)

O problema, portanto, está muito além da imagem generalizada (e redutora) de Platão como “inimigo da arte”. Neste diálogo, ainda segundo Marques, o lógos torna-se mais denso e passa a ser visto como:

[...] um modo de agir que implica o outro homem naquilo que ele tem de melhor, a parte inteligente e reflexiva de sua alma; um modo de pensar através da oposição de discursos que põem em questão a oposição das formas inteligíveis através da alteridade inteligível; um modo de dizer os seres que os separa para poder entrelaçá-los segundo suas determinações inteligíveis. (MARQUES, 2001, p. 178).

É, não esqueçamos, justamente através do lógos humano que a produção dos poetas pode conduzir ao falso. Mas, se para isso se servem eles da mímesis, também é imperativo lembrar o conjunto diverso de usos e sentidos que a linguagem mimética possui em Platão9. Portanto, em segundo lugar e como motivo mais geral, o equívoco que reduz o problema da mímesis aos termos do que se trata no Livro III e no Livro X de A república, funda-se no não-reconhecimento do sentido amplo da linguagem mimética no pensamento de Platão, sobretudo, se pensarmos que, enquanto para Aristóteles — na tradição hegemônica, embora questionável, constituída pelos seus mais importantes estudiosos e comentadores — o problema advém exatamente da refutação desta mesma interpretação reducionista, em Platão a linguagem mimética se impõe como desafio ao pensamento filosófico, tanto como

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Conferir o excelente trabalho, já referido, de Jovelina Souza, sobretudo entre as páginas 133-137.

problema teórico quanto formal, haja vista que Platão, para além da complexidade intrínseca que o tema assume em sua obra, em seus diálogos “faz exatamenteo que ele condena nos poetas: ele simula, se esconde atrás de seus personagens, ou mesmo, se faz passar por eles, num ato que é todo mimético” (SOUZA, 2003, p. 133).

Philippe Lacoue-Labarthe também não deixou de ver que A república é uma narrativa mista. Lembramos, fazendo eco ao seu pensamento, que a complexidade do problema não se resume nisso. Reside, certamente, na condição paradoxal de Platão ter elaborado uma fascinante perseguição ao problema da mímesis e, mesmo sendo mais plausível que a tenha deixado sem resolução, tenha triunfado aos olhos da posteridade, precisamente, o texto que não revela o momento mais feliz de sua arguta reflexão, como é o caso, infelizmente, de A república, no que concerne à

mímesis.