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1 Da Mímesis helênica à atividade mimética segundo Paul Ricœur

1.2 A MÍMESIS NO SOFISTA DE PLATÃO

1.2.1 Mímesis: entre técnica produtora de imagens e discurso

Em um breve, mas interessante, ensaio, Maura Iglésias estabelece, a partir da análise da parte central do Sofista, de Platão, a relação de exegese que propõe uma perfeita identidade entre o discurso como tessitura de idéias e a mímesis como “técnica produtora de imagens”. Os termos dessa relação se encontram já neste trecho inicial da argumentação:

Ora, o que Platão recrimina sobretudo no sofista é justamente essa pretensão ao saber total. A conclusão que se segue é que o saber total de que se gaba o sofista só pode ser um saber aparente: "Ele parecer ser omnisciente, sem ser, já que ser é impossível" (233c). Logo, esse poder da sofística, de parecer tudo conhecer, só pode ser produto de uma brincadeira. E entre as brincadeiras, é a mimética (aqui, tomada como sinônimo de eidolopoiike techne), da qual ele toma como exemplo a pintura, que o Estrangeiro encontra ter mais afinidades com a técnica que está em ação na sofística. Além do fato de a pintura produzir aparências da realidade, a característica dessa arte que chama sua atenção é sua extensão: a pintura pode produzir qualquer objeto, por uma arte única (233d9). A razão disso é que ela cria imagens dos objetos e não os objetos reais. O mistério de seu poder universal se esclarece: damo-nos conta de que, como no caso de todas as outras artes, só há um produto da arte da pintura: as imagens. A sofística então só pode ser a mimética no discurso, uma técnica da palavra [...] (IGLÉSIAS, 2006, p. 146-147).

Daí deriva um debate já familiar: o afastamento da verdade e a necessidade de distinguir os tipos de mimética do discurso, uma vez que, no contexto do Sofista, seria preciso definir com exatidão em que tipo de mimética do discurso se refugia o sofista. O Estrangeiro de Eléia introduz, a esse propósito, a seguinte divisão:

a) [eikastiké tékhne]: “A primeira arte que distingo na mimética é a arte de copiar. Ora, copia-se mais fielmente quando, para melhorar a imitação, transportam-se do modelo as suas relações exatas de largura, comprimento e profundidade, revestindo cada uma das partes com as cores que lhes convêm”. (PLATÃO, 1983, p. 153)

b) [phantastiké tékhne]: “Mas que nome daremos ao que parece copiar o belo para espectadores desfavoravelmente colocados, e que, entretanto, perderia esta pretendida fidelidade de cópia para os olhares capazes de alcançar, plenamente, proporções tão vastas? O que assim simula a cópia, mas que de forma alguma o é, não seria um simulacro?” (PLATÃO, 1983, p. 153)

A dificuldade a superar, então, seria a de admitir o sofista como produtor de imagens refutando, simultaneamente, a orientação metodológica de Parmênides, que separa o Ser do Não-Ser. Iglésias sustenta, com sagacidade, que, ao tratar da forma específica em que o Não-Ser é, sobre a qual repousa a possibilidade de acusar o sofista de produzir discursos e imagens falsos, o problema-em-si da imagem fica relegado a um segundo plano discretíssimo, sobretudo ao concluir que, sob a sombra da proibição imposta por Parmênides, aquilo que se tratará no Sofista passa a ser “[...] o não ser compreendido como discurso falso, e não como imagem [...]” (IGLÉSIAS, 2003, p. 148). Voltaremos a comentar esta conclusão da ensaísta mais adiante.

Para Iglésias, na parte central deste diálogo de Platão, relativamente ao conjunto de temas ali inter-relacionados, a noção de imagem não é explícita, o que faria dela, aparentemente, uma noção não-operacional. Para esta estudiosa:

Tudo que Platão desenvolve sobre a natureza do não ser como ser outro, a dedução dos gêneros supremos, a sumploke ton eidon, a estrutura do discurso, o mecanismo de explicação de como se dá o discurso falso, a partir da noção do não ser como ser outro, tudo

absolutamente que constitui a parte central do Sofista, parece ter uma interpretação que dispensa inteiramente a noção de imagem. (Ibid., p. 149)

Contudo, o esforço de Maura Iglésias se baseia, exatamente, em provar o contrário, ou seja, a essencialidade da noção de imagem não apenas para a compreensão da passagem do texto platoniano, mas para a compreensão da natureza do discurso falso, do discurso em si e da própria realidade em Platão.

A essência do raciocínio de Iglésias, em seu ensaio, poderia ser assim sintetizada: pelo menos depois do Fédon, as coisas sensíveis, na teoria de Platão, não são o que são apenas pela relação de participação que mantém com as idéias – transcendentes em si –, mas também por uma relação que poderia ser dita “de semelhança”. Seria, assim, essencial à teoria platônica a existência de seres “que se caracterizam por não serem o que são mas por serem a semelhança de algo que não são” (IGLÉSIAS, 2003, p. 150), um modelo que a imagem faz aparecer e com o qual tem uma ligação natural e não convencional, na qual se baseia a sua referência ao modelo.

E como ocorre o tratamento do problema da imagem no Sofista? Evitando a petição de princípio que consistiria em afirmar que as imagens existem porque as coisas sensíveis seriam imagens das idéias transcendentais, Platão faz derivar, como sabemos, a discussão ao problema da arte (tékhne) mimética, em cujo modo de organização localiza conceitualmente a doxomimética e a mimética sábia: “Dentre os que imitam, uns conhecem o objeto que imitam, e outros assim fazem sem o conhecer. Ora, que maior princípio de divisão poderemos estabelecer senão este do não-conhecimento e do conhecimento?”(PLATÃO, 1983, p. 194).

Assim, enquanto os deuses, que tudo conhecem ou podem conhecer, produzem “de um lado, a coisa em si mesma; e de outro, a imagem que acompanha cada coisa” (PLATÃO, 1983, p. 193), os homens, cujo conhecimento obedece a limites, produzem cópias, por um lado, e simulacros, por outro, no caso dos que não-conhecem. Tudo quanto se disse até este ponto é explicitamente referente às

artes de produção, sobretudo aquelas que a divisão proposta pelo Estrangeiro classifica de produção humana, que é de onde provêm, afinal, o real como cópia e o falso como simulacro. Mas é nessa deriva que Iglésias enseja fixar a noção da imagem, oculta sob outro nome: “E o que é isso que é necessariamente imagem? A resposta me parece clara: é discurso, tanto o verdadeiro quanto o falso” (IGLÉSIAS, 2003, p. 153, grifo nosso).

Platão já tratara do tema em Crátilo, mas a novidade no Sofista seria uma dupla natureza do discurso, que Iglesias pretende que seja assimilada à noção de imagem:

Diferente do logos do Crátilo, que funciona em bloco, e que só é discurso daquilo que é dito na sua totalidade, a convenção que liga um onoma à sua referência estabelece o vínculo do discurso com a coisa de que ele fala independentemente daquilo que dessa coisa se fala; a convenção que estabelece a referência do rhema5 com aquilo

que é dito sobre o onoma garante que algo seja dito sobre algo independentemente do fato de ser ou não estabelecida uma relação tal qual existe no real; mas no nível dessa tessitura que se realiza entre onoma e rhema haverá ou não imitação fiel da tessitura efetivamente existente no real (inteligível ou sensível). De qualquer forma, imitação sempre haverá no nível da tessitura de onoma e

rhema, desde que o discurso seja significativo, uma vez que sempre

há relação (de ser ou de não ser) entre os termos tecidos. Alguma coisa o discurso vai fazer aparecer, verdadeira ou falsa. No nível da tessitura, pois, o discurso sempre será imagem, fiel ou distorcida, discurso verdadeiro ou discurso falso. (IGLÉSIAS, 2003, p. 155)

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Frédéric Nef nos ajuda a compreender os dois termos, onoma e rhema. O primeiro é um nome, conforme a definição colhida no Crátilo: “a apelação que se atribui a cada objeto”. O segundo, mais sutil, designa o que entendemos por predicado (ou verbo, entendido como categoria gramatical): tudo que se pode dizer de alguma coisa a um sujeito. Em Nef, podemos encontrar parte substancial do raciocínio de Iglésias, sobretudo na constatação de que o discurso jamais é sobre nada e possui a qualidade (poion) de ser verdadeiro ou falso, o que, em outros termos, é também a admissão de que Platão consegue refutar Parmênides, explicitada na conclusão que assevera que, “[...]ao redor de cada realidade há, de certo modo, muitos seres e muitos não-seres” (Platão, 1983, p. 189). Cf. NEF, Frédéric. A

Parece-nos que, todavia, estaríamos ainda longe de dar como demonstrado, no percurso da elaboração de Iglésias, o estado conceitual da mímesis como “técnica produtora de imagens” em sua relação com o discurso, por fortes razões metodológicas.

Em primeiro lugar, sem atribuir demérito à eficiente tessitura argumentativa da autora, não podemos deixar de entender que o raciocínio de Iglésias conclui no ponto em que deveria ter tido seu início: o discurso engendra, pela imagem, proposições nas quais é forçoso reconhecer a existência de relações de Ser ou de

Não-Ser. Mas a redução da imagem ao discurso não se demonstrou de modo

satisfatório.

Ainda que consintamos em ser justo admitir a relação imagem-discurso, seria grave equívoco deixar de admitir também que na passagem do Sofista que vai de 259E a 264B, na qual se discorre longamente sobre as propriedades do discurso, o termo discurso quase não se diferencia de sentença elementar, proposição ou frase-

mínima. O problema da mímesis pareceria assim estar posto em Platão como um

exercício lógico em que se atribui o valor verdadeiro ou falso a um oceano de proposições.

Também não incorreríamos em erro se afirmássemos que todo o contexto do intervalo entre 259E e 264B tem como motivação o enredamento digressivo- argumentativo prévio para a distinção entre o pensamento, a opinião e a

imaginação, como “fontes” possíveis do discurso e, simultaneamente, mas sob

outro aspecto, como “gêneros suscetíveis, em nossas almas, tanto de falsidade como de verdade [...]” (PLATÃO, 1983, p. 185-190). Note-se, portanto, que a dimensão em que transcorre o trecho do diálogo é ontológica e não lógica.

Sem diferenciar rigorosamente pensamento, opinião, imaginação e discurso, ao afirmar-se que este último é imagem — por fazer sempre algo, verdadeiro ou falso, aparecer — também se está igualmente obrigado a asseverar que pensamento,

opinião e imaginação são, de tal modo, também eles imagem “em que haverá ou

sensível)”. Se for assim, com tudo sendo imagem, tudo passa a ser também discurso e pouco valor se tira do esforço definitório levado a cabo pela ensaísta.

É, além disso, necessário dar relevo ao fato de que Platão teria tomado a cautela de não apresentar como idênticos a imagem como produto e a imitação como processo, como bem se pode depreender do trecho a seguir, em que o Estrangeiro de Eléia, alheio à consideração analítica do mimema, afirma:

Eis, pois, o que ficou decidido: dividir sem demora a arte que produz imagens e, avançando nesse esconderijo, se, desde logo, nos aparecer o sofista, apanhá-lo conforme o edito do rei, entregando-o ao soberano, e declarando-lhe a nossa captura. E se, nas sucessivas partes da mimética, ele encontrar um covil onde esconder-se, persegui-lo passo a passo, dividindo logo cada parte em que se resguarde, até que seja apanhado. [...] (PLATÃO, 1983, p. 152- 153)

O Estrangeiro divide a produção em divina e humana, em um sentido e seus produtos em realidade e ilusão, por outro. Não lhe escapa que os deuses produzem, eles também, imagens. São elas todas verdadeiras, por serem divinas? Para o Estrangeiro, ao lado de cada coisa real, “vêm colocar-se suas imagens, que não são mais suas realidades e que também devem sua existência a uma arte divina” (PLATÃO, 1983, p. 193). O mesmo vale para as imagens oníricas e para os simulacros naturais e, por assim dizer, espontâneos, como as sombras projetadas pelo fogo. Da imagem como produto tanto podem participar o divino como o humano, mas da imitação como processo é justo dizer que, no discurso do Estrangeiro, se trata da parte em que é somente arte de produção humana e que é dela que ele se ocupa. Se toda e qualquer imagem, por permitir a emersão do real ou do falso, fosse assimilável à noção de discurso, estaria Maura Iglésias devendo a demonstração de sua hipótese assimilatória no caso das imagens que participam da produção divina.

O raciocínio de Iglésias, por fim, ignora o modo como o procedimento das divisões ontológico-binárias levado a cabo pelo Estrangeiro de Eléia conduz o diálogo ao seu objetivo primordial: aquilo que Maria Carolina Santos (2001, p. 279) chama de “apreensão da positividade do Não-Ser, essencialmente diferente da do Ser, para além dos pontos ambíguos impostos como limítrofes pela sofística”. O propósito de Platão seria, portanto, bem diferente da proposição do discurso como imagem, o que se comprova pelo argumento incontestável de que a categoria do discurso, apesar de participar do raciocínio desenvolvido no diálogo, esteja fora do alcance daquelas mesmas divisões ontológico-binárias, das quais não escapa, todavia, a mimética como técnica produtora de imagens.

Ao apreender a positividade do Não-Ser e ao conceder a mímesis um estudo mais sistemático, nos termos em que o faz no Sofista, Platão supera, de modo surpreendente, a dimensão ético-política com que abordou o tema em A república. Agora, o grande filósofo permite, inequivocamente, observar o trabalho do artista sob o ponto de vista do problema da criação.