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A teoria protomental de Antonio Imbasciati na Psicologia Cognoscitiva e a primazia do processo

2 DA REPRESENTAÇÃO E DE SEUS LAÇOS COM A AÇÃO E COM A IMAGEM

2.2 A REPRESENTAÇÃO COMO CONCEITO NA PSICANÁLISE E NAS PSICOLOGIAS COGNOSCITIVA E SOCIAL

2.2.3 A teoria protomental de Antonio Imbasciati na Psicologia Cognoscitiva e a primazia do processo

Muitos teóricos admitem que a oposição célebre entre afeto e cognição deve ser considerada como um sério empecilho para a intersecção entre o

contributo da Psicanálise e o da Psicologia e outras áreas de conhecimento. Antonio Imbasciati (1998), o renomado psicanalista italiano que elaborou a chamada “Teoria do Protomental”, é um dos mais veementes críticos de tal dicotomia e, na busca pela superação heurística do que ele considera insuficiências da elaboração freudiana, alcançou conclusões de grande relevância, apesar do caráter polêmico de suas formulações.

Para o psicanalista italiano, tanto o afeto quanto os processos cognitivos podem ser considerados igualmente inapreensíveis e pouco diferenciáveis, seja no que se refere aos seus processos constitutivos, seja no que atine ao “funcionamento determinante para as condutas humanas” (1998, p. 13). Dessa distinção dicotômica entre afeto e cognição derivam outros pares opositivos: afeto e representação, representação de palavra e representação de coisa... Imbasciati afirma ser impossível considerar afeto e representação como concepções homólogas, do que decorre ser imperativo considerar questionável a oposição dicotômica entre os dois conceitos:

A psicanálise nasce e se desenvolve como método para a investigação precípua dos afetos, todavia a definição de afeto, ao menos nos escritos de Freud, é dada por sabida e nunca enfrentada de modo satisfatório [...]. Particularmente, Freud fala sempre de afetos inconscientes, mas ao esboçar uma definição sustenta que os afetos, para existirem, devem ser conscientes [...]: a paradoxal contradição advém da diferença entre o Freud clínico, que trata extensamente dos afetos inconscientes, e o Freud teórico, que aceita a definição do senso comum, na qual os afetos existem enquanto vivenciados pela consciência, reservando a sua teorização para as argumentações que se referem à teoria energético-pulsional. Aqui, de fato, o afeto é concebido em termos dinâmicos e contraposto à ideação descrita em termos representacionais: o afeto é um quantum da energia pulsional, representante psíquico da pulsão, enquanto os processos ideativos estão ligados ao depositar-se de traços mnêmicos; o primeiro daria força e qualidade funcional aos segundos, no conceito de investimento. A repressão agiria sobre a representação da palavra, deixando intacta a representação da coisa que, impedida portanto de ser consciente, continuaria ativa sob a força do afeto. (IMBASCIATI, 1998, p. 15-16)

A teorização de uma psicologia psicanalítica (ou metapsicologia) parece ter levado Sigmund Freud a buscar uma solução teorética que seria totalmente distinta da reflexão conexa à sua atividade como clínico. Na clínica, segundo Imbasciati, o valor semântico do termo Vorstellung deriva da idéia de encenação teatral e “deixa pressupor um processo de tipo criativo e estruturante comparável àquele que leva um escritor a traduzir em forma teatral os significados interiores, que ele quer transmitir” (1998, p. 20). Já no aspecto teorético, o termo representação surge atrelado ao afeto quando se trata de discutir “como a realidade mediada pelos nossos sentidos está conservada em traços mnêmicos” (1998, p. 21).

Este raciocínio demonstra como o trabalho de descrição do campo de ação conceitual da representação em Imbasciati elastece, com vantagens evidentes, o contexto psicofisiológico de que emergem as propostas de conceituação de Laplanche e Pontalis e, sobretudo, a de Fábio Thá. Subjaz a essas soluções conceituais a idéia de que, em alguma medida, o cérebro se concebe como uma máquina dotada de um mecanismo que se encarrega de reter na memória os fatos oriundos da atividade da percepção para torná-los, posteriormente, cognição. O conceito psicofisiológico focaliza a representação sob a moldura de um processo

em entrada, enquanto o conceito fixado nos estudos clínicos focaliza-a como um processo em saída. Embora não se ocupe de pô-la em relevo, Imbasciati faz uma

importante distinção:

[...] O conceito clínico, sobreposto àquele cultural de encenação, é exclusivamente psicológico, enquanto o conceito usado na teorização é psicofisiológico: o primeiro, de caráter eminentemente abstrato, implica um processo criativo complexo, como podemos constatar em nível interpessoal; o segundo se refere, ao contrário, a um suposto mecanismo neurofisiológico, concebido como relativamente mais simples, mais concreto, possível de ser constatado com os meios e os instrumentos das ciências biológicas. O mesmo termo no primeiro caso é extraído por analogia da linguagem da cultura literária, enquanto no segundo é tomado da linguagem da

neocultura neurológica que estava se firmando na época. (1998, p. 21)

Não é, portanto, apenas do universo da pesquisa neurológica e de sua expressão psicofisiológica que, na obra freudiana, emerge o conceito de representação. O universo da criação literária tem — como não apenas Imbasciati teria demonstrado — larga importância no pensamento freudiano, embora sejam raras as referências à sua contribuição para a teoria da representação nesse campo sobreposto da Psicologia e da Psicanálise. A síntese de Imbasciati é de inegável valor heurístico:

O conceito que Freud tem em mente quando fala de representação em sentido psicofisiológico (de resto, ele não define o termo nem o diferencia daquele de imagem, ou mais genericamente, de idéia, que são mais especificamente psicológicos) é tomado do uso unívoco e indefinido desse termo nos ambientes científicos do início desse século, em conseqüência de uma extrapolação daquilo que a neurofisiologia da época andava estudando e da aceitação consensual de uma “teoria implícita” (isomorfismo) sobre o funcionamento mental em confronto com a realidade externa. Essa teoria não possui hoje mais nenhum reconhecimento e portanto também o conceito de representação, na acepção que Freud opõe à de afeto, tem de ser revisto. (1998, p. 23)

Do entendimento que Imbasciati extrai, em sua proposta de revisão, a base vem a ser a distinção que a moderna neurofisiologia permite fazer entre códigos mnêmicos (com os quais a representação pode ser relacionada e com os quais manteria uma relação abstrata de equivalência) e imagens (que são tidas por esquemas ou por uma “ordem abstrata que inferimos no funcionamento mental [...] e que nos diz que foram estabelecidas correspondências operacionais entre elementos da realidade externa e símbolos internos, usados pelo sistema mente

para operar”) (1998, p. 23). Também os traços mnêmicos, segundo o psicanalista italiano, não são mais encarados como marcas passivas e/ou capazes de manter em si reproduções de realidades externas, admitindo-se que o caráter permanente da experiência externa e da reelaboração interna, como um fenômeno contínuo, impõem ao traço mnêmico uma essência de processo em transformação contínua.

O sentido geral que se extrai do esforço de elastecimento promovido pela revisão conceitual de Imbasciati pode ser descrito em três registros distintos mas mutuamente implicados: uma acepção geral, uma dimensão funcional e outra estrutural.

Em sentido geral, a representação indica maneiras específicas e diversas com que a experiência do indivíduo pode ter-se elaborado, “de forma a representar o mundo e a si mesmo com o objetivo específico de uma interação eficaz do indivíduo com a realidade.” Também entende como representação “toda e qualquer estrutura funcional que venha a ser construída como constituinte elementar do sistema psíquico”. Por fim, Imbasciati também entende por representação “a função [...] pela qual no sistema mente são estruturados, em alguma memória, aspectos transformados, [...], do mundo com o qual se entra em interação, assim como aspectos do próprio Eu que com tal mundo entram em relação” (1998, p. 7). Quando falamos, por exemplo, de loucura em A rainha dos

cárceres da Grécia, somos capazes de ali identificar componentes experienciais

conteudizáveis pelos quais reconhecemos como parte da realidade a condição individual dos que chamamos de loucos. A mesma situação pode ser, para ilustração da simetria, colocada pelos conteúdos experienciais que nos permitem identificar em A hora da estrela a pobreza. “Reconhecemos” porque o fenômeno da representação inscreve em nossa mente aspectos de nossa experiência, os quais somos capazes de resgatar com auxílio da palavra ou da imagem.

Nota-se como, em graus sensivelmente variados, as três definições contêm o mesmo marco diferencial, a idéia de “processo em saída”, cujo rendimento heurístico na interpelação do texto literário é de largo alcance, ainda mais se se pode dizer que, muito freqüentemente, quando se recorre, em análise literária, ao termo representação, dada a sua associação implícita com a idéia de imagem, está-se falando, ainda que involuntariamente, de um mecanismo de percepção

acionado internamente por traços mnésicos e externamente por imagens mnésicas, o que nos aprisionaria no esquema isomórfico que foi determinante na neurofisiologia do início do século XX, hoje relegado ao abandono.

2.2.4 Um momento da Psicologia Social: Erving Goffman e a