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As capitulações públicas e os esponsais das princesas

III. Capítulo O duplo matrimónio ibérico: um jogo de espelhos

1. A “Paz Nupcial” e a ideia de um duplo casamento

1.3. As capitulações públicas e os esponsais das princesas

«Fiel [a]liança a correspondencia fia Do acazo que pareçe misteriozo No que em Janeiro em vos Lisboa via Em Dezembro Madrid ve generoso [...] Que unidas dos vassalos as vontades Bem comprovão a união das Magestades»826.

Há muito que D. João V mandara o seu Embaixador em Madrid espiar aquela Corte em pormenores relativos à forma e ao cerimonial das escrituras públicas das capitulações matrimoniais e esponsais das princesas. O rei estava especialmente desejoso por saber quem seriam as testemunhas públicas nomeadas por Filipe V para o representarem a si e ao seu filho em Lisboa, pois considerava não haver em Portugal castelhanos com “gabarito” e à altura desta representação. Julgava da mesma forma que os fidalgos portugueses em Madrid, nem mesmo aqueles que compunham a família do Marquês de Abrantes, tinham dignidade suficiente para o representarem a si e ao seu filho, D. José, nas capitulações matrimoniais deste último com a infanta D.

822 Vide Carta do Secretário de Estado para o Marquês de Abrantes, Lisboa, 7 de Outubro de 1727. BNP, Reservados, Cód. 9562, fol. 195v.

823 Vide idem, ibidem, fol. 195v. D. João V sugeriu 21 de Novembro, dia da apresentação da Nossa Senhora ou 23 de Janeiro, data em que o próprio rei de Portugal celebrava os seus esponsais.

824 Vide idem, Lisboa, 2 de Dezembro de 1727. BNP, Reservados, Cód. 9562, fol. 223v.

825 Vide Correspondência do Marquez d’Abrantes com o Conde de Tarouca [...], Madrid, 15 de Dezembro de 1727. ANTT, MNE, Caixa 913, Caixa 4, fol. 47.

826 Vide Breve Relação da publica audiencia que na Caza Real das Embaxadas teve del Rey de

Portugal em huã das Cortes de Lixboa o Excelentissimo Senhor o Senhor Marques de los Balbazes

Mariana Vitória827. Solucionou-se esta questão encarregando-se os dois Embaixadores português e castelhano de convidar os cinco elementos da nobreza de cada uma das Cortes, que lhes parecessem dignos para representar o seu soberano naquela função828.

As prerrogativas de reciprocidade inquietavam particularmente D. João V. Por esse motivo, procurou obter informações acerca do cerimonial que presidiria a assinatura das capitulações matrimoniais do seu filho, D. José, com a infanta espanhola em Madrid. Solicitou informações sobre o espaço onde decorreu aquela cerimónia, procurando saber se existia algum equivalente no seu palácio em Lisboa, a decoração e a disposição de determinados objectos de aparato (como o dossel real), a posição da família real espanhola (se assistiu sentada ou em pé), a forma como decorreram as assinaturas, etc829.

Na mesma tarde do dia da entrada pública do Marquês de Abrantes em Madrid (25 de Dezembro de 1727), numa sala do Alcazár, o Marquês de la Compuesta, Secretário do Despacho da Justiça, leu em voz alta aquelas capitulações matrimoniais na presença de Filipe V, da sua família e das testemunhas nomeadas para a ocasião830. Numa mesa separada dos reis católicos, o Marquês de Abrantes assinou aquele acto público colocando cerimoniosamente um joelho no chão para o fazer831. Depois disto, o enorme cortejo que assistiu ao mesmo dirigiu-se ao quarto de D. Mariana Vitória, onde o Embaixador português teve a oportunidade de lhe entregar um retrato do seu esposo, o príncipe D. José, brincando com a pequena infanta, dizendo-lhe que não lhe diria quem nele estava retratado, pois sabendo quem era poderia não querer aceitá-lo. Depois destas palavras e de uma breve pausa, relatou o Marquês de Abrantes que a filha de Filipe V lhe respondeu: «no haré tal, que lo estimo mucho», saindo depois «Sua Alteza com elle no peito»832.

827 Vide Carta de Diogo de Mendonça Corte Real para o Marquês de Abrantes, Lisboa, 7 de Agosto de 1727. BNP, Reservados, Cód. 9562, fols.145v-146

828 Vide Ofício do Marquês de los Balbases para o Marquês de la Paz [?], Lisboa, 27 de Dezembro de 1727. AHN, Estado, Legado 2517, fol.4.

829 Cf. Cartas do Secretário de Estado e do Padre António Baptista para o Marquês de Abrantes, Lisboa, 20 e 23 de Dezembro de 1727 e 8 de Janeiro de 1728. BNP, Reservados, Cód. 9562, fols. 245v- 259.

830 Vide Relação da chegada, entrada e audiência pública do Marquês de Abrantes em Madrid. BNA, Manuscrito 54-IX-18, nº 164, fols.1-2v.

831 Vide Despacho do Marquês de la Paz para o Marquês de los Balbases, [Madrid], [Dezembro de 1727]. AHN, Estado, Legado 2517, fol. 2v.

832 Vide Relação da Embaixada do Marquês de Abrantes em Madrid. BNP, Reservados, Cód. 418, fol. 74v.

A 10 de Janeiro de 1728, realizava-se em Lisboa a função análoga referente ao casamento de D. Maria Bárbara com o príncipe espanhol, D. Fernando. Os dois Embaixadores de Filipe V apresentaram-se no palácio real trazendo vários coches, acompanhados por vários criados vestidos com as mais vistosas librés, aparato não muito distinto daquele com que, quatro dias antes, havia o Marquês de los Balbases executado a cerimónia da sua entrada pública833. Dizem-nos as fontes que a nobreza portuguesa estava também naquele dia «summamente luzida com magníficos vestidos de ouro, e prata»834. Na sala das Procissões, o Secretário português, Diogo de Mendonça Corte Real leu as capitulações matrimoniais. Apesar deste espaço se encontrar “protocolarmente” divido em duas partes, aquela que correspondia à família real portuguesa destacava-se pela riqueza da decoração e pela subtil altura das cadeiras onde se sentaram os seus membros835 . Uma vez que, em Madrid, o Duque de Ossuna precedera o lugar do Embaixador português, Marquês de Abrantes, (des)reciprocamente em Lisboa, o homólogo capitão da guarda portuguesa, o Conde de Pombeiro, sentou-se também antecedendo os Embaixadores espanhóis, ocupando o segundo melhor lugar na cerimónia, logo depois dos Cardeais836. De resto, todo o cerimonial foi idêntico nas duas Cortes. Contudo, apesar de Filipe V ter ordenado aos seus representantes que aceitassem o banco que lhes pudesse ser concedido no momento da assinatura, isto acabou por não acontecer, por não ter sido também o Marquês de Abrantes distinguido com esta cortesia em Madrid837. Terminado este acto, a infanta D. Maria Bárbara recebeu também um retrato guarnecido de diamantes do príncipe das Astúrias pelas mãos dos Embaixadores espanhóis838.

Para a cerimónia religiosa dos esponsais, os dois monarcas ibéricos acordaram representar os seus genros e receber simbolicamente as suas filhas. Todavia, antes de assim se decidir, D. João V encarregou o seu Embaixador em Madrid de averiguar se

833Vide Carta do Secretário de Estado para o Marquês de Abrantes, 12 de Janeiro de 1728. BNP, Reservados, Cód. 9562, fols. 264.

834 Vide idem, ibidem, fol. 264.

835 Sobre esta cerimónia: Cf. Carta de Diogo de Mendonça Corte Real para o Marquês de Abrantes, Lisboa, 12 de Janeiro de 1728. BNP, Reservados, Cód. 9562; Ofício do Marquês de los Balbases para o Marquês de la Paz, Lisboa, 13 de Janeiro de 1728. AHN, Estado, Legado 2517, fols. 1 e 2; Frei José Natividade, op.cit., pp. 76-78.

836 Vide Ofício do Marquês de Capecelatro para o Marquês de la Paz, 13 de Janeiro de 1727. AHN, Estado, Legado 2517, fol. 2.

837 Vide Despacho do Marquês de la Paz para o Marquês de los Balbases [?], Madrid, 25 de Dezembro de 1728. AHN, Estado, Legado 2517, fol. 3; Ofício do Marquês de los Balbases para o Marquês de la Paz, Lisboa, 13 de Janeiro de 1728. AHN, Estado, Legado 2517, fol. 1v.

838 Vide Ofício do Marquês de los Balbases para o Marquês de la Paz, Lisboa, 13 de Janeiro de 1728. AHN, Estado, Legado 2517, fol. 1v.

o rei católico tinha intenções de o fazer, certificando-se de que se não fosse essa a sua intenção, Filipe V jamais deveria tomar conhecimento «que da nossa parte se pertendeu, e não conseguio, que El Rey Catollico fizesse este acto»839. De acordo com este cerimonial, no dia 27 de Dezembro de 1727, no salão grande do Álcazar, o Patriarca das Índias, Cardeal Borja, celebrou os desponsórios de D. Mariana Vitória com D. José, seguindo-se o beija-mão real, durante o qual a princesa exibiu o retrato do seu esposo, que anteriormente lhe oferecera o Embaixador de D. João V840.

Dias depois, a 11 de Janeiro de 1728, celebrava-se em Lisboa a cerimónia dos esponsais da princesa D. Maria Bárbara com o príncipe das Astúrias, D. Fernando. Antes da celebração na Patriarcal, D. João V esforçou-se por conferir uma componente teatral a esta cerimónia, encenando uma espécie de procissão no interior do seu palácio que terminaria na igreja referida. Nos seus aposentos e acompanhado pelos seus irmãos, aguardou pelos Embaixadores de Filipe V, seguindo dali até aos quartos da rainha e da princesa noiva. Respeitando cada um a sua posição e precedência, a esta comitiva juntaram-se os infantes, inúmeros oficiais da Casa Real, nobres e fidalgos, que desfilaram ordenadamente até à Patriarcal. Já no interior deste espaço, tomaram todos os seus lugares, sendo recebidos à entrada pelo Patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida. Enquanto isso, os reis portugueses dirigiram-se a cada uma das capelas que ladeavam aquela igreja, onde se detiveram para fazer uma breve oração, chegando por fim à capela-mor. De fronte para o altar juntamente com a infanta D. Maria Bárbara, assistiram à leitura do documento que o Marquês de los Balbases entregou solenemente ao Patriarca: uma procuração em nome do príncipe D. Fernando autorizando o seu sogro, D. João V, a receber, em seu nome, a sua futura esposa. Assim se «principiaron las zeremonias nupciales con gran pausa, y solemnidad»841. Como seria expectável, as fontes que descrevem esta cerimónia dão- nos a imagem de uma enorme comoção, mencionando que se chegaram a ver cair lágrimas dos olhos do rei português, «sin duda de alegria, y del entrañable amor que professa a su hija»842. A cerimónia dos esponsais cumpriu o procedimento tradicional, não muito diferente daquele que tem nos dias de hoje, declarando-se «as obrigaçoens

839 Vide Instrucção que levou o Marquêz de Abrantes [...]. BNP, Reservados, Cód. 9562, fol. 60v. 840 Vide Relação da Embaixada do Marquês de Abrantes em Madrid. BNP, Reservados, Cód. 418, fol. 74v.

841 Vide Ofício do Marquês de Capecelatro para o Marquês de la Paz, Lisboa, 13 de Janeiro de 1728. AHN, Estado, Legado 2517, fol. 3v.

do matrimonio»843. Conforme o ritual português, seguiu-se a “cerimónia de dar as mãos”, os votos e a bênção nupcial, colocando D. João V no dedo da sua filha um anel de diamantes com a inscrição «Princ. Ferdinandus»844. De seguida, cantou-se o Te Deum e publicaram-se as indulgências, saindo depois a família real para o exterior da igreja Patriarcal com o mesmo cerimonial inicial para depois seguir até ao palácio, onde teria lugar beija-mão da princesa noiva845.

1.4. A diplomacia de bastidores: da troca de presentes à organização da jornada