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Os coches dos diplomatas: “veículos” de poder e alegoria política

IV. Capítulo Festa, Imagem, Comunicação e Desafios do Cerimonial

2. Entre o aparato e a opinião pública: formas de propaganda política

2.3. Os coches dos diplomatas: “veículos” de poder e alegoria política

«Sendo carro do sol cada carroça Ou do seu hum belicimo de douro Por dentro o fértil mina o deo a possa

Seja não era metal, era thezouro»1211.

«Sendo carro do sol cada carroça»1212 ! Nos séculos XVII e XVIII, era esta a

imagem majestosa das «viaturas de aparato»1213, às quais, de forma simplista e generalista, chamamos hoje: coches1214. Esteticamente assemelhavam-se a valiosas peças de arte e a «autênticos tronos de ouro»1215 . E, por isso, a sua utilização ia bem além da funcionalidade prática do transporte de pessoas. Estes carros foram introduzidos nas cavalariças reais portuguesas no tempo de Filipe II, «e desde esse tempo se ficarão usando na Casa Real»1216. Em Castela, datam de um tempo anterior (reinado de Carlos V), tendo provocado significativas alterações ao nível do cerimonial da própria Casa Real1217. Objectos de prestígio, de distinção social e reveladores do lugar e posição hierárquica de cada um1218, reservados a uma elite privilegiada, passaram a fazer parte das equipagens diplomáticas1219. Revestidos de um enorme «poder simbólico invisível» 1220 exibiam a «linguagem tornada objecto»1221. A sua intenção política e propagandística era equivalente à das gazetas ou à das relações, utilizados em momentos de especial visibilidade, como numa entrada pública de um Embaixador. Mais do que trilhar os caminhos da História de arte, já parcialmente estudados para este período, interessa-nos particularmente

1211 Vide Breve Relação da publica audiencia que na Caza Real das Embaxadas [...]. BGUC, Manuscrito nº 339, fol. 9v.

1212 Vide idem, ibidem, fol. 9v.

1213 A expressão pertence a João Castel-Branco Pereira, que tem um estudo homónimo. Cf. idem,

op.cit.

1214 Etimologicamente, a palavra coche deriva de Kosci (húngaro), que evoluiu para o francês (1545) e, finalmente, para o castelhano – coche –, pela altura do seu aparecimento em Espanha (1555). Cf. idem,

Lujo [...], p. 25. Para além dos tradicionais coches, existiam ainda estufas, berlindas, carroças,

carruagens, seges, etc.

1215 Vide José Manuel Tedim, A Festa [...], p. 54.

1216 Vide Abade de Castro e Sousa, Notícia acerca dos antigos coches da Casa Real, Lisboa, Typographia da Academia das Bellas Artes, 1845, p. 5.

1217 Vide Alejandro Lopéz Álvarez, «Coches, carroza e sillas de mano en la monarquía de los Austrias entre 1600 y 1700: Evolución de la legislación», Hispania. Revista Española de Historia, vol. LXVI, nº 224, 2006, pp. 886-889.

1218 Vide Antonio Álvarez-Ossorio Alvariño, «Rango Y Apariencia. El decoro y la quiebra de la distinción en Castilla (SS. XVI- XVIII)», Revista de Historia Moderna, nº 17, 1998-1999, p. 266. 1219 Vide Alejandro Lopéz Álvarez, Lujo [...], p. 26 e 135.

1220 Vide Pierre Bourdieu, op.cit., p. 7.

1221 Vide Michel Foucault, As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas, Salma Muchail (trad), São Paulo, Editoras Martins Fontes, 2000, p. 408.

compreender a pertinência destes veículos nas embaixadas luso-espanholas e revelar alguns aspectos menos conhecidos referentes à sua utilidade prática1222.

Dificilmente alguém conseguia ficar indiferente à riqueza da frota joanina, «aplaudida assim dos naturaes como dos estrangeiros»1223. O Marquês de Capecelatro reparou no enorme contraste, ao chegar pela segunda vez a Lisboa, no luxo e na quantidade destes veículos, comparativamente ao tempo em que reinara D. Pedro II, durante o qual havia «mucha moderazion observando las rigurosas leys de la pragmatica de su Reyno»1224. O Embaixador português, D. Luís da Cunha, converteu o gosto pelo excesso, que na sua opinião era algo típicamente português, numa questão económica que constituía uma das grandes desvantagens que Portugal tinha em relação a Espanha. Como dissemos, chegou mesmo a aconselhar D. João V a reformar as pragmáticas portuguesas com vista a impedir que os coches fossem puxados por seis cavalos, seguindo o que se praticava no reino vizinho1225. Em Madrid, o Ministro português, Pedro Álvares Cabral, não se livrou de uma reprimenda de D. José Patiño por ter sido visto a passear num parque público com um coche puxado a seis mulas, um privilégio de exclusividade real1226.

Desde cedo, D. João V demonstrou compreender o potencial político destes carros de aparato. Nas embaixadas que enviou a Roma, Paris ou Madrid, investiu na riqueza dos mesmos, na iconografia e na criação de símbolos que traziam à memória daqueles que assistiam à sua passagem o glorioso passado do Portugal Imperial dos tempos manuelinos, do qual era herdeiro1227. A Embaixada do Marquês de Fontes ao Papa (1716) marcou a alteração estética destes veículos, utilizando-se pela última vez os austeros carros fechados “à romana”, que diferiam escultórica e estruturalmente das carrosses modernes francesas, que melhor se adaptavam à ideologia e ao gosto do rei português1228. Anos mais tarde (1727), os coches utilizados pelo mesmo Embaixador em Madrid, na sua entrada pública, enquadram-se precisamente neste último estilo. Em Agosto desse ano, o vidro do seu coche principal quebrou-se, sendo

1222 Merecem especial atenção os estudos de Alejandro López Álvarez que esgotam quase a temática para a época Moderna em Espanha. Cf. idem, Lujo [...]; idem, «Coches [...]».

1223 Vide Tristão da Cunha Ataíde, op.cit., p. 199.

1224 Vide Ofício do Marquês de Capecelatro para D. Juan Elizondo, Lisboa, 7 de Abril de 1716. AGS, Estado, Legado 7082, fol. 3v.

1225 Vide D. Luís da Cunha, Instruções políticas [...], fol. 106.

1226 Vide Carta de D. José Patiño para Pedro Álvares Cabral [...], Aranjuez, 24 de Junho de 1733. AGS, Estado, Legado 7162, fols. 1-2.

1227 Vide Sofia Tůma, op.cit., p. 339; José Manuel Tedim, A Festa [...], p. 54.

1228 Vide João Castel-Branco Pereira, op.cit., pp. 55-63; Manuel Joaquim Moreira da Rocha, op.cit., p. 40.

necessário trocá-lo pelo do coche do infante D. António, mas o seu jogo seria apenas dourado na capital madrilena1229. As descrições desta cerimónia evidenciam precisamente a magnificência do carro principal que tanto no interior, como no exterior «pelo preço e grandeza mais parecia um monte de ouro»1230. Os quatro cavalos que o puxavam pareciam quase incapazes de «mover huma maquina de tanto pezo» 1231. A este seguiam-se outros seis carros, igualmente ricos, ainda que a sua ostentação fosse diminuindo consoante a posição que ocupavam no cortejo1232.

Apesar do relativo esquecimento em que caíram os coches no início do seu reinado, Filipe V rapidamente (re)descobriu e recuperou a sua utilidade1233. Provam- no os exemplares que encomendou para a entrada pública do Marquês de los Balbases, em Lisboa (1728)1234. A sua comitiva era composta por duas liteiras douradas, que presidiam o cortejo. A primeira fora encomendada em Paris e era «pintada à chinesa»1235. A segunda era de fábrica portuguesa, toda em talha dourada, com painéis laterais, onde se representaram as armas da casa do Embaixador espanhol. Seguiam-se a estes outros seis veículos igualmente ricos. O primeiro coche fora também feito em Paris e era «de una extrahordinaria grandeza, nó parezia carroza, si nó montaña de oro»1236. Observou um português que, apesar de tamanha riqueza, «nam era milhor que o nosso»1237. Este foi o veículo para a passagem do qual se deitaram «as portas de S. Antam abayxo»1238. As pinturas historiadas que figuravam numa das laterais deste carro representavam a matemática, a riqueza, a força, a sapiência, a esperança e a beleza e do outro lado surgiam os troféus de guerra, de amor e as figuras mitológicas de Marte e Vénus1239. Na sua entrada pública em Lisboa, o Marquês de Capecelatro descreveu o coche principal do seu cortejo, dizendo que nele estavam representadas: «las quatro partes del mundo, y bajo la

1229 Vide Carta do Padre António Baptista para o Marquês de Abrantes, Lisboa, 17 de Agosto de 1727. BNP, Reservados, Cód. 9562, fol. 164v.

1230 Vide Relação da Embaixada do Marquês de Abrantes em Madrid. BNP, Reservados, Cód. 418, fol. 71v.

1231 Vide Relação da grandioza [...], p. 11. 1232 Vide idem, ibidem, pp. 11-13.

1233 Vide Alejandro Lopéz Álvarez, Lujo [...], pp. 125-126. 1234 Vide idem, ibidem, p. 126.

1235 Vide Entrada publica del Marques de los Balvases en Lisboa [...]. AHN, Estado, Legado 2517, fol. 3.

1236 Vide idem, ibidem, fol. 3v.

1237 Vide Embaixada de Portugal que deu o Balbazes. BGUC, Manuscrito nº 507, fol. 70.

1238 Vide idem, ibidem, fol. 70. Estas foram as obras em Lisboa para as quais D. João V mandou tirar as medidas dos coches do Marquês de los Balbases. Cf. supra, p. 98.

1239 Vide Entrada publica del Marques de los Balvases en Lisboa [...]. AHN, Estado, Legado 2517, fols. 3 e 4.

estatua de España estaba un trofeo militar»1240. A utilização escultórica e iconográfica de insígnias militares e o recurso a objectos que relembrassem a conquista marítima e o domínio terrestre dos quatro continentes tornaram-se alusões comuns nestes veículos tanto em Portugal, como em Espanha1241. Eram a evocação de um passado que se pretendia que fosse presente. Os coches eram espelhos de uma imagem que se pretendia projectar, como se do «objecto da embaixada ou a imagem da Coroa»1242 se tratasse. Tornaram-se uma espécie de outdoor dos valores do rei e do reino representado, um pedaço de uma nação em território internacional. Tal como a festa em si, o seu valor pedagógico e didáctico1243 tornava-os «instrumentos de conhecimento e construção do mundo» 1244 , concebidos para «seduzir as multidões»1245, exibir a grandeza do rei, do Embaixador1246 e a História de um reino. Isto justifica que as relações conferissem uma importância primordial à descrição dos coches e ao detalhe exaustivo do seu programa iconográfico, escultórico e pictórico. Salientavam os detalhes dos relevos, da pintura, do jogo da caixa, do tejadilho, das cortinas, dos almofadões, dos cocheiros e até dos cavalos. Tal como acontecera com as entradas régias do período medieval, os coches contribuíram sobremaneira para que as entradas públicas dos embaixadores se tornassem verdadeiros espectáculos de exibição artística1247.

No seu estudo relativo a estas «viaturas de aparato», João Castel-Branco Pereira questionou-se acerca da reutilização dos coches por parte dos diplomatas. Hoje estamos habilitados para dar resposta a uma das questões que colocou1248. Apesar de não ser comum, sabemos que, por exemplo, o Marquês de los Balbases numa das funções matrimoniais em que participou na Corte de Lisboa, reutilizou o coche «todo de ouro com que se dis dera embaixada em Roma o Senhor Marques de Abrantes»1249. Até ao presente momento, não encontrámos nenhuma menção ou estudo que tocasse neste assunto. Estaria o autor desta relação a referir-se ao carro

1240 Vide Ofício do Marquês de Capecelatro para o Marquês de la Paz [?], Lisboa, [Dezembro de 1723?]. AGS, Estado, Legado 7127, fol. 2.

1241 Vide João Castel-Branco Pereira, op.cit., pp. 24 e 25. 1242 Vide Alejandro Lopéz Álvarez, Lujo [...], p. 130. 1243Vide José Manuel Tedim, A Festa [...], p. 24. 1244 Vide Pierre Bourdieu, op.cit., p. 8.

1245 Vide Lucien Bély, Société [...], p. 781.

1246 Vide Alejandro Lopéz Álvarez, ibidem, p. 129. 1247 Vide Ana Maria Alves, op.cit., p. 72.

1248 «Viriam do estrangeiro ou seriam encomendados previamente por agentes ou pelos enviados ordinários acreditados na nossa Corte?». Cf. João Castel- Branco Pereira, op.cit., p. 41.

que hoje se encontra no Museu dos Coches em Lisboa – apelidado «Coche do Embaixador» –, que fora utilizado pelo, então, Marquês de Fontes, na sua entrada pública em Roma (1716)1250? A descrição de ambos demonstra-nos que é possível que assim seja.

Em 1729, D. João V preparou-se sem precedentes para exibir a sua magnífica frota na jornada ao Caia para a celebração da Troca das Princesas, proporcionando um dos maiores desfiles destes carros a que jamais assistira a Península Ibérica. Anteriormente, havia pedido informações ao seu Embaixador em Madrid acerca dos coches utilizados por Filipe V e pela família real espanhola1251 . Nas encomendas que fez destes carros ao Encarregado das Encomendas Régias, Francisco Mendes de Góis, foi explícito ao solicitar que «de nenhum modo sejão inferiores aos que servem em Paris, antes de algum modo melhores»1252. Como vimos anteriormente, no que se refere à riqueza e ao número, estes coches superaram os da comitiva do monarca espanhol, condicionada pela pragmática que não deixava margem para grandes luxos1253.

A análise artística detalhada e completa dos carros utilizados pela diplomacia luso-espanhola neste período daria espaço para uma longa dissertação. Nas palavras do Marquês de Abrantes: «as obras estimáveis pelo feytio, não se avalião pelo pezo, mas as de ouro, sempre meressem grande attenção»1254. Haverá melhor analogia? Todavia, optámos antes por dar uma visão geral que deixasse em aberto um vislumbre desta possibilidade de estudo. Verdadeiros contadores de histórias, poetas andantes, “veículos” de poder, propaganda e alegoria política, por todas as suas valências não puderam os dois monarcas ibéricos olvidá-los nas embaixadas que enviaram a Lisboa e a Madrid. Para os diplomatas tornaram-se objectos de regozijo, cobiça, admiração, endividamento e disputa. Porém, relembramos que conquistaram também um simbolismo especial para a História das relações diplomáticas luso-espanholas. Como

1250 Veja-se a descrição deste coche em Manuel Joaquim Moreira da Rocha, op.cit., pp. 40-44.

1251 Vide Carta do Padre António Baptista para o Marquês de Abrantes, Lisboa, 29 de Outubro 1727. BNP, Reservados, Cód. 9562, fol.215.

1252 Vide Despacho de Diogo de Mendonça Corte Real para Francisco Mendes de Góis, Lisboa, [Novembro de 1726?]. ANTT, MNE, Caixa 2, Maço 1, fol. 4.

1253 Sobre este assunto ver Eurico Gama, op.cit., p. 147; José Manuel Tedim, «O Triunfo [...]», p.178. João Castel-Branco Pereira, op.cit., pp. 65-66.

1254 Vide Carta do Marquês de Abrantes para Francisco Mendes de Góis, Madrid, 5 de Junho de 1727. ANTT, MNE, Caixa 1, Maço 5, fol. 1.

vimos, em 1715, foram um “veículo” de união entre as duas Coroas, dentro dos quais se trocaram as ratificações do Tratado de Utreque1255.

3. As “batalhas” simbólicas da diplomacia: disputas e incidentes