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II. Capítulo Etapas do cerimonial diplomático

1. Chegar, (re)conhecer e comprazer

1.4. O primeiro encontro com o rei

«Fiz eu Jozé da Cunha Bruchado a minha práctica, sem parar nella aos dois reys com aquellas expressoens e comprimentos de estimação, e concideração de /fol.3v/ que costumão encher-se similhantes primeiras audiencias, de que não fui aváro»492.

Na primeira audiência privada com o rei, o diplomata tinha a oportunidade de entregar as cartas credenciais que atestavam os objectivos da sua missão e a honra de expressar o seu desejo de contribuir para a boa correspondência entre este e o monarca em nome do qual lhe falava493. Em 1716, a Corte de Madrid encarou como a «practica de una nueba fineza»494, o facto do Embaixador português, Pedro de Vasconcelos e Sousa, ter entregue a Filipe V, juntamente com a sua credencial, uma carta particular escrita pelas mãos do próprio D. João V. Nesta data, tendo em conta a prematuridade do restabelecimento das relações diplomáticas entre as duas Coroas

489 Vide Carta de Diogo de Mendonça Corte Real para o Marquês de Abrantes, Lisboa, 29 de Março de 1727. BNP, Reservados, Cód. 9562, fol. 85-85v.

490 Vide Instrucção que levou o Marquêz de Abrantes [...]. Lisboa, 2 de Fevereiro de [1727]. BNP, Reservados, Cód. 9562, fols. 57v-58v.

491 Vide Carta de Diogo de Mendonça Corte Real para o Marquês de Abrantes, Lisboa, 29 de Março de 1727. BNP, Reservados, Cód. 9562, fol. 85-85v.

492 Vide Cartas que escrevêo Jozé da Cunha Bruchado da Côrte de Madrid [...], Segóvia, 24 de Junho de 1725. ANTT, Manuscritos da Livraria nº 61, fol. 3.

493 Vide François de Calliéres, op.cit., p. 143;

494 Vide Carta do Cardeal Judice para o Marquês de Grimaldo, Palácio [Madrid], 8 de Março de 1716. AGS, Estado, Legado 7082, fols. 1-2v.

(1715) e o clima de instabilidade dos tempos conturbados que se avizinhavam para Espanha, o Cardeal Judice considerou imperativo corresponder a esta cortesia, munindo o Embaixador espanhol em Lisboa com um documento análogo. Assim contentaria o rei português, pois, na sua opinião, Portugal era «la unica y ensanchada puerta por donde pueden estos Reynos experimentar los insultos y las inquetudes»495. Nesta época, apesar do isolamento em que o Cardeal de Alberoni colocou Filipe V e das dificuldades que pôs àqueles que pretendiam falar-lhe496, a posição neutral adoptada por D. João V durante a guerra da Quádrupla Aliança (1718-1720) reflectiu- se positivamente no tratamento concedido aos representantes portugueses em Madrid. Como vimos, ainda em 1718, o primeiro-ministro espanhol terá percebido que contentar o soberano português passava por agradar o seu humilde Encarregado de Negócios. As honras que recebeu na primeira audiência com Filipe V demonstram que foi tratado com o cerimonial digno de um representante com carácter superior àquele que efectivamente possuía, sendo inclusivamente recebido não só pelo rei espanhol, como pela rainha Isabel Farnésio e pelo príncipe das Astúrias, D. Luís497. Manuel de Sequeira, no relato que fez destes encontros, transpareceu a modéstia que lhe era característica. Ainda assim, provou subtilmente dominar a gramática e o vocabulário do cerimonial, que pouco tinham de aleatório, demonstrando que a utilização anacrónica dos conceitos poderia alterar o significado de determinado ritual. Por exemplo, na descrição que fez da condução que lhe foi concedida por parte dos oficiais da Casa Real espanhola na audiência com o príncipe das Astúrias, substituiu e emendou, intencionalmente, termos como “introduziu” por “levou”. “Introduzir” significava «conduzir para dentro. Fazer entrar. Facilitar alguém a entrada em algum lugar»498. “Conduzir” era sinónimo de «Guiar, acompanhar [...] Servir»499. E, “levar” detinha uma série de sinonímias vulgares com significância menos formal que as anteriores500. Ninguém lhe facilitou a entrada ou introduziu, nem o acompanhou servindo. Limitaram-se a levá-lo à presença de D. Luís, uma vez que não estava previsto que o Príncipe recebesse ministros com o seu carácter, o que justifica, por sua vez, a sua preocupação na alteração dos conceitos.

495 Vide idem, ibidem, fol. 2v.

496 Vide Marcelo Luzzi Traficante, La Monarquia [...], p. 578.

497 Vide Ofício de Manuel de Sequeira para o Secretário de Estado português [?], Madrid, 24 de Fevereiro de 1719. ANTT, MNE, Caixa 913, fols. 1-3.

498 Vide Raphael Bluteau, op.cit., p. 178. 499 Vide idem, ibidem, p. 415.

Durante o reinado de Filipe V, a obtenção de uma audiência particular com o monarca não detinha carácter obrigatório. E, como referimos, o parentesco que unia duas Coroas poderia também facilitar este processo. Não termos conhecimento de que em alguma ocasião o rei espanhol se tenha recusado a receber algum diplomata de D. João V. Contudo, a chegada de D. Luís da Cunha a Madrid (1719) trouxe rumores de que a sua missão estaria relacionada com uma eventual proposta de mediação da paz, por parte de D. João V, entre Espanha e a Quádrupla Aliança501. Esta situação não agradava, naturalmente, àquele que era considerado o «motor da guerra»espanhola502: o Cardeal Alberoni. Nas palavras do diplomata português, este procurava incessantemente afastar todos aqueles que pretendessem intrometer-se nos seus «desígnios». Além disso, o Embaixador D. Luís da Cunha tinha contra si o facto do Cardeal «se assombra[r] com Ministros de primeira ordem»503, como era o seu caso. Na combinação destes factores reside a explicação para todos os obstáculos, já referidos, colocados por Alberoni na obtenção do primeiro encontro entre aquele diplomata e o rei espanhol. Não obstante, a pressão que exerceu e os argumentos que utilizou deixaram pouca margem ao Cardeal para impedir o Embaixador de se deslocar até Navarra, local onde se encontrava a família real espanhola. Nesta audiência entregaria a suas credenciais, dando por realizada a cerimónia da sua entrada pública, como pretendia o próprio D. Luís da Cunha504.

A reciprocidade desejada para as embaixadas do Marquês de Abrantes e do Marquês de los Balbases exigiu que as duas Cortes adoptassem um protótipo comum e a primeira audiência não foi excepção. O Embaixador de Filipe V deu o primeiro passo. Sugeriu que D. João V e a sua esposa, a rainha D. Maria Ana de Áustria, o recebessem juntos no mesmo espaço, conforme se praticara com o Marquês de Abrantes em Madrid, por ser esse o costume daquela Corte505. «Aunque fuese cosa irregular y jamas practicada» 506 em Portugal, o seu pedido foi aceite pelos dois soberanos, pedindo o Embaixador que aquele encontro decorresse familiarmente com «menos ceremonias, e demais confiança»507, dispensando inclusivamente Condutor.

501 Vide Ofício de D. Luís da Cunha para o Secretário de Estado português, Corella, 17 de Agosto de 1719. ANTT, MNE, Livro 789, fol. 110.

502 Vide idem, Corella, 10 de Agosto de 1719. ANTT, MNE, Livro 789, fol. 101. 503 Vide idem, Madrid, 2 de Junho de 1719. ANTT, MNE, Livro 789, fol. 43. 504 Vide idem, Corella, 10 de Agosto de 1719. ANTT, MNE, Livro 789, fol. 100. 505 Vide Embajada Extraordinaria del Marqués de Los Balbases [...], p. 14. 506 Vide idem, ibidem, p. 14.

507 Vide Folheto. Carta de Diogo de Mendonça Corte Real para o Conde de Tarouca, Lisboa, 22 de Abril de 1727. BNP, Arquivo Tarouca nº 180, fol. 2v.

Para além disso, depois desta audiência, o Marquês de los Balbases deveria cumprir o habitual percurso no interior do palácio real, passando novamente pelos aposentos da rainha para cumprimentar os príncipes e infantes portugueses508. Novamente, D. João V não pareceu importado em ceder e introduzir o estilo castelhano no cerimonial português.

Por volta dos anos 40 do século XVIII, estas primeiras audiências com o rei de Portugal tornaram-se menos frequentes. A debilidade da sua saúde impedia-o de receber os ministros estrangeiros com a frequência e a dignidade requeridas. Em 1743, mesmo sabendo que as probabilidades não estavam a seu favor, por conveniência ou cortesia, Filipe V aconselhou o seu Embaixador em Lisboa, o Marquês de la Candia, a solicitar este primeiro encontro como uma prova de estima e consideração pelo monarca português509. Acabou por ser recebido por D. Maria Ana de Áustria, que substituía o seu marido nestas funções cerimoniais510.

Não sem intenção, deixámos de lado as diferenças que encontrámos na recepção dos ministros portugueses em Espanha durante o reinado de Fernando VI e da rainha D. Maria Bárbara. Como veremos adiante, a ligação familiar que unia as duas Coroas alterou significativamente os critérios de tratamento e obtenção destas primeiras audiências.