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III. Capítulo O duplo matrimónio ibérico: um jogo de espelhos

1. A “Paz Nupcial” e a ideia de um duplo casamento

1.1. Negociações e assinatura dos preliminares (1725)

«[...] mas trocadas as sortes das precedências, que de hum, ou de outro modo, sempre serão iguais»767.

Em tempos, interessou-se a historiografia portuguesa por debater de que monarca, D. João V ou Filipe V, teria partido a proposta oficial para o estabelecimento deste matrimónio ibérico. Hoje parece ser consensual que terá sido o monarca espanhol a tomar a iniciativa768. A 24 de Março de 1725, o Enviado português em Madrid, António Guedes Pereira, comunicou-o à Corte portuguesa769. E, em Lisboa, reuniu-se imediatamente o Conselho de Estado e todos os seus membros «uniformemente votarão que se aceitasse a proposta d’El-Rei Católico»770.

Decorria o ano de 1725, quando, pela «experiencia, e madureza deste grande ministro»771, D. João V concedeu plenos poderes a José da Cunha Brochado para, juntamente com António Guedes Pereira, o representar em Madrid, como seu Ministro Plenipotenciário e dar início às negociações do projecto com vista à assinatura de um duplo tratado matrimonial772. Filipe V, por seu turno, voltou a

763 Vide idem, ibidem, p. 430. No tratado de Viena de 1725, assinado entre o rei espanhol e o Imperador Carlos VI, Filipe V renunciou aos territórios austríacos em Itália e nos Países Baixos. 764 Vide Relação da Embaixada do Marquês de Abrantes […]. BNP, Reservados, Cód. 418, fol. 69. 765 Vide Carta do Marquês de Abrantes para Francisco Mendes de Góis, Madrid, 2 de Novembro de 1727. ANTT, MNE, Caixa 1, Maço 5, fol. 1.

766 Vide Jaime Cortesão, op.cit., tI, p. 308.

767 Vide Despacho de Diogo de Mendonça Corte Real para José da Cunha Brochado e António Guedes Pereira, [Lisboa], [Setembro de 1725?]. BNP, Arquivo Tarouca nº 229, fol.3.

768 Cf. Eduardo Brazão, Relações Externas [...], p. 428; Maria Rosalina Delgado, op.cit., p. 432. 769 Vide Frei José da Natividade, op.cit., p. 5.

770 Vide Tristão da Cunha Ataíde, op.cit.,p. 377. 771 Vide Frei José da Natividade, op.cit., pp. 6 e 8.

772 Vide Copia da instrucção que se deu a Jozeph da Cunha Brochado [...]. BNP, Arquivo Tarouca nº 229, fol. 2. O Enviado António Guedes Pereira ficou descontente com a nomeação de José da Cunha

confiar nas capacidades do seu Embaixador ordinário em Lisboa, o Marquês de Capecelatro, para encaminhar as conversações com o Secretário de Estado português, Diogo de Mendonça Corte Real.

Prev(en)iu D. João V com antecipação a pequena, mas crucial, adenda que o monarca espanhol pretendia acrescentar a este acordo. A José da Cunha Brochado deu instruções específicas para ser cauteloso e recusar qualquer proposta que visasse o estabelecimento de uma liga ofensiva/defensiva entre as duas Coroas773. Um pacto desta natureza poderia pôr em causa a neutralidade portuguesa, uma vez que as pretensões expansionistas de Filipe V eram de conhecimento geral e, em caso de conflito, Portugal seria obrigado a envolver-se. Contudo, o rei chegou a ponderar a hipótese de aceitar uma aliança desta natureza, mediante a condição de Inglaterra ficar excluída de uma ofensiva conjunta774. Windsor sobrepunha-se. Era impensável para D. João V atraiçoar a velha amizade britânica775. O rei português deveria também lembrar-se que o estabelecimento de uma liga ofensiva com Espanha «poderia produzir igual liga da parte das outras potências»776. No entanto, José da Cunha Brochado até via alguns benefícios nesta ideia. Uma aliança com o reino vizinho poderia ser a porta para Portugal se livrar da dependência inglesa, à qual se subjugava há muito777. Porém, com o decorrer do tempo, o diplomata tornou-se céptico. Deixou de ver sequer qualquer vantagem naquele acordo, chegando a confessar ter-se arrependido de ter dito que aqueles matrimónios eram «o sêllo, que authenticavão a nossa aclamação»778, pois encarava-os agora como «hum cadeádo, que segúra a sucessão da posteridade d’El Rey Felippe no thrôno de Castella serrando a porta por onde podia ser invadido como já foi»779: Portugal. O futuro não se avizinhava fácil para a diplomacia portuguesa em Madrid. Esta deveria rejeitar a liga ofensiva/defensiva proposta por Filipe V, sem que isso afectasse ou impedisse Portugal de garantir determinadas condições neste acordo, como a (re)devolução

Brochado, julgando que D. João V não confiava plenamente nas suas capacidades para desempenhar esta função sozinho. Cf. Carta de António Guedes Pereira para o Secretário de Estado português, Madrid, 1 de Junho de 1725. BNP, Arquivo Tarouca nº 229, fol.1.

773 Vide Copia da instrucção que se deu a Jozeph da Cunha Brochado [...]. BNP, Arquivo Tarouca nº 229, fols. 3-5.

774 Vide idem, ibidem, fols. 4-5.

775 Vide Ana Cristina Pereira, op.cit., p. 570. 776 Vide Visconde Santarém, op.cit., t.I, p. 189. 777 Vide Sofia Tůma, op.cit., p. 245.

778 Vide Cartas que escrevêo Jozé da Cunha Bruchado [...], Madrid, 3 de Agosto de 1725. ANTT, Manuscritos da Livraria nº 61, fol. 104v.

efectiva da Colónia do Sacramento780. Jaime Cortesão considerou que exigir ao rei espanhol a restituição daquele território, dando como moeda de troca a infanta D. Maria Bárbara era o mesmo que colocar-lhe «uma pistola na garganta» 781. Por isso, o impasse criado pelas exigências de ambas as partes, só foi resolvido com a intervenção e mediação do Imperador Carlos VI, com quem Filipe V, como pretendia, assinou um tratado de paz em Abril de 1725782.

Em 1725, estando prevista para breve a assinatura dos artigos preliminares do duplo tratado matrimonial, D. João V dava início a uma série de exigências relacionadas com questões de reciprocidade diplomática. Em primeiro lugar, impôs aos seus representantes que ajustassem o acordo com base nos critérios com que, em 1721, haviam sido negociados os casamentos hispânico-franceses, nomeadamente no que tocava aos dotes das infantas e ao tratamento que o seu Ministro José da Cunha Brochado deveria exigir783. Sobre este último aspecto, Maria Rosalina Delgado considerou que a forma como os representantes diplomáticos de ambas as partes foram recebidos pelos monarcas reflectiu o desejo conjunto da manutenção da amizade entre as duas Coroas ibéricas784. Por fim, recordando a vitória simbólica alcançada em Utreque (1715), o rei de Portugal exigiu que fosse reproduzido o modelo das assinaturas estabelecido naquele congresso. «Para evitar a disputa da precedencia» 785 , os ministros portugueses assinariam a versão portuguesa separadamente e só depois a dariam ao Secretário espanhol para a ratificar e vice- versa. Apesar de D. João V preferir que fossem redigidas duas capitulações escritas em português e castelhano para cada um dos acordos, precedendo em cada uma o respectivo soberano, desde que fosse respeitada a igualdade entre Portugal e Espanha, poderiam acordar o formulário mais conveniente786. Estando os dois soberanos ibéricos de acordo com o projecto estabelecido (Setembro de 1725), assinaram-se em Santo Ildefonso os artigos preliminares dos tratados matrimoniais, a 7 de Outubro de

780 Vide António Filipe Pimentel, «A Troca [...]», pp. 63-64. 781 Vide Jaime Cortesão, op.cit., tI, p. 309.

782 Vide Eduardo Brazão, Relações Externas [...], p. 440. Simultaneamente, em Setembro de 1725, constituiu-se a Liga de Hannover em resposta ao pacto hispânico-austríaco estabelecido no Tratado de Viena (1725). Esta aliança era formada pela Inglaterra, França e Prússia juntando-se, posteriormente, as Províncias Unidas (1726), a Suécia e a Dinamarca (1727). Cf. Sofia Tůma, op.cit., pp. 245 e 246. 783 Vide Copia da instrucção que se deu a Jozeph da Cunha Brochado [...]. BNP, Arquivo Tarouca nº 229, fols. 3 e 4. Sobre os dotes, veja-se: Ana Cristina Pereira, op.cit., p. 572.

784 Vide Maria Rosalina Delgado, op.cit., p. 430.

785 Vide Copia da instrucção que se deu a Jozeph da Cunha Brochado [...]. BNP, Arquivo Tarouca nº 229, fol. 12.

786 Vide Despacho de Diogo de Diogo de Mendonça Corte Real para José da Cunha Brochado e António Guedes Pereira, [Lisboa?], [Setembro de 1725?]. BNP, Arquivo Tarouca nº 229, fols.1-2.

1725787. Quando copiados, José da Cunha Brochado informou a Corte de Lisboa que não havia encontrado «dificuldades nas precedencias»788, pois, os exemplares figuraram «cada hum na sua propria língua, por ser este o estilo desta Corte»789.

Filipe V anunciou à sua Corte o casamento da sua filha, D. Mariana Vitória, com o príncipe do Brasil e, depois do habitual Te Deum celebrado na capela Real, o Ministro José da Cunha Brochado e o Enviado António Guedes Pereira tiveram a honra de serem recebidos em audiência pelos monarcas católicos. «Vamos ao quarto da noiva»790, sugeriu Isabel Farnésio ao seu marido e aos diplomatas portugueses. Depois de terem estado nos aposentos de D. Mariana Vitória, a quem entregaram um retrato do seu futuro esposo, felicitaram também o príncipe das Astúrias pelo seu casamento, que os recebeu com «semblante muito rizonho»791. Para celebrar as «grandes felicidades entre éstas duas naçoens novamente unidas e igualmente interessadas na bôa intelligencia»792, decretaram-se três dias de luminárias por todo o reino, libertaram-se os presos, algo que não tinha acontecido pela ocasião do matrimónio de Luís XV com a infanta espanhola, assinalando também este enlace os ministros de D. João V na sua residência em Segóvia com fogos de artifício793.«O alvoroço de toda a Côrte hé inexplicavel»794, orgulhou-se José da Cunha Brochado.

Igualmente, na Corte de Lisboa os festejos públicos iniciaram-se no dia 10 de Outubro, prologando-se durante os três dias seguintes. Deram-se serenatas no palácio, iluminaram-se os navios do Tejo, dispararam-se salvas e tiros de artilharia e, reciprocamente, soltaram-se os prisioneiros, conforme o desejo da infanta D. Maria Bárbara795. Da mesma forma, segundo o Embaixador espanhol, tanto o povo como a nobreza transpareciam «el sincero júbilo de sus ânimos»796. Como em Madrid, também D. João V e a rainha receberam o Marquês de Capecelatro, depois da missa na Patriarcal, tendo ido este ministro, posteriormente, beijar mão da princesa noiva,

787 Vide Cartas que escrevêo [...], Segóvia, 24 de Setembro de 1725. ANTT, Manuscritos da Livraria nº 61, fols. 224v-229.

788 Vide idem, ibidem, fol. 227v. 789 Vide idem, ibidem, fol. 227v.

790 Vide idem, Segóvia, 1 de Outubro de 1725, fol. 232v. 791 Vide idem, ibidem, fol. 233.

792 Vide idem, ibidem, fol. 233v.

793 Vide idem, Escorial, 17 de Outubro de 1725, fol. 257. 794 Vide idem, Segóvia, 1 de Outubro de 1725, fol. 232v.

795 Vide Carta de Diogo de Mendonça Corte Real para o Marquês de Capecelatro, Paço [Lisboa], 9 de Outubro de 1725. AHN, Estado, Legado 2656, fol. 1; Ofício do Marquês de Capecelatro para o Marquês de Grimaldo, Lisboa, 16 de Outubro de 1725. AHN, Estado, Legado, 2656, fols. 1-5.

796 Vide Ofício do Marquês de Capecelatro para o Marquês de Grimaldo, Lisboa, 16 de Outubro de 1725. AHN, Estado, Legado, 2656, fols. 1-5.

D. Maria Bárbara. Em sua casa, o diplomata de Filipe V recebeu vários elementos da nobreza e ministros estrangeiros, entre eles os núncios Firrao e Bichi, o Enviado de Inglaterra e os Residentes da Holanda e Prússia, aos quais se encarregou de dar pessoalmente conta da conclusão dos preliminares deste duplo casamento797.

Segundo António Guedes Pereira, Filipe V aguardava pela cerimónia da troca das ratificações para comunicar oficialmente aos outros monarcas europeus esta notícia, pretendendo fazê-lo em audiência a cada um dos seus representantes798. A ratificação portuguesa chegou a Madrid no dia 17 de Outubro de 1725 e os diplomatas de D. João V apressaram-se a trocá-la com o Secretário do Despacho, o Marquês de Grimaldo, de acordo com o cerimonial recíproco estabelecido799. Neste mesmo dia, Filipe V e Isabel Farnésio fizeram-lhes a excepcional distinção de se deterem quando os encontraram no regresso da capela, algo que não era comum, sendo estes de seguida recebidos também nos quartos do príncipe das Astúrias, D. Fernando e da infanta D. Mariana Vitória800.

Não obstante ao júbilo vivido num e noutro reino, para José da Cunha Brochado a felicidade geral das duas nações devia-se a um comum e «presumido interesse»: a «mútua introducçam dos seus e nossos géneros» 801. Resolvia-se com este matrimónio uma das principais pendências da paz de Utreque (1715): o restabelecimento das relações comerciais entre Portugal e Espanha.