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IV. Capítulo Festa, Imagem, Comunicação e Desafios do Cerimonial

2. Entre o aparato e a opinião pública: formas de propaganda política

2.2. As relações: panegíricos de cortesia

«A Festa ao tornar-se relato, deixava de pertencer a quem a viveu para se transformar num instrumento de propaganda dum poder que se pretendia soberano e símbolo de unidade

de todo um povo à volta do seu monarca » 1180.

Atrás referimos que a inflexibilidade formal a que estavam sujeitas as gazetas ibéricas não permitia extravagâncias narrativas, pelo que, quando a grandiosidade do acontecimento assim o exigia, preferia-se o seu registo pormenorizado nas relações 1181 . Antigo género literário fundado na tradição tardo-medieval, originalmente sobreviviam dos relatos bélicos e das descrições das entradas régias1182. Nos séculos XVII e XVIII, assumem a forma de «romances históricos»1183. Ao serviço do poder político, a maior evasão discursiva e os floreados literários tipicamente barrocos ampliavam a promoção das grandes cerimónias diplomáticas e muitas tinham como substrato as próprias notícias das gazetas. E, os seus autores podiam deixar-se levar pela sua «imaginação fértil»1184. Se utilizar diferentes analogias, alegorias e exageros hiperbólicos tornavam o texto mais atractivo para o público alvo, o investigador contemporâneo pode ser induzido em erro se não compreender o propósito da utilização das diferentes figuras de estilo1185.

Este vasto mundo das “relações ibéricas diplomáticas” era composto por documentos oficiais e não oficiais, manuscritos ou impressos, de autores reconhecidos ou anónimos. Em momento antecedente referimo-nos àquelas que circulavam internamente e que procuravam estabelecer um modelo de cerimonial. Agora, iremos concentrar-nos naquelas que eram concebidas com a finalidade última de divulgar determinadas cerimónias da vida diplomática. Os próprios diplomatas deveriam ser capazes de distingui-las. Pela minúcia descritiva com que se empenhou nestes relatos, o Marquês de la Candia aborreceu de tal forma o Secretário espanhol, que este lhe chegou a pedir que passasse a separá-los dos seus ofícios para que estes fossem mais sucintos1186.

1180 Vide José Manuel Tedim, «A Festa Barroca [...]», p. 975. 1181 Vide idem, A Festa [...], p. 9 e 500.

1182 Vide Ana Maria Alves, op.cit., p. 11; Elisa Soares, op.cit., p. 12. 1183 Vide Ralph Giesey, Céremonial [...], p. 74.

1184 Vide idem, ibidem, p. 74.

1185 Vide José Manuel Tedim, ibidem, p. 501.

1186 Vide Ofício do Marquês de la Candia para o Marquês de Villarias, Lisboa, 12 de Novembro de 1743. AGS, Estado, Legado 7195, fol. 1.

Uma vez mais, o processo de negociação e o acordo da dupla boda ibérica (1725-1729) marcou o período de produção mais fértil deste género literário. Desde logo, algumas obras, como aquela que Frei José da Natividade dedicou ao futuro rei D. José I, merecem especial destaque por terem ganho os contornos de uma grande relação1187. Protagonizando «funçoens dignas de serem vistas em todas as Cortes da Europa, pela magnificencia, e ordem com que forão dispostas, e executadas»1188, as embaixadas do Marquês de Abrantes e do Marquês de los Balbases concentraram os esforços das duas Coroas para dar a conhecer a magnificência das suas embaixadas. Encontrámos pelo menos cerca de 11 relações de diferentes estilos, referentes às acções públicas dos dois Embaixadores nas Cortes de Lisboa e Madrid1189. Muitos autores portugueses dedicaram-nas ao Embaixador espanhol e muitos castelhanos ao português. Todavia, aqueles que escreveram ao serviço de um e outro, não esconderam também um certo tom competitivo, procurando (in)discretamente realçar a magnificência do diplomata do qual “tomavam partido”. Alguns preferiram prestar tributo nestes poemas ou relações aos descendentes dos Embaixadores, pois consideravam-nos herdeiros das acções quase “sobrenaturais” protagonizadas pelos seus pais1190.

As descrições das entradas públicas tornaram-se exemplares perfeitos deste estilo literário que, no século XVIII, adoptou preferencialmente, segundo Jaime Cortesão, temas de «exibição magnificiente»1191 . A Relação da grandioza

1187 Vide Frei José da Natividade, op.cit.

1188Vide Carta do Padre António Baptista para o Marquês de Abrantes, Lisboa, 29 de Janeiro de 1728. BNP, Reservados, Cód. 9562, fol. 274v.

1189 1. Embaixada de Castella que deu o Marques de Abrantes. BGUC, Manuscrito nº 507, fols. 68-69. 2. Relação da viagem Marquês de Abrantes [...]. BGUC, Manuscrito nº 677, fols. 402-404. 3. Relação da chegada, entrada e audiência pública do Marquês de Abrantes [...]. BNA, Manuscrito 54-IX-18, nº 164, fols. 1-2v; 4. Relação da Embaixada do Marquês de Abrantes em Madrid. BNP, Reservados, Cód. 418, fol. 75; 5. Relação da grandioza [...]. 6. Embaixada de Portugal que deu o Balbazes. BGUC, Manuscrito nº 507, fols. 69-71. 7. Noticia do recebimento que se fez em Lisboa [...]. BGUC, Manuscrito 506, fol. 9; 8. Breve Relação da publica audiencia que na Caza Real das Embaxadas [...]. BGUC, Manuscrito nº 339, fols. 1-10v. 9. Relacion de la Embaxada Extraordinaria [...]. BNE, Manuscrito nº 10747, fols.1-40v. 10. Embajada Extraordinaria del Marqués de Los Balbases [...], p. 19. 11. Entrada publica del Marques de los Balvases en Lisboa [...]. AHN, Estado, Legado 2517, fols. 1 -5.

1190 Dedicada a D. Ana Lorena, filha do Marquês de Abrantes, António Teles de Azevedo escreveu a

Carta humilde que en estilo heroyco expressa en octavas el magnifico lucimento con que el Excelentíssimo Señor Marqués de Abrantes executo su entrada pública en esta Corte de Madrid.

Madrid, [s.n], 1728. Um autor anónimo consagrou ao filho primogénito do Marquês de los Balbases, Carlos Ambrosio Gaetano Spínola de la Cerda, a Relacion de la Embaxada Extraordinaria [...]. BNE, Manuscrito nº 10747, fols.1-40v.

1191 Vide Jaime Cortesão, op.cit., t.I, p. 85. Veja-se também sobre este tema: Lucien Bély, Espions [...], pp. 693-695.

Embaixada1192 impressa em Madrid, escrita pelo Secretário do Marquês de Abrantes, Alexandre Ferreira, é um bom exemplo. Verdadeiros panegíricos, a estrutura destas relações obedecia a um formulário típico, no qual o diplomata assumia a personagem principal da narrativa. Por exemplo, um dos textos dedicados ao Marquês de los Balbases principia enaltecendo as virtudes e a genealogia do Embaixador de Filipe V e as qualidades que o tornaram a pessoa mais adequada para o desempenho da grandeza daquela missão em Lisboa1193. O recurso a analogias bíblicas ou mitológicas enfatizavam o carácter quase “divino” do representante diplomático1194. O Marquês de Abrantes foi comparado a um «novo Íris»1195 . Conforme «dicerão huns, que aos portuguezes athe os ceos obedeciam»1196, apesar das desfavoráveis condições climatéricas, no dia da sua entrada pública as chuvas «pararão inopinadamente [...], abrindo-se em alegre serenidade toda serração de nuvens, que ocupava os Orizontes»1197. As relações apostavam na descrição rigorosa tanto da entrada, como da audiência pública de um diplomata, procurando evidenciar o brilho e a riqueza das indumentárias envergadas pelo Embaixador e pelo seu séquito, bem como a sua postura, os seus gestos e as suas palavras1198. De seguida, descriminavam as precedências de cada um dos participantes da mesma, atendendo ao minucioso registo de cada hierarquia1199, não só das pessoas, como dos veículos exibidos neste desfile1200. Por fim, terminavam enfatizando a enorme generosidade do Embaixador e a concessão de propinas que este atribuía aos oficiais da Casa Real que o serviram naquele dia1201.

As festas “privadas” que os Embaixadores deram nos seus palácios tornaram- se também um dos temas centrais das relações, importantes para a difusão de um «modelo de representação política»1202. Imprimiram-se guiões de teatros, serenatas, festejos harmónicos, bailes e comédias, muitos deles transformados em pequenas “obras de arte”, repletos de gravuras e jogos de palavras. É um bom exemplar aquele

1192 Vide Relação da grandioza [...].

1193 Vide Relacion de la Embaxada Extraordinaria [...]. BNE, Manuscrito nº 10747, fols.1-40v. 1194 Vide Pedro Cardim, As Cortes [...], p. 148.

1195 Vide Relação da grandioza [...], p. 3. 1196 Vide idem, ibidem, p. 3.

1197 Vide idem, ibidem, p. 3.

1198 Vide Pedro Cardim, Cortes [...], pp. 54 e 55. 1199 Vide José Pedro Paiva, op.cit., p. 85.

1200 Vide Alejandro López Álvarez, Poder [...], p. 131. 1201 Vide Relação da grandioza [...], p. 17.

que resultou da festa dada pelo Embaixador português em Madrid em 17171203. A maior parte destes “livrinhos” continha no seu interior uma dedicatória que exaltava as virtudes do soberano que patrocinava aquela celebração ou mesmo do seu representante. Das festas dadas pelo Marquês de los Balbases no seu palácio em Lisboa resultaram pelo menos quatro guiões1204. E, apesar das despesas que isso acarretou, o Embaixador de Filipe V fez questão de remeter um exemplar aos seus convidados, aos monarcas espanhóis e portugueses1205. Só da comédia «Amor aumenta el valor» foram impressos e luxuosamente encadernados cerca de 6001206.

«Eu nam acho tam certo o que nos dizemos de que os auzentes esquecem, melhor dizem os francezes, lez abzents ont tort»1207. Subentende-se nas palavras do Embaixador português, Tomás da Silva Teles, que os diplomatas tinham consciência de que só ficava na História quem fosse digno de nela ficar registado. No século XVIII, as relações, assim como as gazetas, tornaram-se uma forma de “sobrevivência” da monarquia e da própria diplomacia1208. Três séculos depois, acabámos de relembrar os diplomatas portugueses e castelhanos pelo registo que chegou até nós das suas faustosas embaixadas. Se, no que concerne à política, conforme sugere Pedro Cardim, «nem tudo se pode escrever»1209, os momentos de magnificência proporcionados pelas embaixadas requeriam o oposto. Era essencial a «divulgação escrita do seu passado e presente»1210.

1203 Vide Fiesta que se representó al nacimiento de el Serenissimo Señor Infante Don Pedro [...], BGUC, Miscelânea nº 85, 1700, 88p.

1204 Vide Festejo Harmónico, que en obsequio del dia del nombre de Su Magestad Católica (que Dios

guarde)[...]. BGUC, Miscelânea 564, nº 9484, 13 pp; Fiesta, que en obsequio de el dia de el Nombre de el Serenisimo Señor Principe de Astúrias [...]. BGUC, Miscelenânea 19, nº 417, 70pp; Las Amazonas de España. Fiesta que se representó en Palácio del Marqués de los Balbases 1727 [...].

BGUC, Miscelânea nº 482, 52pp; Amor aumenta el valor, fiesta que se ejecutó en el Palácio del

Marqués de los Balbases [...], 77pp.

1205 Vide Ofícios do Marquês de los Balbases para o Marquês de la Paz, Lisboa, 3 de Junho, 28 de Outbro de 1727, 7 e 13 de Janeiro de 1728. AHN, Estado, Legado 2517.

1206 Vide Embajada Extraordinaria del Marqués de Los Balbases [...], p. 32.

1207 Vide Ofício de Tomás da Silva Teles para o Secretário de Estado português, Madrid, 21 de Setembro de 1749. ANTT, MNE, Livro 827, fol. 105. A expressão original remonta ao inicio do século XVIII: «Les absents ont toujours tort».

1208 Vide Pedro Cardim, «Embaixadores [...]», p. 80. 1209 Vide idem, «Nem tudo [...]».