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3 O DIREITO À CIDADE E À MORADIA: UM PROCESSO RECENTE DE LUTAS E CONQUISTAS

3.1 AS CONQUISTAS E NOVAS CONCEPÇÕES DO DIREITO À CIDADE

Se, no meio rural, os frutos da terra são resultados do trabalho do homem, na cidade, por sua vez, a riqueza, organização e a configuração espacial são também frutos do trabalho humano socialmente produzido (CORRÊA, 1989), significando dizer que é de utilidade pública. Sendo a cidade fruto do trabalho humano socialmente produzido, passa a ser um direito (LEFÈBVRE, 1999), o qual pertence a todos, tanto para as atuais gerações quanto para as gerações futuras, direito este denominado de terceira geração (COUTO, 2004).

É “no encontro de diferentes cenas urbanas, e do movimento daí resultante, que a cidade se faz como obra humana” (LEFÈBVRE, 2001, p. 52). Assim, a cidade não deve pertencer a determinados grupos em detrimento de outros, pois é um direito coletivo, da mesma forma que se configura o direito ao meio ambiente que representa todos os seres da natureza. Consubstanciado ao direito à cidade está o direito à moradia, pois existe uma relação simbiótica entre a moradia e a cidade27. “A primazia no urbano é o habitar” (LEFÈBVRE, 1999, p. 88), sendo que este habitar está relacionado à casa e à cidade.

27Cidade pode ser considerada um objeto definido, delimitado, com o objetivo de implantar uma Política

Nacional de Desenvolvimento Urbano. As cidades podem ser definidas como sendo a projeção da sociedade sobre um local, isto é, não apenas o lugar sensível, mas também sobre o plano específico percebido e concebido pelo pensamento que determina cidade e urbano (LEFÈBVRE, 1999). A cidade permite compreender os limites administrativos de áreas do município. Urbano refere-se ao processo de industrialização/urbanização, um modo de vida que atinge praticamente toda a sociedade. Áreas urbanas são delimitações do uso do solo urbano nos municípios (LEFÈBVRE, 1999).

No entanto, estes direitos foram conquistados somente por meio de manifestações e lutas, de movimentos sociais, organismos internacionais e mesmo de entidades não governamentais e governamentais. Conferências, fóruns e outros eventos que trataram sobre a questão urbana e a sustentabilidade do planeta, lideradas principalmente pela Organização das Nações Unidas (ONU), são inúmeros28; entre os mais importantes: a Conferência do Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio de Janeiro-ECO 92; a Conferência sobre Assentamentos Humanos em Istambul em 1996, conhecida por Habitat II29; e a Rio +20, em 2012.

No Brasil, somente no eixo da questão urbana mais de trezentos movimentos e conflitos30 entraram em cena até a metade do século XX, tentando romper com a falta de acesso à cidade e à moradia, mostrando que os brasileiros não são tão passivos quanto teimam em mostrar os meios de comunicação e alguns livros didáticos da história do Brasil (KOWARICK, 1994). Serve de exemplo o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) que continua vivo e defendendo o direito à moradia e à cidade desde sua retomada na década de 1980, ou seja, há mais de 30 anos lutando por um espaço para viver. Os integrantes do referido movimento fazem uso das ocupações em diferentes lugares para garantir um teto, mas principalmente continuam utilizando canais formais e não formais de participação para que suas reivindicações cheguem aos ouvidos das autoridades.

Os Movimentos Sociais Urbanos (MSU) focalizam sua mobilização em torno da questão urbana, reivindicando a regularização de loteamentos clandestinos, a construção de equipamentos comunitários de educação, saúde, praças e a implantação de infraestrutura básica, como luz, água e asfalto, dentre outros (CASTELS, 1983). Outro movimento a destacar é o Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU) que promoveu a organização de propostas para a Assembleia Constituinte de 1987 (SAULE JÚNIOR, 1999). A partir de 2003, o MNRU está representado no Conselho Nacional das Cidades.

Mediante o conjunto de iniciativas em nível global, especialmente a partir da década de 1980, não somente no Brasil como em vários países do mundo, significativos avanços institucionais no campo do direito à moradia e à cidade, o fortalecimento jurídico da função

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Ver em Saule Júnior (1999) as inúmeras declarações, seminários e conferências realizadas ao redor do mundo desde 1948.

29Os compromissos da Agenda Habitat II são: moradia adequada para todos; b) assentamentos humanos

sustentáveis, através da compatibilização entre o desenvolvimento econômico e social e proteção ambiental; c) participação dos atores sociais, implicando em assegurar um ambiente político institucional e legal que facilite sua participação efetiva em todas as etapas do desenvolvimento sustentável; d) igualdade de gênero; e) financiamento da habitação e assentamentos humanos; f) cooperação internacional; g) avaliação dos progressos (FERNANDES, 2003).

30As principais manifestações quanto ao direito à cidade e à moradia podem ser encontrados em Gohn (2003) e

social da propriedade e o reconhecimento dos direitos da posse foram concretizados no país. O principal deles foi a regulamentação dos artigos 182 e 18331 da Constituição de 1988, através da Lei n.º 10.257, de 10 de outubro de 2001, denominada Estatuto da Cidade, aprovada após onze anos de tramitação no Congresso Nacional.

O Estatuto da Cidade estabelece diretrizes gerais da política urbana e elenca uma série de instrumentos que deverão ser cumpridos pelo poder público, atribuindo-lhe um conceito que dialoga com os desafios postos pela cidade sustentável, indicando o direito de todos os citadinos ao usufruto da cidade. No ponto de vista da política fundiária importantes instrumentos foram inclusos no Estatuto, visando à garantia da função social da propriedade e à moradia, a começar pelo reconhecimento dos direitos dos ocupantes de áreas informais ou irregulares e mecanismos legais para melhorar o acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda. Tais instrumentos visam, em essência, refrear o processo especulativo e regular o uso da terra e forçar o exercício social da propriedade urbana. Além disso, permitem maior controle do Estado sobre usos e ocupações do solo urbano, em especial em áreas que demandam uma maior democratização, bem como mecanismos de controle por parte da população. No entanto, a aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade dependerá das propostas no Plano Diretor do município, o qual se tornou obrigatório para aqueles que apresentarem mais de 20 mil habitantes.

O Plano Diretor32 representa “um plano municipal imperativo (sob lei municipal) urbanístico e territorial que se caracteriza por normas, diretrizes e condutas o qual a

31O artigo 182 da Constituição Federal de 1988, estabelece que a política de desenvolvimento urbano seja

executada pelo poder público municipal, conforme as diretrizes gerais fixadas em lei, e tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, definindo que o instrumento básico desta política é o Plano Diretor. Artigo 1. O Plano Diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para às cidades de mais de 20 mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana; 2. A propriedade urbana cumpre a sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor; 3. As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro; 4. É facultado ao poder público municipal, mediante lei especifica para área incluída no Plano Diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena de sofrer os instrumentos do previstos. O artigo 183 fixou que todo aquele que possuir como sua, área urbana de até 250 metros quadrados por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirirá o seu domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural (BRASIL, 2005).

32 Foi estabelecido na década de 1970 do século XX, porém elaborado por tecnocratas que seguiam a linha

tradicional e hegemônica das classes dominantes. Atualmente estabelece normas imperativas aos particulares e agentes privados, as metas e diretrizes da política urbana, os critérios para verificar se a propriedade atende a função social, as normas condicionantes do exercício desse direito, a fim de alcançar os objetivos da política urbana: garantir as condições dignas de vida urbana, o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e o cumprimento da função social da propriedade. Definir as áreas urbanas consideradas subutilizadas ou não utilizadas, sujeitas à utilização dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade; Critérios para a utilização dos instrumentos do Estatuto da Cidade. Também o Plano Diretor deverá ser elaborado com a participação efetiva da população, bem como deverá ser revisto a cada dez anos de sua aplicação, conforme as exigências

coletividade de uma cidade fica obrigada a respeitar”. Portanto, consiste em um conjunto de regras que articula a ação dos agentes públicos e privados sobre a utilização da cidade, que deverá ser elaborado com a participação de todos os segmentos da coletividade e representa um pacto em relação à cidade que se quer (ESTATUTO DA CIDADE, 2005, p. 43).

Definidas as normativas gerais para o município, dever-se-á dispor de uma lei que especifique sua materialização, “denominada Lei Orgânica do Município, a qual irá estabelecer os procedimentos, os mecanismos de participação popular e os prazos para a elaboração e aprovação do Plano Diretor” (ESTATUTO DA CIDADE, 2005, p. 58). Desta feita, os mecanismos para gerir a política urbana da cidade não ficam à mercê da vontade do gestor público, mas sim, de toda a coletividade que deverá obedecer as prerrogativas estabelecidas pelas leis federais e municipais, sendo que a tarefa de gerir uma cidade é responsabilidade da prefeitura e de seus munícipes, conforme o estabelecido pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Cidade.

A Constituição Federal de 1988, dentro da hierarquia das normas, é o instrumento normativo superior que dispõe acerca das diretrizes de regulamentação do uso da propriedade imobiliária privada. O texto constitucional legitima o poder público municipal33 a fiscalizar se o proprietário está ou não utilizando sua propriedade em consonância com a função social. O artigo 2º do Estatuto da Cidade (2005) estabelece diretrizes gerais da política urbana, as quais deverão ser incluídas nos Planos Diretores dos municípios, sendo estas34: função social da

do Estatuto da Cidade, sendo aprovado pela Câmara Municipal. O Plano Diretor já existia desde 1970, porém não apresentava a função social da propriedade e nem o entendimento de cidades sustentáveis e participativas (ESTATUTO DA CIDADE, 2005).

33O município conta com: o Plano Diretor e a Lei Orgânica do Município disciplinam: o Parcelamento e

Ocupação do solo; Zoneamento Ambiental; Plano Plurianual; Diretrizes Orçamentárias e Orçamento Anual; Gestão Orçamentária Participativa; Planos, programas, projetos setoriais e Planos de Desenvolvimento Econômico e Social. Também está previsto no inciso 20 do artigo 40 do Estatuto da Cidade, que o município

tem competência para promover o planejamento sobre todo o seu território (incluindo urbano e rural), regulando seu uso, ocupação e seu parcelamento, conforme as leis federais (ESTATUTO DAS CIDADE, 2005).

34 Função social da cidade e da propriedade: entendida como a prevalência do interesse comum sobre o direito

individual de propriedade, como o uso socialmente justo do espaço urbano para que os cidadãos se apropriem do território, democratizando seus espaços de poder, de produção e de cultura, dentro de parâmetros de justiça social e da criação de condições ambientais sustentáveis; justa distribuição dos benefícios da cidade: baseia- se na garantia de que todos os cidadãos tenham acesso aos equipamentos urbanos e a toda e qualquer melhoria realizada pelo poder público, superando a atual situação de concentração de investimentos em determinadas áreas da cidade, enquanto sobre outras recaem apenas o ônus; recuperação dos investimentos públicos: visa inibir a reserva especulativa de proprietários privados que aguardam a crescente valorização da propriedade através da implantação da infraestrutura e de outros serviços, beneficiando-se com recursos públicos;

ordenação e controle do solo: tem por objetivo evitar a utilização inadequada dos imóveis urbanos, que

resulte na sua subutilização, não utilização ou deterioração das áreas urbanizadas; e gestão democrática da

cidade: entendida como ampliação da participação popular na gestão das cidades, através de mecanismos

institucionais diretos ou de legislação semidireta como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de leis. A gestão democrática da cidade deverá ficar assegurada a todos os citadinos, bem como o amplo acesso às informações sobre políticas públicas de forma a planejar, produzir, operar e governar as cidades, submetendo

cidade e da propriedade, justa distribuição dos benefícios da cidade, recuperação dos investimentos públicos, ordenação do solo urbano e gestão democrática da cidade.

Neste ínterim, o Brasil foi afirmativo e se comprometeu com o conteúdo da Carta da Cidade, que predispõe o usufruto equitativo da cidade, discutida no II Fórum Social Mundial em Porto Alegre, com a participação do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU)35, lideranças políticas nacionais e representantes internacionais. O conteúdo da Carta da Cidade está descrito a seguir: