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2.2 A PRODUÇÃO DE ESPAÇOS URBANOS SEGREGADOS

2.2.1 A mercantilização do solo urbano

A partir da Lei de Terras (1850), o processo de acesso à terra urbana e rural passou a ser mediante a compra de um direito de propriedade ou pagamento de um aluguel periódico, ambos regulados pelo mercado (SINGER, 1982). Se a terra no meio rural é meio de produção e sem ela não há condições de trabalho, na cidade representa suporte para as atividades dos setores secundário e terciário, concentrando diferentes tipos de edificações, equipamentos,

meios de consumo coletivos (hospitais, escolas, postos de saúde, etc.), meios de circulação, e, em especial, moradias, que, em geral, “ocupam mais de 70% do solo urbano” (RODRIGUES, 2003, p. 17).

Não se pode construir uma casa ou uma cidade sem chão, da mesma forma que não existe cidade sem as casas e seus moradores. “Casa e chão não são fracionáveis; ou seja, não é possível dividi-las, uma não subsiste sem a outra” (RODRIGUES, 2003, p. 14). Com base nessa afirmação, como morar em uma cidade sem poder acessar o solo urbano, caso não haja condições de compra? De que modo concorrer a um pedaço de terra se esta é disputada por inúmeros usos, pois concentra uma imensa quantidade de gente exercendo as mais variadas atividades? Singer explica a origem desses entraves:

Esta disputa se pauta pelas regras do jogo capitalista, que se fundamenta na propriedade privada do solo, a qual, por isso e só por isso, proporciona renda e, em consequência, é assemelhada ao capital. Mas este último é constituído pela propriedade privada dos meios de produção, os quais, quando movimentados pelo trabalho humano, reproduzem o seu valor, o valor do trabalho gasta e mais um valor excedente, que aparece nas mãos do capitalista sob a forma de lucro. O capital gera lucro na medida em que preside, orienta e domina o processo social de produção. [...]. Na medida em que o espaço é condição necessária à realização de qualquer atividade, portanto também para a produção, mas não constitui em si meio de produção entendido como emanação do trabalho humano que o potencia. A posse de meios de produção é condição necessária e suficiente para a exploração do trabalho produtivo, ao passo que a ocupação do solo é apenas uma contingência que o seu estatuto de propriedade torna fonte de renda para quem a detém (1982, p. 21).

Na visão do capital, a cidade materializa-se enquanto condição geral de produção (produção de mercadorias, distribuição, circulação e troca), ou seja, é o lócus da produção, onde se produz a mais-valia. Do ponto de vista do trabalhador a cidade representa o meio de consumo de bens e serviços para a própria reprodução da vida, ou seja, é o lócus da habitação, da construção de relações sociais, do trabalho, do estudo e das demais atividades de materialização da vida.

Na cidade se produz e se reproduz mais intensamente a riqueza e as relações sociais. A cidade tornou-se o pivô das decisões, da organização social, política e econômica (RIBEIRO; MOREIRA, 2007). Portanto, “o espaço urbano é estruturado, quer dizer que ele não está organizado ao acaso e os processos sociais que se ligam a ele exprimem os determinismos de cada tipo e de cada período da organização social” (CASTELLS, 1983, p. 182). “O fenômeno urbano se apresenta como realidade global (ou quer assim falar: total) implicando o conjunto da prática social” (LEFÈBVRE, 1999, p. 53).

Cabe ressaltar que a partir da metade do século XX os conceitos da Escola Chicago19 tornaram-se hegemônicos no Brasil, tendo por linha teórica a competividade, baseada na lei da natureza de que quem “vence é o mais forte”. Esta nova concepção do espaço refletiu e continua refletindo na construção de arranha-céus, grandes avenidas e túneis que favorecem o transporte urbano voltado para os automóveis, em detrimento dos pedestres (FREITAG, 2006).

O modelo americano influenciou todas as esferas da vida urbana brasileira, como a cultura do shopping center, desenhado para substituir as antigas lojinhas, mercearias e mercadinhos que existiam nos bairros, os quais já faziam parte da cultura local e mantinham os laços de confiança entre os moradores das proximidades. Muitos desses mercadinhos faziam vendas a prazo, por meio de cadernetas, cujos débitos eram saldados no final do mês. Os trabalhadores que ganhava pouco faziam uso deste sistema de confiança entre as partes (FREITAG, 2006).

A lógica capitalista passou a ditar os critérios da ocupação espacial, do aproveitamento máximo do território, e da densificação das construções que fazia com que o jeito bucólico das pequenas ou médias cidades perdesse, aos poucos, a ingenuidade que lhes eram características. As grandes construções substituíram as casas históricas, em favor do mercado, desfigurando a história local. A nova ordem capitalista, além de modificar o processo produtivo, também mudou o espaço construído, a vida e os costumes das pessoas (FREITAG, 2006).

O processo de produção da cidade, “tal como a fábrica, permitiu a concentração dos meios de produção num mesmo espaço: capital, matérias-primas e mão de obra” (LEFÈBVRE, 1999, p. 15), ou seja, tem por característica fundamental produzir um produto que é fruto do processo social do trabalho enquanto processo de valorização, que aparece sob a forma de mercadoria, que se realiza através do mercado, isto é, a terra urbana é comprada e vendida no mercado imobiliário enquanto mercadoria (CARLOS, 2007). “A cidade representa trabalho materializado, ao mesmo tempo em que representa uma determinada forma do processo de produção e reprodução de um sistema específico” (CARLOS, 2007, p. 27).

A cidade, portanto, é uma forma de “apropriação do espaço urbano socialmente produzido”, porém existe o conflito entre aqueles que possuem a propriedade e aqueles que não possuem a “mesma sorte”. Deflagra-se, assim, uma disputa para se apropriar do espaço urbano, significando dizer que o acesso ainda se dá através da compra, sob o viés da

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No Brasil, as escolas alemã, francesa e americana que mais influenciaram os estudiosos nas áreas das ciências sociais quanto os ligados à arquitetura e urbanismo. Ver mais sobre as teorias das escolas em Freitag (2006).

propriedade privada. O valor é expressão do seu uso. O valor remete “à ideia do espaço- mercadoria e à forma através da qual o espaço é apropriado e dominado por aqueles que desejam fazer uso do mesmo” (CARLOS, 2007, p. 47).

Estabelecido o conflito entre capital e trabalho, somente poderão morar na cidade ou nela estabelecer atividades aqueles que tiverem maior capacidade para pagar por esta mercadoria cara, cujo preço20 dependerá da disputa entre os grupos que a desejam e de sua localização em relação aos equipamentos coletivos e à infraestrutura existente nas proximidades da casa/terreno. O preço da terra urbana e das edificações é definido pela apropriação, propriedade, parcelamento, localização dos terrenos, equipamentos, infraestrutura, zoneamento, áreas de preservação histórica, ambiental e normas de ordenamento territorial, reguladas pelo poder municipal (RODRIGUES, 2003).

Mediante tal configuração, pode-se perguntar: Quem são os interessados em ocupar o solo urbano? Quem produz o espaço urbano? Quem são os agentes sociais que fazem e refazem a cidade? De que forma a população, especialmente a mais pobre, consegue acessar a terra urbana? Os agentes, segundo Corrêa (2005) e Castells (1983), que ocupam e produzem o espaço urbano se agrupam basicamente em: proprietários dos meios de produção, proprietários fundiários, promotores imobiliários, Estado, financiadores e grupos excluídos.

A ação desses agentes não é invisível ou aleatória atuando sobre um espaço abstrato, mas sim, é concreta e influencia de tal forma a garantir os interesses daqueles que dominam a terra urbana. Desse modo, o espaço urbano é produzido e deflagra os arranjos para atender às exigências do capitalismo, ou, como descreve Corrêa (2005, p. 11) é “fragmentado, resultado dos reflexos e dos condicionantes sociais, cheio de símbolos e campos de lutas, fruto de ações acumuladas através do tempo, engendradas pelos agentes que produzem e consomem espaço”.

Comparativamente, os três primeiros agentes (proprietários dos meios de produção, proprietários de terra e promotores imobiliários), mesmo que haja conflitos entre eles, possuem o mesmo objetivo em comum, ou seja, obter renda da terra. A ação desses agentes serve ao propósito dominante da sociedade capitalista que se baseia na reprodução das relações de produção, implicando na continuidade do processo de acumulação. Além disso, no estágio atual do capitalismo, os grandes capitais industriais, financeiros e imobiliários podem

20Conforme a Confederação dos Bispos do Brasil (CNBB, 1982), a proporção do preço do solo urbano no custo

da habitação fica entre 10% a 15% no início da década de 1970; porém em 1980 o custo deste bem passou para 30% a 40%. O preço da terra urbana variou muito a partir da década de 1950, segundo Campos (1989). Nas cidades: Rio de Janeiro o índice de 100 em 1957 passou a 376 em 1976; São Paulo o índice de 100 passou para 867 em 1978; e Belo Horizonte o índice de 100 passou a 856 em 1979. Atualmente as imobiliárias estimam que a cada dez anos os terrenos ou imóveis bem localizados dobram ou mesmo triplicam de preço. (consulta realizada em 2012 à Imobiliária Gaúcha, de Porto Alegre, RS).

estar integrados direta ou indiretamente com grandes corporações que compram, especulam, financiam e produzem o espaço urbano, incluindo se unirem para pressionar o Estado a fim de mediar soluções que atendam seus interesses (CORRÊA, 2005).

Enquanto o primeiro agente (proprietários dos meios de produção) onera os custos de expansão da cidade, na medida em que obtém terrenos amplos e baratos mais distantes do centro, causando o aumento dos preços dos imóveis do entorno de suas propriedades e o incremento do preço da terra, os proprietários fundiários e os promotores imobiliários responsabilizam-se por fazer a especulação da terra urbana, através da transformação de um bem patrimonial em mercadoria (CORRÊA, 2005).

Mediante o crescimento das cidades, as manobras de empreiteiras e incorporadoras, com o aval do poder público, buscam sempre mais a expansão de seus negócios. Assim, passam a incluir no mapa urbano áreas rurais próximas à cidade ou pressionam famílias moradoras de áreas periféricas a ceder e se deslocar ainda mais para a periferia (MOREIRA, 2011). Outras formas de manter os lucros a qualquer preço é oferecer à classe mais abastada, moradora de áreas centrais, conjuntos habitacionais mais afastados que ofereçam maior qualidade de vida, provocando o esvaziamento do bairro. As casas ou edifícios que ficaram ociosos ficam aguardando por valorização (SINGER, 1982).

Para Singer (1982, p. 21), “o capital imobiliário é, portanto, um falso capital. Ele é, sem dúvida, um valor que se valoriza, mas a origem de sua valorização não é atividade produtiva, mas a monopolização do acesso a uma condição indispensável àquela atividade”. Se a posse dos meios de produção é condição necessária para a exploração do trabalho, a ocupação do solo é apenas contingência que o título de propriedade privada torna fonte de renda para quem o detém. “O valor de uso administrado pelos proprietários da terra ou pelos promotores imobiliários tem em vista o crescimento do seu valor de troca, naquilo que se tem denominado de poder especulativo do titular de direito de propriedade” (ALFONSIN, 2003, p. 95).

Quando ocorre um embate entre grupos com interesses antagônicos, prevalecerá o grupo que detém a força, ou o poder. O território é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder. Isso quer dizer que a questão da propriedade é central na organização espacial da sociedade brasileira, consubstanciada pela questão habitacional (ALFONSIN, 2003).

A disputa travada entre os quatro agentes (proprietários dos meios de produção, proprietários fundiários, promotores imobiliários e grupos sociais excluídos) se faz dentro de um marco jurídico que regula a atuação destes, ou seja, por meio do Estado. Esse marco não é

neutro e reflete o interesse dominante de um de seus agentes, constituindo, em muitos casos, uma retórica ambígua que permite transgressões de acordo com “as vontades” do agente dominante. Essa “flexibilidade” para alguns, que inspirou o “jeitinho brasileiro”, pode ser vista através dos condomínios fechados pertencentes aos ricos, que apesar de ilegais, continuam se propagando em muitas cidades brasileiras (MARICATO, 2001).

Na imbricação entre os três primeiros agentes aparece a participação dos agentes financeiros (bancos e outras financiadoras), que são altamente estruturados pelo Estado, tanto em nível da regulamentação sob forma de criação de linhas de créditos especiais ou modos operacionais, quanto de sua implementação, já que historicamente tem se dado prioritariamente através de agências paraestatais: bancos e financiadoras federais ou estaduais, etc. Os agentes financeiros priorizam seus investimentos junto àqueles que poderão dar retorno e não junto à classe mais pobre, que não possui as garantias financeiras exigidas pelo mercado.

O Estado, por sua vez, atua na organização espacial da cidade como um grande industrial, consumidor de espaço e de localizações específicas, proprietário fundiário e promotor imobiliário, sem deixar de ser também um agente de regulação do solo. Entretanto, sua atuação tem sido complexa e variável, tanto no tempo como no espaço, refletindo a dinâmica da sociedade da qual faz parte (CORRÊA, 1989). Os agentes que possuem maior poder de barganha pressionam a ocupação do solo urbano, com anuência do poder público, exigindo serviços de infraestrutura ou privilégios para a manutenção de certas áreas, na tentativa de valorização destas.

A instalação da infraestrutura em áreas periféricas, além de aumentar o preço da terra urbana, dificultando o desenvolvimento de programas habitacionais para a população de baixa renda, também provoca o deslocamento de boa parcela das camadas médias das áreas melhor providas da cidade para as regiões mais distantes, pressionada pela elevação do preço da terra e dos aluguéis nestes locais, e contribui, igualmente, para expulsar os antigos residentes de menor renda, e, esse processo completa o ciclo de deslocamento/substituição/segregação que vem ocorrendo nas cidades brasileiras em função da pauperização crescente de amplos contingentes sociais, da concentração de renda e do fato de a terra urbana cumprir apenas uma função econômica de propiciar super lucros aos seus proprietários (CAVALLIERI; BEZERRA, 1996).

O Estado subsidia a reprodução da força de trabalho por meio de planos habitacionais para a população de baixa renda. Tais planos aumentam a demanda solvável por espaço para morar sem que a oferta de serviços urbanos cresça na mesma proporção, fazendo

que o preço do solo urbano aumente. O resultado desta engrenagem tem provocado a construção de empreendimentos em locais menos valorizados, longe dos recursos e equipamentos comunitários, bem como a construção do próprio morador através da autoconstrução (SINGER, 1982).

A irresponsabilidade do Estado quanto à falta de planejamento, de políticas habitacionais e de gestão do solo urbano vem contribuindo para a construção de modelos excludentes, pois as áreas de mercado são reguladas por um vasto sistema de normas, contratos e leis, que tem quase sempre como condição de entrada a propriedade escriturada, fruto da compra e venda. São essas áreas as beneficiárias do crédito e as destinatárias do habite-se. Os terrenos que a lei permite urbanizar, assim como os financiamentos que a política habitacional praticada no país tem disponibilizado, estão reservados ao restrito círculo dos que têm dinheiro e propriedade da terra. A política habitacional de interesse social tem reforçado a exclusão dos mais pobres ao destiná-los para conjuntos precários em periferias distantes (ROLNIK, 2006).

A ação desses agentes serve ao propósito dominante da sociedade capitalista, que é a da reprodução das relações de produção, implicando na continuidade do processo da acumulação, que conta para isso com o domínio da terra; por outro lado, a tentativa de minimizar os conflitos de classe cabe particularmente ao Estado (LEFÈBVRE, 1999). Nesta perspectiva, Santos adverte:

O espaço geográfico possui uma forma, isto é, uma organização que pretende ser adequada ao funcionamento da sociedade. As decisões para isso são econômicas na base, mas sempre opções políticas. Essa forma é definida ideologicamente, em determinado bloco histórico, que corresponde à hegemonia de determinada classe social. É no âmbito do Estado que se estabelecem os relacionamentos entre interesses divergentes que darão o conteúdo para as formas espaciais. Elas poderão ser mais ou menos excludentes, ou segregacionistas, dependendo das características do bloco histórico [...] (2008, p. 49).

A organização do espaço urbano se constitui em política pública. O Estado – que deveria intervir para que todos os agentes que usam e constroem a cidade tivessem igualdade no seu acesso, especialmente os não proprietários – se constitui visivelmente captado diante dos mecanismos de mercado e confessa a própria impotência política e incapacidade de agilizar, administrativa e judicialmente, o seu empenho pelo respeito devido aos direitos humanos fundamentais dos cidadãos, incluindo o espaço de moradia e o direito de viver na cidade (ALFONSIN, 2003).