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CAPÍTULO 3 – A HIPERVULNERABILIDADE DO IDOSO NAS

3.2. Aspectos gerais do superendividamento

3.2.2. As consequências do superendividamento

A atuação agressiva de fomento ao consumo dos fornecedores em relação ao consumidores, torna o ambiente propenso ao surgimento destes cada vez mais endividados, ou melhor, superendividados. O mais grave é pensar que não existem instrumentos legais de proteção específica nesse sentido. O mercado de consumo age sem precedentes no estímulo a obtenção de objetos ou de crédito, como se estes fossem peças fundamentais.

A publicidade é tão bem direcionada aos públicos específicos, que dá a nítida impressão de que o sujeito está consumindo porque quer, e não por conta da indução feita nas entrelinhas através da mídia, seja televisiva, digital, entre outras.

Conforme visto, num contexto geral, a caracterização do superendividamento possui traços comuns, ou seja, se dá pela impossibilidade do pagamento das dívidas atuais e futuras pelo consumidor pessoa física que as contraiu de boa-fé e que, de forma involuntária, pôs-se nesta situação270.

O superendividamento não se limita apenas às classes mais baixas. Deu-se importância ao avanço da Classe C em relação ao empoderamento causado pelo acesso ao mercado de consumo como um todo, mas a situação de superendividado ultrapassa as fronteiras das classes sociais. Qualquer indivíduo pode, em algum momento da vida, ser considerado superendividado.

Como visto em capítulo anterior, os fornecedores sabem das reais necessidades dos consumidores, mas a visão de mercado acaba passando longe dos objetivos fundamentais previstos na Carta Magna de 1988271. Numa relação jurídica de consumo,

269 TJ-RJ. AI 2005.002.27037, Relator: Des. Marco Antonio Ibrahim, Data de Julgamento: 17/01/20 06, Décima Oitava Câmara Cível.

270 O tema será melhor explicitado no item 4.4, que trata do regramento legal do superendividamento no âmbito internacional.

a lucratividade se sobrepõe a dignidade do contratante, no caso, o consumidor. A sua vulnerabilidade é agravada num patamar muito elevado, a ponto de crer na necessidade vital da obtenção de bens ou serviços postos à sua disposição.

Os bens e serviços colocados no mercado se renovam a cada dia e a sua aquisição nem sempre se revela realmente como necessária. A pós-modernidade em que estamos inseridos possui a característica de incentivo ao consumo aliada ao bem-estar, onde “toda uma sociedade se mobiliza em torno do projeto de arranjar um cotidiano confortável e fácil, sinônimo de felicidade”272.

A dita felicidade, de pronto, já pode revelar-se uma farsa, pois que tem como grande traço, na prática, a sua instantaneidade seguida pela insatisfação posterior, gerando o fomento à aquisição de novidades, num ciclo vicioso de busca pela felicidade que não existe, pois não pode ser materializada. A felicidade é um sentimento interno do ser humano, e possui conceito dotado de abstração.

Essa busca incessante pela felicidade imposta pela mídia traz como consequência, também, o superendividamento273.

Como já referido anteriormente, a ausência da educação para o consumo permite uma atuação desenfreada dos fornecedores na busca por lucratividade. Os consumidores passam a atuar no mercado de consumo por impulsividade, que se caracteriza como consequência do incentivo ao consumo feita pela mídia, que incute na mente dos consumidores necessidades, em sua grande maioria, inexistentes.

A cultura do consumo impõe um padrão que vai além da exigência física, representada pela magreza, vendendo a ideia de que o consumidor deve estar sempre vinculado aos padrões da moda, com a imputação do uso de certos modelos de roupa e de marca como forma de inclusão na sociedade. A mensagem passada pela publicidade “dita os preços, a moda, o desenvolvimento do mercado, afetando a economia de tal maneira que sem a publicidade as vendas não teriam o sucesso e a rentabilidade que

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

272 LIPOVETSKY, Guilles. A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad.

Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 35.

273 GAULIA, Cristina Tereza. O abuso na concessão de crédito: o risco do empreendimento financeiro na era do hiperconsumo. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 71. São Paulo: Ed. RT, jul.-set., 2009.

têm”274. Ela tem o poder de controle perante a sociedade, alienando a grande massa receptora das suas mensagens275.

A necessidade representativa enfraquece certas atitudes dos consumidores, que na gana de obter o objeto ou o serviço de desejo, negligencia a exigência da “informação adequada e clara [...] com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”276, e acabam vítimas da publicidade enganosa e abusiva, dos métodos comerciais coercitivos e desleais, e das práticas e cláusulas abusivas impostas nos contratos do consumo.

A educação para o consumo figura como direito básico no artigo 6º, II do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, rezando que nas relações jurídicas deverão ser “asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações”. A falta de efetividade do dispositivo legal também figura como causa para o superendividamento, pois facilita a ludibriação do consumidor no momento da aquisição do produto ou do serviço, já que a sua capacidade de compreensão das condições da contratação é bastante diminuída, ou seja, a sua reflexão racional é mitigada.

O uso do cartão de crédito também robustece a lista de fatores que contribuem para o aumento do superendividamento. A aquisição do conhecido dinheiro de plástico não possui muitas barreiras. Assim como houve a democratização do acesso ao crédito, a facilidade com que se formalizam contratos com empresas operadoras de cartões de crédito é crescente. É muito comum as abordagens no comércio através da famosa frase: “Senhor(a), vamos fazer o cartão de crédito X?”. Esse simples questionamento é capaz de provocar sensações diversas nos consumidores, Porque este, bem como outros questionamentos, estão sempre inseridos num contexto convidativo, seja ao lado de um item em promoção no supermercado, ou nas ruas do comércio popular.

274 EFING, Antonio Carlos; SOUZA, Maristela Denise Marques de. O comportamento do consumidor sob influência da publicidade e a garantia constitucional da dignidade humana. Revista de Direitos

Fundamentais e Democracia. Curitiba, v. 16, p. 70-94, jul./dez. 2014, p. 81.

275 “A comunicação em massa é um fator propulsor para a perpetuação da alienação do consumidor, da criação das falsas necessidades de consumo (“ilusões”) e até, inclusive, da interiorização de certo padrão de produção, a saber, o modo capitalista, como a única alternativa viável de produção e distribuição de produtos” (EFING, Antonio Carlos; SOUZA, Maristela Denise Marques de. Ibid., p. 86). 276 CDC, Art. 6º, III.

Mister salientar também as situações em que há o envio do cartão de crédito sem a solicitação prévia do consumidor. Tal prática é considerada abusiva e pode ensejar o pagamento de multa administrativa, além de indenização ao sujeito277.

O cartão de crédito acaba figurando como grande vilão na seara do superendividamento, mas ele representa apenas uma fatia diante de tantos elementos. O holofote é virado para esse meio de utilização de crédito talvez pela forma contínua e, por vezes, ilimitada de concessão. Apesar dos plásticos possuírem data de validade, os contratos assinados para a obtenção de cartão de crédito acabam sendo por prazo indeterminado, pois não se constata muita dificuldade nas solicitações de novos cartões após passado o seu prazo de vigência. Outra característica que pesa bastante é o aumento constante da taxa de limite das compras sem mesmo haver solicitação do titular.

As facilidades trazem consigo muitos ônus, como o alto índice de juros cobrados, apesar da possibilidade do pagamento das faturas através do valor mínimo. A ausência de informação passada ao consumidor possibilita um olhar para o pagamento mínimo de forma desvirtuada, com a ideia de que pagar menos possibilitará a economia de dinheiro para quitar toda a fatura no próximo mês.

Essa falsa impressão acontece constantemente. O pagamento do valor mínimo do cartão de crédito de forma corriqueira sempre traz prejuízo, pois haverá a incidência dos juros no saldo devedor da fatura. Agora, imagine o pagamento mínimo feito mensalmente. Isso, na verdade, impossibilita a quitação da dívida, tornando esta impagável face aos juros acrescidos. O sujeito acaba pagando o valor real da dívida e ainda fica com saldo devedor ativo para pagar, sendo possível que este valor ultrapasse o valor inicial a ser pago.

Nesse sentido, as administradoras de cartão de crédito foram beneficiadas, pois a cobrança dos juros remuneratórios não se sujeita às limitações da Lei da Usura278, que dispõe sobre os juros nos contratos.

Fazendo um exercício prático, chegamos ao contexto da situação de um consumidor que contraiu dívida no cartão de crédito no montante de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), cuja taxa de juros mensal é de 16% (dezesseis por cento).

277 Súmula 532 do STJ: “Constitui prática comercial abusiva o envio de cartão de crédito sem prévia e expressa solicitação do consumidor, configurando-se ato ilícito indenizável e sujeito à aplicação de multa administrativa”.

278 Súmula 283 do STJ: “As empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por ela cobrados não sofrem as limitações da Lei da Usura”.

Supondo que não fora realizada nenhuma outra compra no período de 01 (um) ano e que, durante este mesmo período, o sujeito optou por pagar o valor mínimo da fatura, representando 10% (dez por cento) real valor da dívida, observa-se após os 12 (doze) meses que fora pago valor superior ao que era devido inicialmente e que ainda restou um saldo devedor representando mais de 200% (duzentos por cento) desse mesmo valor. O relato é representado na tabela abaixo279.

Dívida no Cartão de Crédito com Parcela Mínima

Mês Fatura Atual Valor Pago Saldo Remanescente Juros (16% A.M) Próxima Fatura Janeiro R$ 2.500,00 R$ 250,00 R$ 2.250,00 R$ 360,00 R$ 2.610,00 Fevereiro R$ 2.610,00 R$ 250,00 R$ 2.360,00 R$ 377,60 R$ 2.737,60 Março R$ 2.737,60 R$ 250,00 R$ 2.487,60 R$ 398,02 R$ 2.885,62 Abril R$ 2.885,62 R$ 250,00 R$ 2.635,62 R$ 421,70 R$ 3.057,31 Maio R$ 3.057,31 R$ 250,00 R$ 2.807,31 R$ 449,17 R$ 3.256,48 Junho R$ 3.256,48 R$ 250,00 R$ 3.006,48 R$ 481,04 R$ 3.487,52 Julho R$ 3.487,52 R$ 250,00 R$ 3.237,52 R$ 518,00 R$ 3.755,53 Agosto R$ 3.755,53 R$ 250,00 R$ 3.505,53 R$ 560,88 R$ 4.066,41 Setembro R$ 4.066,41 R$ 250,00 R$ 3.816,41 R$ 610,63 R$ 4.427,04 Outubro R$ 4.427,04 R$ 250,00 R$ 4.177,04 R$ 668,33 R$ 4.845,36 Novembro R$ 4.845,36 R$ 250,00 R$ 4.595,36 R$ 735,26 R$ 5.330,62 Dezembro R$ 5.330,62 R$ 250,00 R$ 5.080,62 R$ 812,90 R$ 5.893,52 Total Pago: R$3.000,00 Ainda deve: R$ 5.893,52

A hipótese acima está mais do que sedimentada na realidade dos consumidores, que não sabem calcular o custo efetivo total das suas compras.

Um dos motivos do aumento do endividamento da população norte-americana é a facilitação do acesso aos cartões de crédito. A sua utilização sem planejamento

279 Interessante trazer à baila as taxas de juros do cartão de crédito e do cheque especial por representarem as maiores praticadas no mercado, no que se refere a crédito. De acordo com o Banco Central do Brasil, na primeira semana do ano de 2017, a taxa de juros do cheque especial foi de 525,65% ao ano. No mesmo período, a taxa de juros do cartão de crédito foi de 371,43% ao ano. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br>. Acesso em: 20 jan. 2017.

estimula o gasto de forma excedente, incompatível com a realidade financeira do consumidor280.

Indispensável também se faz destacar o crédito consignado, que possui ligação quase que direta ao tema do presente estudo, por representar a grande porta de entrada dos idosos aposentados e pensionistas ao mercado de crédito. Nessa modalidade, o desconto dos valores contratados são feitos diretamente nos benefícios percebidos, principalmente, por essa classe de consumidores.

A promessa da incidência de juros mais baixos e da facilidade de acesso também traz a sensação de que a adesão é um bom negócio.

O fenômeno também pode ocorrer em virtude de circunstâncias imprevistas da vida, como problemas de saúde, desemprego, divórcio, entre outros281.

Em contrapartida, o engano praticado perante os consumidores traz consequências muito graves nos campos individual, familiar e social. Individualmente e socialmente, a exclusão do indivíduo da sociedade de consumo pode provocar, entre outros fatores, o seu isolamento e problemas de saúde.

No âmbito familiar, ainda há um agravante quando pensamos no reflexo dessa situação do desenvolvimento das crianças, que também compõem o grupo de hipervulneráveis. A convivência num núcleo familiar marcado por estresse, violência e pais ausentes pode interferir diretamente no comportamento das crianças no futuro.

Alguns explicam a escalada de violência entre as crianças pequenas como uma consequência do estresse econômico, que obriga os pais a trabalharem mais, deixando os filhos muito tempo nas creches ou sozinhos depois do horário escolar, e de verem os pais chegarem em casa arrancando os cabelos de desespero. Outros apontam para dados que mostram que, nos Estados Unidos, 40% das crianças de 1 a 2 anos assistem a pelo menos três horas de televisão por dia – horas durante as quais não estão interagindo com pessoas que podem ajudá-las a aprender a conviver melhor com outras pessoas. Quanto mais assistem à televisão, mais indisciplinadas se tornam ao chegar à idade escolar282.

Essa fragilidade explícita que se inicia na fase da infância, as transforma no adulto desejado pelo mercado: que consome, tem satisfação temporária, descarta e adquire novamente; vivendo nesse ciclo vicioso. Além da falta de preocupação com o

280 MARTIN, Nathalie; SWEET, Ocean Tama y. Mind games: rethinking BPCPA’s debtor education provisions. Southern Illinois University Law Journal. Illinois, v. 31, p. 817-848, 2007.

281 BATTELLO, Silvio Javier. A (in)justiça dos endividados brasileiros: uma análise evolutiva. In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli (Coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, P.226.

indivíduo, há um descuido, também, com a repercussão deste ciclo vicioso no meio ambiente. Neste quesito, a preocupação se dá na forma de descarte dos objetos. Também não existe uma política de educação neste sentido, mas o mais grave é crer que ultrapassamos a esfera da obsolescência planejada nos produtos, com a implementação destes conceitos no subconsciente dos indivíduos que consomem. O treino ao descarte já está sedimentado e parece não haver o necessário tratamento também neste sentido.

Um estudo realizado pelo Centre for Research on Stress, Coping, and Well-

being, do Departamento de Psicologia da Universidade de Carleton, no Canadá,

demonstrou que o estresse financeiro pode ocasionar, normalmente, algumas emoções como o pavor, a ansiedade e o medo, podendo também estar presentes os sentimentos de raiva e frustração283. O stress financeiro tem desencadeado aumento dos problemas de saúde física e mental, problemas com alcoolismo e, inclusive, suicídio284.

Os efeitos ocorridos vão além da seara do direito e da economia, sendo necessária a interlocução também no âmbito psicossocial285, pois que suas consequências estão cada vez mais presentes.

Tudo em excesso é tendencioso a causar o descontrole. Essa regra também é perfeitamente aplicável nas relações consumeristas, pois o consumo exacerbado pode causar o superendividamento do sujeito.

Trazendo para o foco do estudo, aqui se constata o agravamento da vulnerabilidade do consumidor idoso. Ele é visto pelo mercado de consumo como alvo fácil de ser atingido. Sua aposentadoria mensal representa solvência, ou seja, manutenção da lucratividade. Ocorre que a falsa ideia de satisfação acaba por comprometer grande parte da renda dos idosos, que, muitas vezes, vê-se sem saída na possibilidade de adimplir suas dívidas em virtude da sua capacidade produtiva reduzida e, também, por ser, em grande parte das vezes, arrimo de família.