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CAPÍTULO 3 – A HIPERVULNERABILIDADE DO IDOSO NAS

3.2. Aspectos gerais do superendividamento

3.2.1. Características essenciais

A Lei n. 8.078/90 conceituou consumidor como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”256. A norma consumerista abarcou em seu conceito tanto as pessoas físicas, quanto as jurídicas, conforme fora tratado no capítulo 2 do presente trabalho.

Ao tratar do superendividamento, temos que pode estar nesta situação o consumidor, mas aqui só se insere o consumidor pessoa física. Não há a tutela para a pessoa jurídica.

O superendividamento se caracteriza pela:

[...] impossibilidade global do devedor – pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas

255BUENO, Cléria Maria Lobo Bittar; LIMA, Lara Carvalho Vilela. Envelhecimento e gênero: A vulnerabilidade de idosas no Brasil. Revista Saúde e Pesquisa, v. 2, p. 273-280, 2009, p. 276.

as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e alimentos) em um tempo razoável com sua capacidade atual de rendas e patrimônio257.

Para a caracterização do superendividamento do consumidor, devem estar presentes os requisitos necessários, quais sejam: pessoa física, leiga, de boa-fé e estar impossibilitado de realizar o pagamento das suas dívidas vencidas ou vincendas, excluindo-se as dívidas com o fisco, de alimentos ou oriundas de delitos.

Além disso, também é possível vislumbrar situação de sobreendividamento aquela em que “o devedor, apesar de continuar a cumprir os seus compromissos financeiros, o faz com sérias dificuldades”258.

O fenômeno é crescente. O brasileiro médio, em regra, não sabe lidar com a concessão de crédito, havendo a necessidade de medidas educacionais, já que o superendividamento afeta o consumidor em diversos aspectos, tais como: qualidade de vida, saúde, segurança e dignidade259.

O superendividamento se subdivide em ativo e passivo. O superendividamento ativo se caracteriza pela “acumulação inconsiderada de dívidas”260. São pessoas que gastam de forma desenfreada e acima do seu padrão financeiro. Esse conceito representa a consequência grave da falta de educação para o consumo. O sujeito diante de um mercado dominante tem seus reais desejos previamente determinados e moldados para a finalidade de fazer dinheiro.

Há uma subdivisão do superendividamento ativo em duas espécies: consciente e inconsciente.

O superendividado ativo consciente é aquele que contrai dívidas tendo plena certeza de que não poderá honrá-las. Ele age de má-fé, “visando ludibriar o credor e deixar de cumprir sua prestação”261.

Como visto, um dos requisitos para que o consumidor seja considerado superendividado é a boa-fé perante os fornecedores. Dessa forma, levando em

257 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos; MIRAGEM, Bruno.

Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.

1051.

258 MARQUES, Maria Manuel Leitão; FRADE, Catarina. Regular o Sobreendividamento. Disponível em: <https://www.gplp.mj.pt>. Acesso em: 03 jan. 2015, p. 4.

259 O Professor da Universidade de Savoie, Gilles Paisant, ao prefaciar a obra de Marques, Lima e Bertoncello (Prevenção e Tratamento do Superendividamento. Ricardo Morishita Wada e Juliana Pereira da Silva (Coord.). Brasília: DPDC/SDE, 2010, p. 10), fez a seguinte afirmação: “O superendividamento é fonte de isolamento, de marginalização; ele contribui para o aniquilamento social do indivíduo”.

260 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Op. cit., p. 261.

261 SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e classificação. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, n. 71, p. 09-33, jul.-set., 2009, p. 21.

consideração a ausência de boa-fé, o consumidor que se sobreendividar com a intenção de não arcar com suas dívidas, não se enquadra no conceito de superendividado e não faz jus à proteção do Estado262.

Já o superendividado ativo inconsciente é aquele que não realizou o controle dos seus gastos e os fez de forma impulsiva. Embora não tenha sido acometido por fato superveniente, não agiu de má-fé. Nessa hipótese, “o fenômeno do superendividamento se dá em função de que a sociedade moderna de consumo induz as aquisições supérfluas e desnecessárias, pelo simples impulso da compra”263. Aqui, o consumidor é vítima das armadilhas do mercado.

Enquanto que o superendividamento passivo refere-se à situação em que há uma “redução brutal dos recursos devido às áleas da vida”264, ou seja, a insolvência ocorreu de forma involuntária, que pode ser representada pela perda do emprego, por um problema de saúde, entre outros fatores. De acordo com Giles Paisant, “o sobreendividamento passivo se refere a indivíduos que não gozam de recursos suficientes para satisfazer suas necessidades mínimas de consumo, ao contrário dos sobreendividados ativos, que abusaram do crédito”265.

Como se percebe, as características recaem em qualquer das situações. O consumidor deve ser dotado de boa-fé e ter capacidade econômica inferior ao quantitativo devido.

Apesar do posicionamento concreto da doutrina acerca do superendividamento, não existe um valor mínimo ou uma quantidade mínima de dívidas para que o devedor seja enquadrado como tal.

A verificação dessa situação “se dá mediante uma comparação entre o ativo e o passivo do indivíduo e sua família, atentando para as particularidades do caso, como as necessidades básicas daquele”266.

Sobre o tratamento normativo, no Brasil, atualmente, não existe norma legal que discipline especificamente o superendividamento. As respostas têm sido dadas por meio da doutrina, conforme descrito acima, e da jurisprudência.

262 SCHMIDT NETO, André Perin. Ibid., p. 21. 263 SCHMIDT NETO, André Perin. Op. cit., p. 22.

264 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Op. cit., p. 261.

265 Tradução livre. No original: “el sobreendeudamiento passivo se refiere a indivíduos que no gozan de bastantes recursos para satisfacer sus necesidades mínimas de consumo, frente a los sobreendeudados activos que han abusado del crédito” (PAISANT, Giles. El tratamento del sobreendeudamiento de los

consumidores em derecho Frances. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, v. 42, p. 9-26, abr.- jun. 2002, p. 12).

A jurisprudência tem se manifestado de modo a buscar ferramentas aptas a tutelar o consumidor superendividado. Com guarida nos princípios da função social dos contratos, da boa-fé objetiva e também da dignidade da pessoa humana, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu a situação de superendividamento por abuso na concessão de crédito praticado pelo fornecedor.

Uma vez demonstrado pelo agravante que as operações de crédito vencidas junto ao banco agravado são muito superiores aos seus rendimentos mensais, os quais estão sendo consumidos integralmente no mesmo dia em que pagos, tem-se a hipótese de superendividamento gerado em razão de abuso na concessão de crédito pela instituição financeira, violação à boa-fé objetiva e prática comercial abusiva contra o consumidor, e, como tal, nula de pleno direito a cláusula contratual que autoriza tal dedução automática267.

Interessante afirmar que qualquer consumidor, independentemente do seu sexo, profissão, idade ou credo, pode se tornar superendividado. Todos são atingíveis pelo poder da publicidade, uns mais facilmente, outros não.

O comportamento impulsivo atinge a todos os cidadãos, mesmo os consumidores mais letrados, com alta formação que, supõe-se, não tão facilmente ludibriáveis, mas ainda assim são pegos pelas armadilhas do

marketing que cria necessidades e manipula as formas de demonstração de

poder dos consumidores, levando-os a crer que serão admirados e considerados bem sucedidos, bonitos ou felizes se possuírem determinado produto268.

O recorte trazido pelo trabalho destaca a situação do idoso como vítima potencial, considerando a sua hipervulnerabilidade frente à oferta em abundância direcionada a esse público.

Nesse sentido, destacamos a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que salientou a preocupação com as causas e efeitos do superendividamento e ressaltou a ilicitude da conduta praticada pelas instituições financeiras, que se valem da ingenuidade dos consumidores, que acabam vítimas do marketing agressivo do crédito fácil e vantajoso.

É crescente a preocupação da Doutrina e da Jurisprudência com as causas e os efeitos do "superendividamento", tendo sido reconhecida, como ilícita, a conduta abusiva e irresponsável de algumas instituições financeiras que - se valendo da ingenuidade de gente humilde, especialmente, aposentados - com base em maciça campanha publicitária oferecem crédito fácil a quem não pode pagar, sem grave prejuízo de seu sustento. O abuso do direito de

267 TJ-RS - AGV: 70047212519 RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Data de Julgamento: 08/03/2012, Décima Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 14/03/2012.

oferecer empréstimos, sem uma cuidadosa e responsável análise da capacidade de endividamento do tomador, viola o princípio da boa-fé objetiva e não pode contar com o beneplácito do Judiciário269.

Assim, o diálogo entre a Carta Magna, o Código Civil de 2002, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso e legislações correlatas, fornece mecanismos que dão guarida à situação de superendividamento dos idosos.