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CAPÍTULO 3 - DAS JUSTIFICAÇÕES RACIONAIS AUTORIZATIVAS DO PODER DE

3.4. As contemporâneas justificações do poder de tributar

Diante deste novo cenário acima apontado, quais seriam as justificativas racionais do exercício do poder de tributar? Em resposta, novamente nos socorremos da perspicácia e sapiência das lições de Luís Eduardo Schoueri, segundo o qual a tributação do Estado do século XXI somente se justifica na medida em que contribui para o gozo da liberdade coletiva. Para o renomado mestre, o poder de tributar já não mais se justifica em si mesmo, mas apenas e tão somente para fazer frente à atuação estatal que, na exata proporção da medida de riqueza

107 SCHOUERI, Luís Eduardo. op. cit. (nota 12), p. 34.

108 Ibid., p. 34: “A síntese que desse conflito resulta (Estado Liberal x Estado Social) começa a apresentar suas primeiras feições, quando se propõe, no lugar da atuação direta do Estado, a criação de agências reguladoras que ofereçam maior espaço à iniciativa privada; a previdência privada surge como alternativa à oficial; obras públicas se fazem por meio de parcerias público-privadas;

organizações não governamentais prestam assistência social negada pelo Estado; em síntese: a sociedade já não mais espera a atuação estatal.”

retirada da sociedade civil, seja apta para a construção da liberdade coletiva e da inclusão social. De outro ângulo, mas no mesmo sentido, resta absolutamente ilegítimo o aumento desmedido e infindável de tributos que não se revelem aptos à realização dos fins sociais almejados, especialmente os albergados pela Carta Constitucional. Nas exatas palavras do Professor Titular de Direito Tributário da Universidade de São Paulo109:

O retorno da liberdade à sociedade civil, com a negação da onipresença estatal, devolve a questão de limites para a tributação.

Afinal, qual o preço que se está disposto a pagar para o gozo da liberdade coletiva? Se no Estado Social a sociedade pagava um preço para o Estado atingir o desiderato coletivo, no Estado do século XXI a sociedade passa a compreender que o preço tornou-se muito alto e o resultado, pífio. A tributação excessiva torna-se inconciliável como o modelo de Estado do século XXI, pois implica retirar recursos que a própria coletividade necessita para seus fins. A transferência excessiva de recursos ao Estado pela sociedade tolhe a iniciativa desta, reduzindo ou impossibilitando o desenvolvimento econômico.

[...]

Daí a reivindicação da sociedade tomar para si as tarefas antes delegadas ao Estado, recusando-se, daí, a pagar um preço exorbitante por uma liberdade que aquele já não mais se revela apto a promover.

[...]

Opõe-se, daí, o Estado do século XXI à construção de que o tributo seria um “dever fundamental”, por ser meio para que o Estado assegure direitos fundamentais: se estes também são garantidos pela sociedade, não se justifica a tributação que impede o florescimento de oportunidades para a justiça social – objetivo da Ordem Econômica, nos termos do artigo 170 da Constituição Federal – seja construída a partir da valorização do trabalho e da livre-iniciativa. Em síntese, se o tributo é o preço da liberdade, esse preço não é ilimitado.

109 Ibid., p. 35 a 37.

Em síntese, note-se que, sob a perspectiva da justificação racional para o exercício do poder de tributar (ou para o exercício da competência tributária), não remanesce legitimidade à cobrança de tributos no Estado do século XXI, em especial de caráter fiscal, que não guarde contrapartida direta e necessária com a realização de direitos fundamentais e ou sociais.

No mesmo sentido caminham as lições de Rodrigo Luís Kanayama, para o qual o Estado somente institui tributos para sustentar seu funcionamento, na outra ponta, visando o atendimento das obrigações previstas na Constituição, razão pela qual, arremata, a arrecadação deve possuir motivo110. Ainda, esclarece o autor que:

De fato, o preço da liberdade, no Estado Liberal, é o tributo. É o preço que se paga para que o Estado garanta o espaço privado. E esse preço não pode permanecer ao alvedrio de um soberano, mas deve ser determinado pelo próprio povo: pela lei. E não deve ser um fim em si mesmo, mas deve servir a um propósito: manter o funcionamento da máquina estatal, no que se relaciona à satisfação de necessidades públicas, e eventualmente servir para intervir na esfera privada a fim de manter hígida a economia e a sociedade111.

A partir de inferências oriundas da necessidade de concretização do princípio republicano, outras não foram as conclusões de Roque Antonio Carrazza, ao dispor que não se admite que “o povo, em cujo nome o poder é exercido, possa ser lesado, até por meio de uma tributação voltada apenas para os interesses do Estado”112. Numa República, relembra o referido autor, os governantes nada mais são que gestores da coisa pública, gestores portanto de coisa alheia, do povo, da coletividade, cujos interesses e necessidades deverão nortear as escolhas pretendidas. E complementa para aduzir que, num governo republicano, em especial

110KANAYAMA, Rodrigo Luiz. Responsabilidade da atividade financeira e necessária relação entre receitas e despesas públicas. GRUPENMACHER, Betina Treiger (Org.). Tributação: Democracia e Liberdade – São Paulo: Noeses, 2014, p. 480.

111 Ibidem, p. 481 – 482.

112 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário – 29ª rev. ampl. e atual. – São Paulo: Malheiros, 2013, p. 70.

o Poder Legislativo não poderá jamais perder de vistas que sua obrigação é zelar pelos interesses da coletividade113.

Ao discorrer sobre a proibição de vantagens tributárias fundadas em privilégios, Carrazza relativiza o poder de tributar aos princípios republicanos, ao dispor que114:

Não é porque o Estado, para sobreviver, precisa de meios pecuniários (dinheiro) que os contribuintes podem ter seus direitos atropelados.

Constitucionalmente, pois, um tributo não pode ter outro escopo que o de instrumentar o Estado a alcançar o bem comum. A nosso ver, qualquer exação que não persiga esta finalidade é inconstitucional.

[...]

O princípio republicano leva-nos, necessariamente, como podemos notar, ao princípio da destinação pública do dinheiro obtido mediante a tributação, muito bem discernido pelo gênio de Aliomar Baleeiro.

A lei que cria um tributo e que, nestes termos, exercita a competência tributária deve, em tese, atentar somente para os interesses do povo e para o bem-estar do país.

Ao tratar das relações entre o princípio republicano e a competência tributária, o Professor Titular de Direito Tributário da Universidade Católica do Estado de São Paulo reafirma ser fundamental que os ideais republicanos prevaleçam quando do exercício do poder de tributar, para que, com isso, se evitem injustiças e arbitrariedades contra o próprio povo, detentor último de todas as competências e poderes republicanos. Nesse sentido, seria absurdo concluir que o mesmo povo que outorga a competência tributária, seja vítima do uso inconsequente desta prerrogativa conferida às pessoas políticas, pelo que, ainda que haja extrema dificuldade de se demonstrar a incompatibilidade do exercício da tributação com o princípio republicano, sempre haverá situações em que isso se mostra flagrante. Em suma115:

113 Ibidem, 71.

114 Ibdem, 85.

115 Ibidem, 95.

A conclusão a tirar, portanto, é que República reconhece a todas as pessoas o direito de só serem tributadas em função do superior interesse do Estado. Os tributos só podem ser criados e exigidos por razões públicas. Em consequência, o dinheiro obtido com a tributação deve ter destinação pública, isto é, deve ser preordenado à mantença da res pública.

Assim, a pessoa política, quando exercitar a competência tributária, deve ter a cautela de verificar se está acolhendo com boa sombra o princípio republicano.

Doravante, sob as novas luzes aqui lançadas acerca da justificação racional ao poder de tributar, novamente devemos nos perguntar: será constitucional a instituição e/ou majoração de tributos cuja expectativa de receita não guarde correção lógica com o incremento das liberdades coletivas? Este infeliz e indesejado quadro de “tributação excessiva” e retorno inviável e desproporcional de resultados afetos à realização das “liberdades coletivas”, guarda amparo na nossa Ordem Constitucional? Será constitucional a instituição e/ou majoração dos tributos, mesmo que a realização de “mais e melhores direitos” seja inviável frente às estruturas estatais existentes? Ou será legítima e juridicamente amparada a insurgência da sociedade brasileira, seja individual ou coletiva, de pleitear a inconstitucionalidade da norma que institui ou majora tributos e cuja expectativa de receita se revele desproporcional ao custo dos direitos?

Sob outro enfoque, continuamos a questionar: podemos admitir a compatibilidade do exercício da competência tributária do Estado ineficaz como sendo compatível com a atual Ordem Constitucional brasileira? Ou cabe ao interprete do Direito, para além da construção de normas que representem a derrocada da ordem econômica e social e, por sua vez, da própria ordem Constitucional, Republicana, Democrática e de Direito, construir normas jurídicas afetas ao exercício da competência tributária que sejam capazes de inferir tais consequências inadmissíveis116, justamente para rechaça-las, em prol de outras interpretações possíveis, que sejam capazes de assegurar a coesão social, o pacto republicano, a concretização da liberdade e o objetivo fundamental de desenvolvimento nacional?

116 Aqui, referimo-nos às consequências jurídicas, tais quais preconizadas por Neil MacCormick, de violação dos princípios republicanos, da justiça e da proporcionalidade.

Destarte, caso concluamos pela incompatibilidade deste quadro de “tributação excessiva e resultados pífios” com a Constituição da República, não estaríamos impelidos a rever as normas que tratam da competência tributária, cujas limitações tem sido acriticamente admitidas por boa parte da doutrina jurídico-tributária pátria como restritas ao texto normativo dos artigos 150 a 152 da Constituição da República e limitadas ao contexto do capítulo “Do Sistema Tributário Nacional”, tendo em vista que tais interpretações não foram capazes de evitar estas consequências indesejadas, nem fomentar maior bem-estar, nem promover “mais e melhores direitos”; nem garantir o desenvolvimento nacional e à observância dos valores republicanos?

Se razão assiste a Luís Eduardo Schoueri (e acreditamos que sim); se o tributo, enquanto preço da liberdade coletiva, “tornou-se muito alto e o resultado, pífio”; se “o agigantamento do Estado ... já não era garantia de melhor distribuição de renda ou de eficiência econômica”; se “a tributação excessiva torna-se inconciliável como o modelo de Estado do século XXI117; somos forçados a concluir pela necessidade de reconstrução das normas jurídicas tributárias que tratam da competência tributária. Nesta nova perspectiva de Estado e frente à insuficiência do modelo de Estado Social Fiscal, este dever-poder de tributar, melhor designada de competência tributária, não poderá mais representar um “cheque em branco”. Ao contrário, o exercício da competência tributária deverá estar vinculado ao montante de recursos necessários ao atingimento, efetivo e concreto, de fins de alta relevância constitucional, estrita e detalhadamente previstos e planejados. De outro lado, a incapacidade de planejamento e a comprovada incapacidade de realização, deverão representar limites ao poder de tributar.

Nesta perspectiva, o planejamento da despesa pública deixa de ser uma etapa da realização da despesa, para se tornar pré-requisito indispensável que permita o exercício da competência tributária e a consequente realização da receita.

Enfim, a título de “nova” conclusão parcial, podemos afirmar que o exercício da competência tributária desproporcional e mais gravosa que o “custo” efetivo dos direitos, além de ser incompatível com o princípio da justiça, não guarda qualquer justificação racional que lhe autorize, sendo, portanto, inconstitucional. Em outras palavras, a Constituição da República autoriza ao Estado, apenas e tão somente, a

117 SCHOUERI, Luís Eduardo. op. cit. (nota 12), p. 35 a 37.

instituição e/ou majoração de tributos, cujas respectivas receitas representem o meio, adequado, necessário e proporcional para promover a realização dos direitos.

Mesmo assumida esta conclusão parcial, contudo, um problema remanesce:

qual o “custo dos direitos” que servirá de critério para a verificação da adequação do exercício da competência tributária? Será o montante de recursos normalmente gastos pelo Estado para a realização de seus misteres, ainda que de forma ineficiente e desproporcional? Ou será o “custo efetivo dos direitos”, assim considerado o montante de recursos que seria suficiente para a realização dos direitos caso a Administração Pública funcionasse de maneira eficiente? Qual destes dois “custos dos direitos” a coletividade estará obrigada a arcar, de acordo com a atual Ordem Constitucional? Eis o que pretendemos responder no próximo capítulo.