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3.2 Definição de Diferença

3.2.2 As diferenças no primeiro ano do ensino fundamental

Quem são as crianças que frequentam a escola pública hoje, especialmente o primeiro ano do ensino fundamental? Já que falamos em diferenças, cabe saber quem são essas crianças, o que elas fazem, o que a escola espera delas.

Neste tópico, a intenção é descrever brevemente o perfil das crianças que estão na escola pública hoje, enfocando suas especificidades. Para isso, será utilizada uma perspectiva com base em estudos psicológicos sobre o desenvolvimento infantil e uma perspectiva social e cultural baseada em pesquisa realizada no Brasil por Kappel, Carvalho e Kramer (2001).

O professor, ao entrar na sala de aula, se depara sem dúvida com uma infinidade de tipos. “Em uma classe de ensino fundamental, apesar da relativa proximidade de idade, talvez haja mais diferenças que a maioria dos grupos constituídos em uma sociedade” (PERRENOUD, 2000, p. 69). Essas diferenças revelam distintos interesses, motivações e níveis de aprendizagem com os quais os professores precisam lidar cotidianamente.

Apesar de não haver pretensões pedagógicas em seus estudos, o biólogo suíço Jean Piaget (1972) trouxe uma enorme contribuição para o entendimento de como se dá o desenvolvimento do ser humano. Ao definir os estágios de desenvolvimento, demonstra o

processo evolutivo e de caráter universal pelo qual as crianças passam ao conquistar avanços na construção do conhecimento a cada nova fase de sua vida. Esses avanços possibilitam que as crianças atuem num campo conceitual cada vez mais amplo.

A psicogênese da língua escrita, de Ferreiro e Teberosky (1985), indicou o processo evolutivo pelo qual todas as crianças passam e os mecanismos que utilizam para aprender a ler e a escrever. Os graus de evolução apontados pelas autoras são classificados em níveis: pré-silábico, silábico, silábico alfabético e alfabético.

Estudos subsequentes em diferentes países (cuja língua possui base alfabética) e culturas apontam para o desenvolvimento do mesmo processo pelas crianças, demonstrando que todas pensam sobre a língua e antes mesmo de chegarem à escola já possuem ideias sobre o seu funcionamento. Estes estudos contribuíram no sentido de fazer com que o professor percebesse que numa única sala de aula de crianças de 6 anos, por exemplo, pode ocorrer uma grande variação dos níveis de escrita, permitindo uma intervenção adequada.

Vygotsky (1998) também traz importantes colaborações para a compreensão do desenvolvimento do ser humano, trazendo o papel social e cultural e suas implicações para a aprendizagem. Para o teórico, os processos sociais e psicológicos do homem se constituem a partir dos aparatos culturais que permitem uma mediação das interações entre os indivíduos possibilitando a aquisição de aprendizagens. O contexto cultural é, portanto, o principal lugar onde ocorrerão as transformações e evoluções no ser.

Dois outros importantes conceitos trazidos por este estudioso dizem respeito à Zona de Desenvolvimento Real e a Zona de Desenvolvimento Potencial ou Proximal. A primeira se relaciona aos conhecimentos já consolidados pelos sujeitos, aquilo que consegue realizar sem o auxílio de outra pessoa; a segunda é

[...] a distância entre o nível real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial determinado através solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capacitados. (VYGOTSKY, 2007, p. 97).

Conhecer e redimensionar para a prática estes conceitos amplia as possibilidades de atuação docente, uma vez que permite saber o que os alunos de fato já sabem e o que eles podem aprender a partir de sua mediação e da interação com os pares. Atuando na zona de desenvolvimento proximal, o professor terá a chance de permitir que a criança avance em suas potencialidades.

As informações sobre os trabalhos dos autores acima citados estão presentes como conteúdo da formação inicial e nos cursos de formação continuadas dos professores.

Inclusive, elas norteiam as diretrizes que regulamentam o ensino público, contribuindo para a formação do discurso do professor sobre o que supostamente embasa teoricamente sua prática. Então por que parece não bastar ter essas informações sobre o desenvolvimento psicológico da criança para garantir boas situações de aprendizagem focadas na diferenciação do ensino?

Perrenoud (2000, p. 49) chama atenção para o fato de que

É inútil pensar a diferenciação de um ponto de vista estritamente cognitivo. Um professor carregado de conhecimentos e de instrumentos didáticos, mas que não consegue comunicar-se, criar vínculos humano e forte será definitivamente menos eficaz do que um pedagogo menos preparado, mas com quem o aluno ‘sente-se bem’.

É necessário, pois, conhecer um pouco além dos processos individuais. É preciso saber quem são as crianças com quem trabalham, a que lugar pertencem, quais seus desejos e necessidades reais.

Kappel, Carvalho e Kramer (2001) realizaram análise dos dados do IBGE sobre padrão de vida, extraindo o perfil das crianças que frequentam as creches e pré-escolas no sudeste e nordeste do Brasil. No período da análise destes dados, as crianças de 6 anos ainda estavam inseridas na educação infantil e só passaram a integrar o ensino fundamental a partir da Lei 11. 274, sancionada em 06 de fevereiro de 2006.

Segundo estas autoras, na região nordeste, no período da análise, cerca de 50,51% das crianças de 4 a 6 anos frequentavam pré-escolas, sendo que 40% dessas crianças estavam matriculadas na turma de 6 anos.

A maior parte dessas crianças que frequenta a escola encontra-se na zona urbana, mora em ambiente como casas, apartamentos ou construções isoladas, e divide o espaço com 3 ou até 15 pessoas, e metade da família é constituída por homens e a outra metade por mulheres. A maior parte possui água encanada e luz elétrica, mas o mesmo não acontece com os sistemas de coleta de esgoto, sendo que somente a metade das crianças contempladas com o saneamento.

Os dados mostram ainda que o número de crianças brancas que estão nas pré- escolas é superior ao número de crianças pretas/pardas, no entanto, é compatível o número de meninos e meninas. Algumas dessas crianças realizam ou já realizaram alguma atividade remunerada, quase que a totalidade delas brinca no horário em que não estão na escola. Além de brincar, os dados mostram que, quando não estão na escola, as crianças veem televisão, estudam, fazem esportes e frequentam cursos.

Quanto aos pais dessas crianças, a maior parte conclui apenas o quarto ano do ensino fundamental, e um número significativo (17,4%) não possui escolaridade. A maioria das mães das crianças trabalha fora. Nessa realidade, as crianças são cuidadas por irmãos, avós, outros parentes e por vizinhos.

Por que é importante conhecer o contexto das crianças que estão na escola? Ora, ignorar os aspectos da vida dessas crianças é admitir um ideal de aluno que frequentemente não corresponde à realidade, o que implica na adoção de mecanismos didáticos idênticos para todos. À escola cabe conhecer a criança real, não somente o seu desenvolvimento genérico, mas o contexto social do qual ela faz parte e os processos culturais nos quais ela implica e é implicada.