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3.2 Definição de Diferença

3.2.4 Diferenciação no ensino da linguagem escrita

Segundo Perrenoud (2000, p. 25), “a maioria dos sistemas escolares ainda mantém amplamente a ficção segundo a qual todas as crianças de seis anos que entram na primeira série [...] estariam igualmente desejosas e seriam capazes de aprender a ler e escrever em um ano”. Logo, o professor pode se perguntar: se as crianças não são iguais, o que justifica tais diferenças? E, se as motivações e experiências com a língua não são as mesmas, como decorrer o ensino da linguagem escrita?

Dentre tantas manifestações do insucesso escolar no Brasil, uma das que mais preocupam hoje diz respeito a não alfabetização das crianças nos primeiros anos do ensino fundamental.

Dados inéditos apresentados pela “Prova ABC” (Avaliação Brasileira do Final do Ciclo de Alfabetização), realizada em parceria pelo Todos Pela Educação com o Instituto Paulo Montenegro/Ibope, a Fundação Cesgranrio e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), e aplicada no terceiro ano fundamental, demonstram que 56,1% das crianças brasileiras conclui hoje os primeiros anos do ensino fundamental aprendendo o que se espera da leitura e escrita.

Esse dado diz respeito a todo Brasil, incluído todas as regiões e instituições de ensino público e privado. Se analisarmos somente o ensino público, este número cai para 48,6%, e no ensino público no nordeste encontraremos apenas 36,5% de crianças que dominam as ferramentas que se esperam da linguagem escrita.

Remetendo aos estudos de Magda Soares (1997), sobre a linguagem numa perspectiva social, poderíamos encontrar uma explicação para tais dados: “[...] a responsabilidade pelo insucesso escolar dos alunos cabe à escola, que trata de forma discriminativa a diversidade cultural, transformando as diferenças em deficiências” (op. cit., p. 18).

É importante compreender a relação entre o ensino da linguagem na escola e o insucesso escolar, pois saber fazer bom uso social e dominar de modo autônomo a leitura e a escrita são condições primordiais para que o aluno obtenha êxito em todas as demais áreas de estudo e por todos os anos que frequente a escola.

Bourdieu e Passeron (1992) problematizaram a questão, quando apontaram para as condições concretas e sociais onde a linguagem e os sistemas de comunicação são produzidos. Para eles, a relação da linguagem na sociedade é, sobretudo, caracterizada por um elemento de força simbólica. A linguagem é um bem simbólico que possui valor e poder, portanto, a linguagem de uns é mais importante que a linguagem de outros. A linguagem da escola é mais importante que a linguagem popular. Nessa perspectiva, a escola perpetua os determinismos sociais e a ação pedagógica é encarada como um exercício de violência simbólica.

O ensino da linguagem na escola se impõe de igual maneira para todos. Assim sendo, pressupõe-se que não se consideram as diferenças sociais e culturais que implicariam na aprendizagem da língua e ao professor cabe apenas reproduzir os sistemas.

Perrenoud (2000), refletindo sobre a abordagem de Bourdieu e Passeron, aponta que nos anos em que se seguiram à divulgação das ideias destes autores, houve uma desmobilização do corpo docente, que acreditava nada poder fazer, já que a escola só serviria para reproduzir e perpetuar as desigualdades. No entanto, alerta que a função maior da escola

não é reproduzir as classes, mas que este espaço pode contribuir para “produzir a sociedade”. Essa visão acabou por mobilizar a “busca de respostas pedagógicas para o fracasso escolar” (op. cit., p. 40).

Como tratar essa questão numa escola que ao mesmo tempo em que se pretende inovadora, dando espaço a teorias modernas sobre ensino e aprendizagem para todos, mantêm elementos de uma cultura de manutenção e perpetuação do estrativismo de classes?

Soares (1997), em sua análise, realiza uma retrospectiva das teorias que pretenderam justificar a não aprendizagem da linguagem pelas crianças da escola popular. As justificativas vão desde a patologização da pobreza até a ideia do déficit linguístico. Tais concepções levaram a alternativas metodológicas meramente compensatórias que não conseguiram de fato lograr êxito na alfabetização das crianças oriundas das camadas populares.

Hoje, através de uma infinidade de estudos realizados, dentre eles o bastante representativo na área do ensino da linguagem escrita sobre a psicogênese da linguagem escrita de Ferreiro e Teberosky, fica provado que todas as crianças, independente de suas diferenças (salvo casos específicos) possuem a mesma capacidade para aprendizagem conceitual.

Sendo assim, nos cabe uma análise sobre as formas de ensino que por ventura tenham colaborado para o insucesso tão representativo dos alunos no que diz respeito à alfabetização.

Na crítica de Perrenoud (2001, p. 26):

Toda situação didática proposta ou imposta uniformemente a um grupo de alunos é inadequada para uma parcela deles. Para alguns, pode ser dominada facilmente e, por isso, não constitui um desafio nem provoca aprendizagem. Outros, porém, não conseguem entender a tarefa e, por isso, não se envolvem nela. Mesmo quando a situação está em harmonia com o nível de desenvolvimento e as capacidades cognitivas dos alunos, pode parecer desprovida de sentido, de interesse, e não gera nenhuma atividade notável em nível intelectual e, por conseguinte, nenhuma construção de novos conhecimentos nem um reforço das aquisições.

Podemos inferir que para um ensino da linguagem escrita que atenda as necessidades formativas de todos os alunos, há necessidade de considerar que além da fase ou estágio de desenvolvimento individual em que ele se encontra, ele pertence a uma cultura, está inserido em uma comunidade, possui formas próprias de expressão que implicam em sua aprendizagem e que não podem continuar sendo ignoradas pela escola.

Ao falar sobre estratégias de leitura, por exemplo, Solé (1998) pondera que ao se tratar dessa questão do ensino da leitura:

[...] parece necessário que o professor se pergunte com qual bagagem as crianças poderão abordá-la, prevendo que essa bagagem não será homogênea. Esta bagagem condiciona enormemente a interpretação que se constrói e não se refere apenas aos conceitos e sistemas conceituais dos alunos; também está constituída pelos seus interesses, expectativas, vivencias... por todos os aspectos mais relacionados ao âmbito afetivo e que intervêm na atribuição de sentido ao que se lê. (op.cit., p. 104). Tudo parece levar à questão do tratamento pedagógico das diferenças e não “há pedagogos engajados na nova escola ou nos métodos ativos, ou simplesmente sensível ao fracasso escolar, que não tenha defendido, à sua maneira, um ensino individualizado ou uma pedagogia diferenciada” (PERRENOUD, 2000, p. 9). Mas parece também que estes professores têm realizado uma ação muito solitária, utilizando isoladamente estratégias para lidar com as diferenças, que por vezes dão certo e outras não, sem ao menos ter a possibilidade de socializar o seu trabalho, sem falar que esbarram constantemente na cultura escolar enraizada e nos seus saberes construídos limitando suas possibilidades de ação.