• Nenhum resultado encontrado

3.2 Definição de Diferença

3.2.1 Democratização do ensino: o acesso de todos à escola

Se olharmos para trás na história, mais precisamente as primeiras décadas do século XX, perceberemos a escola pública, no Brasil, como um espaço privilegiado, dotada de um processo rigoroso de seleção, disputado por pessoas das classes mais abastadas. Pouco ou nenhum espaço havia para as crianças oriundas das classes populares.

Veiga (2008) realiza um estudo historiográfico do acesso de negros e pobres brasileiros à escola. Constata que há indícios desde o final da monarquia, sobretudo no período imperial, da frequência desses grupos à educação formal, no entanto, o discurso que assegurava o acesso destes estava voltado para a necessidade de instruir, civilizar e homogeneizar a cultura brasileira, em outras palavras, promover uma adequação dessas pessoas à cultura dominante.

O parâmetro utilizado para tal instrução, civilização, era a população branca de classe média e alta. Logo, a tentativa era de permitir às crianças de outras origens a possibilidade de serem educadas nesses parâmetros. Nada se discutia a respeito das especificidades destes grupos.

Magda Soares (1997), em sua análise sobre a democratização do ensino no Brasil, aponta que desde 1882, o discurso sobre a necessidade de ampliação da educação está presente. Esse discurso muda de foco em virtude do momento histórico, ora pela quantidade (acesso) ora pela qualidade do ensino (garantia de aprendizagem). No entanto, a escola que se propõe “para o povo é contra o povo”, quando não oferece as condições mínimas de aprendizagem quando há inserção. O modelo de escola é rejeitado pelo povo que não constrói um sentimento de pertencimento a ela, não se identifica.

Recentemente em nossa história, por volta da década de 1960 e 1970, diferentes movimentos sociais passam a se mobilizar de forma organizada pela superação do paradigma dominante, e pelo direito de acesso ao saber. O Brasil começou a vislumbrar a implementação de novas tendências de acesso e atendimento educacional, a partir destes movimentos, pois, como afirma Soares (1997, p. 9), “A escola pública não é, como erroneamente se pretende que seja, uma doação do Estado ao povo; ao contrário, ela é uma progressiva e lenta conquista das camadas populares, em luta pela democratização do saber, através da democratização da escola”.

Tais movimentos que se registraram no período citado não possuíam apenas a intenção de promover mudanças na educação, mas em toda estrutura social, como podemos constatar a seguir:

As manifestações de indignação diante da desigualdade social, dos preconceitos, do imperialismo, da Guerra do Vietnã, do uso da cultura e da ciência como meios de dominação, da repressão social e da violência contra as mulheres exigiam novas formas de organização e relações de poder. Morin (1986) refere-se a esses movimentos como uma ‘revolução cultural ocidental’, por problematizarem um modelo de sociedade que subentendia a superioridade da raça branca do Ocidente, dos adultos e dos homens. (HADDAD, 2006, p. 528).

No entanto, foi propulsor de uma reorganização nas formas de conceber e assegurar a educação e democratizar o acesso ao saber. No Brasil, culminou com a constituição de 1988, que possuía uma abordagem mais democrática, no sentido de que atendia algumas reivindicações dos diferentes grupos sociais.

As constituições anteriores já mencionavam algumas especificidades com relação à educação formal, mas somente em 1988 insere definitivamente o direito à educação no rol

dos direitos sociais, afirmando que TODA pessoa tem direito à educação e que é dever do Estado e da família assegurá-la.

A partir daí foram criados uma série de leis, decretos e programas com a finalidade de regulamentar a educação básica.

O estatuto da criança e do adolescente (ECA) de 1994 dispõe sobre a proteção da criança e do adolescente, reafirmando inclusive o compromisso com a educação. No parágrafo de número 53, além do direito, salienta o compromisso com o desenvolvimento pleno e a formação enquanto cidadão. Assegura ainda o acesso, a permanência, o respeito, assim como a participação nas decisões e nos processos pedagógicos dos estudantes e seus responsáveis.

A Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional (lei nº 9.394/96) institui uma política e um planejamento educacional do qual dependerá toda organização das redes escolares.

Uma análise sobre o que a LDB de 1996 concebe sobre processo educativo, indicará que este engloba a integração dos processos formativos que acontecem em todas as instâncias sociais das quais os sujeitos fazem parte, logo, uma educação que faça realmente sentido só se dará a contento se traduzir as especificidades da sociedade em que estes sujeitos estão inseridos, considerando quem são, qual sua história, suas potencialidades e limites.

Sabe-se, no entanto, que a lei por si não garante que a educação nesses moldes seja desenvolvida de forma satisfatória. Para afirmar a permanência e aprendizagem das crianças que foram inseridas na escola, é imperativa uma ação conjunta do Estado, da sociedade como um todo e das instituições, no compromisso em desenvolver um Projeto Político Pedagógico que represente as necessidades dos sujeitos, visando promover a inclusão social a partir de um currículo e de uma prática pedagógica que possibilite o atendimento às diferentes demandas sociais e culturais.

Essa discussão se acentuou nos últimos anos, uma vez que mesmo ampliando o acesso à educação, investindo na construção de escolas, garantindo em certa medida o financiamento da educação e a organização dos sistemas escolares, os números divulgados pelas pesquisas sobre o desenvolvimento das crianças apontam para um insucesso da escola frente à garantia de aprendizagem, trazendo à tona o fantasma do fracasso escolar, sobretudo nas primeiras séries do ensino fundamental e na aprendizagem da leitura e da escrita (TURA E MARCONDES, 2011).

Mesmo antes deste processo de universalização e democratização da educação no Brasil, pesquisas realizadas em outros países, já indicavam que o insucesso escolar incidia

sobre determinado grupo social, aqueles que não possuíam acesso à cultura erudita. Estes estudos constataram as desigualdades de oportunidades escolares e as implicações desta situação para aprendizagem das crianças populares.

Representantes dessa discussão são os sociólogos franceses Bourdieu e Passeron, que, em 1970, dentre seus estudos, trataram também sobre as relações entre linguagem e as condições sociais nas quais ela é produzida. Segundo eles, a escola representa e reproduz os conflitos e contradições da sociedade. No que se refere ao ensino, pauta o currículo numa elite social erudita, distanciando-se dos códigos próprios das culturas consideradas periféricas.

O insucesso escolar é hoje, então, alvo de inúmeras pesquisas e estudos científicos (PAULA, TFOUNI, 2009; CRUZ, 2011; TURA e MARCONDES, 2011), que intencionam entender as suas causas e buscar solução para o problema. Resta-nos problematizar sobre quem são o “todos” que hoje têm acesso à escola? Em que medida esse “todos” representa a heterogeneidade, a diferença? Diferença em relação a que e a quem? E, de que forma a escola tem lidado pedagogicamente com essas diferenças para assegurar a aprendizagem e superar o fracasso escolar, sobretudo no que diz respeito à aquisição da linguagem escrita, já que a legislação assegura esse direito?