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4 DISCUTINDO A RELAÇÃO ENTRE ESPAÇO E PRÁTICA SKATISTA

4.2 Uma análise da apropriação do Parque da Juventude pelos skatistas

4.2.3 O uso do Parque da Juventude pelos skatistas

4.2.3.6 As disputas espaciais

Como vimos no primeiro tópico deste capítulo, as disputas espaciais sempre estiveram presentes na dinâmica do equipamento em estudo. A esse respeito, Torres e Moranta (2012) creem que o espaço público nunca tenha sido um lugar totalmente harmônico e acessível, já que sempre foi palco de dinâmicas instáveis e processos de exclusão. Essas dinâmicas e processos se fundamentam em uma lógica de controle e disputa estabelecida entre a estrutura normativa da sociedade hegemônica e as práticas de ação de sujeitos e grupos que estabelecem diferentes tipos de laços com essa sociedade.

Na dinâmica dos skatistas no Parque da Juventude percebemos a materialidade dessa concepção nas transgressões discutidas no tópico anterior e, de uma maneira mais direta, em alguns conflitos de interesse entre os skatistas e os guardas da GCM. Além disso, existem ainda aquelas disputas espaciais que se desenvolvem internamente, no cotidiano das práticas dos diferentes grupos de usuários, sendo mais evidenciada a disputa entre skatistas homens e skatistas mulheres, além das já discutidas no primeiro tópico desse capítulo.

A disputa travada entre determinadas práticas dos skatistas e a ação coercitiva dos funcionários da GCM foram citadas várias vezes durante as entrevistas. Alguns falaram em tom de reclamação: “[...] não pode andar fora, os polícia [GCM] já chega enquadrando aqui dentro, uns amigo meu aí já foi tirado pra fora, aí, os polícia humilhando, entendeu?” (Sk. 1: M NG St.).

Esse tipo de ação enunciada por um jovem skatista streeteiro, reflete ainda um sentido de “repressão ao uso do skate nos centros urbanos”, que ganhou grande intensidade na década de 1980, quando o street skate ganha popularidade no país, havendo uma maior visibilidade da luta por espaços travada principalmente entre skatistas e policiais (BRANDÃO, 2012a, p. 227). Apesar desse tipo de disputa ter sido fortemente minimizado pelas inúmeras tentativas de controle das práticas no espaço do Parque da Juventude, mas também por causa delas – já que, como vimos, o ambiente controlado incita à transgressão como uma busca por mais criatividade e liberdade e esta, automaticamente, ocasiona a ação das entidades que

possuem a permissão para coibir esse tipo de prática – não foram raras as menções a conflitos entre skatistas e membros da GCM.

Como é o caso da denúncia de um skatista que alegou já ter presenciado vários excessos de conduta cometidos por alguns guardas da GCM:

Ah, já vi bastante gente aqui, tipo, os polícia chegando, eh tipo chegando já de uma maneira já que não é certo, entendeu? Acho que a gente é skatista, mas a gente também é cidadão, normal, tem uns moleque aí que paga, que é favelado, pah! Mas até aí, cada um é cada um. O trabalho deles é só alertar que não pode andar, chegar e sair fora na moral. Né? já vi vários moleque saindo aqui, os policial jogando pa fora aí, chega xingando. Acha que a gente é... É qualquer um, entendeu? (Sk. 1: M NG St.)

É como se a lógica da repressão, tão comum no cotidiano do skate de rua em tempos passados e ainda presente nos dias atuais (BRANDÃO, 2011), invadisse também os espaços racionalizados, a partir do momento em que estes são ameaçados pelas ações transgressoras dos skatistas, principalmente os streeteiros. Estes últimos são os que mais se envolvem nessas disputas pela própria característica de sua prática, pois no street skate o skatista, ao circular pelos espaços urbanos, ressignifica as finalidades atribuídas aos seus equipamentos (MACHADO, 2011). Não seria diferente no Parque da Juventude, já que este possui a mesma lógica da rua, quando esta “é também o lugar privilegiado da repressão imposta de forma clara ou sub-reptícia em função das estratégias do Estado” (CARLOS, 2007, p. 56).

A respeito desse mesmo tipo de disputa espacial, um outro skatista, que já foi também funcionário do Parque, relata o modo como acontece a abordagem da GCM, se expressando enquanto favorável a determinadas condutas mais truculentas, quando consideradas por ele como necessárias:

Daí é o que eu digo, que você entra aqui com o pessoal que trabalha, os instrutores da pista, vão orientar, vão tirar a pessoa da pista e aí a gente, como eu já trabalhei aqui eu posso falar, a gente, a gente usava a educação: ó, tem uma lei aqui e tal, quem usa de truculência, a gente vinha aqui e chamava a GCM, Guarda Civil Metropolitana, conforme o nível de truculência do cidadão a GCM chegava no mesmo nível que ele. Precisou chegar acima do nível de truculência? Já precisou, porque teve gente que não entendeu, falava: Ah! [...] (Sk. 6: M OS St.)

Nessa situação o skatista se vê na outra posição da disputa, quando ele não é mais o alvo da repressão e representa aquele que repreende. Ou seja, no jogo do reequilíbrio de poder, ele acaba sendo beneficiado, passando a fazer parte das estratégias políticas por meio das quais a produção espacial regulariza os fluxos, “impondo um espaço regulador, repressivo e contraditório” (CARLOS, 2007, p. 56).

Um outro exemplo de disputa entre skatistas e GCM aconteceu durante a Sessão Old School e desencadeou a sua suspensão por três semanas, retomando apenas depois de uma reunião entre usuários e membros da gestão do Parque e da prefeitura para acertar a oficialização de suas regras, quando indagado sobre isso um funcionário do Parque explicou:

[...] Só que eles, pow, mas aí, teve umas duas vezes que parece, néh, que o monitor ali pediu pra os indivíduos, e os cara – não, porque eu vou acertar a última – E aí, meu, saiu essas coisas, néh, ninguém levou desaforo pra casa, saiu uma desavença, aí teve uma paralisação assim, assim, de umas três semanas, teve essa reunião pra resolver isso, tanto que eles conseguiram ganhar uma hora a mais, que eles queriam. [...] Pesquisadora: Mas teve intervenção da GCM na época? Entrevistado: Não, não. Não é, é porque ali dentro, ai um cara, ai parece, certo, que falou alguma besteira pro monitor, aí chamou o GCM, sabe, aquela coisa toda, aí já tava meio briga mas, mas alguma coisa assim, mas, chamou mais só pra ver se esquentava os ânimos mas aí a galera se segurou, e agora parece que tá tudo tranquilo, tá na boa. [...] mas meu, foi só uma meia dúzia e aí já resolveu, já passou e pronto. (F/Sk. 2: M OS V)

Percebemos, no modo vago e um tanto contraditório como o funcionário relata o fato ocorrido, que os funcionários do Parque não se sentem confortáveis em falar sobre o assunto. Tanto que durante a entrevista do outro funcionário que fez parte da Pesquisa – que é também um dos responsáveis pela Sessão Old School, sendo ele o monitor citado no depoimento acima – quando indagado sobre essa paralisação da sessão, sua explicação foi diferente do relato dado pelo seu colega, ele preferiu não entrar em detalhes, relatando apenas a oficialização das regras:

A paralisação que teve foi uma só, foi uma paralisação de três sessões só, porque tava se criando..., as regras do old school, porque o old school tinha regra de boca a boca, mas não tinha nada documentado, então pra se criar esse estatuto, tal, pra ser uma coisa oficial teve que ter essa paralisação de apenas três dias e logo em seguida voltou a funcionar. (F/Sk. 1: M NG V)

Essa falta de clareza pertinente aos assuntos que fogem à dinâmica normal do cotidiano do Parque deixa transparecer a dinâmica que se estabelece entre os skatistas e os processos de racionalização do espaço. Parece haver uma cumplicidade e união de forças entre os skatistas contra as medidas de controle e repressão, da qual participam inclusive aqueles que fazem parte do quadro de funcionários que compõe a gestão do Parque. Esse fator pode ser percebido sutilmente no decurso do depoimento dos skatistas, tanto aqueles apenas usuários – quando ocultam determinadas ações dos skatistas funcionários – quanto da parte desses últimos quando procuram minimizar ou justificar determinadas transgressões de alguns skatistas, como nesse caso do conflito durante a Sessão Old School, o qual só pudemos perceber a partir da comparação da fala dos dois funcionários sobre o mesmo acontecimento.

Além desse tipo de disputa espacial, encontramos vários depoimentos que expressam uma tensão entre a prática de skate feminina e masculina. Nenhum dos homens fez qualquer comentário ou menção às práticas femininas de skate, tampouco sobre qualquer tipo de conflito de gênero, mas é evidente na fala das duas skatistas entrevistadas a existência desse tipo de disputa e como esta se reflete negativamente no grupo delas.

O próprio surgimento do Horário Feminino, discutido anteriormente, foi desencadeado por esse tipo de conflito:

[...] por conta dela ouvir muita reclamação das meninas que não conseguia andar porque os cara passava por cima, surgiu a ideia [...] É isso mesmo. Então, ela tava ouvindo muito problema de tipo – Ah, não consigo andar, os caras não deixam. Aí surgiu a ideia – Pô, se tem o horário do old school, porque que não pode ter o horário feminino. Tem o horário do mirim, tem o horário do amador, do patins, da bicicleta, vamo por um feminino aí. (Sk. 5: F NG St.)

Na época, a insegurança sentida pelas skatistas iniciantes, que alegavam a maneira perigosa como os homens passavam por elas, foi, como visto anteriormente, uma das justificativas apresentadas para a conquista desse horário. Podemos ter uma noção do modo como esse conflito acontece no cotidiano do Parque a partir do seguinte depoimento:

[...] então, infelizmente essa meia dúzia que não quer a nossa presença vem pra cima, acabam derrubando a gente, trombando. Eles são bem desagradáveis, cortando a vez, e a garota inexperiente cai, e se machuca porque ela ainda não tem aquela habilidade e destreza que exige nesse tipo de esporte. (Sk. 4: F OS V)

Uma passagem do diário de campo também exemplifica esse fator:

Fui fotografar a parte da saboneteira e boomerang, onde tinha uma concentração de skatistas praticando. Lá encontrei três mulheres num canto. Já as conhecia da Sessão Feminina, cumprimentei uma delas [...] Ela iria competir junto com os homens porque não teria uma categoria feminina. Eu perguntei: ‘você não vai aquecer?’ Ela respondeu ‘eu já aqueci, correr agora é suicídio’. Ela voltou a conversar com as meninas, perguntou se elas não iriam andar. Elas falaram que não dava por que tinham muitos homens na pista, vários de uma só vez na saboneteira, apontaram para lá. [...] (DC, 17/08/2013).

Essa mesma tensão entre homens e mulheres foi também um dos motivos que ocasionou a suspensão da sessão feminina no ano de 2013. Segundo as entrevistadas, os homens reivindicaram o horário das Terças Femininas, alegando que não havia um número de mulheres suficiente para justificar sua permanência. “Os problemas que nós encontramos são justamente esses né, a pista tá sempre cheia e alguns caras ficam revoltados que a pista tá fechada só pras mulheres” (Sk. 4: F OS V). Na fala da outra skatista: “[...] aí os cara: tem pouca menina, vamos

supor, tem cem caras querendo andar na pista e três menina andando. Pô, isso daí é zuado, aí os caras foram tentando boicotar, foram tentando cortar a gente, mas não conseguiram, enfim, a terça é nossa” (Sk. 5: F NG St.).

Essa disputa pelo horário da terça-feira envolveu também alguns frequentadores da Sessão Old School que, segundo uma das skatistas, “começaram a brigar, que queriam nosso espaço, porque eles eram em maior quantidade e eles não enxergam a necessidade da mulher iniciante” (Sk. 4: F OS V).

Um outro fato interessante, relatado por uma das skatistas, era a dinâmica da Sessão Feminina quando esta antecedia a sessão de skate mista:

Então o que acontece, o horário feminino era das seis as oito [noite] e das oito em diante abria pro público em geral, então realmente, a mulher sai do trabalho as seis, mas até chegar na pista, com trânsito, com distância, ela chega umas sete, sete e meia, então muitas deixavam de vir porque daí a meia hora já abria o portão pra boiada entrar, porque a gente falava que parecia um estouro de boiada, era impressionante como eles entravam, [...] era um estouro de boiada. Uma coisa absurda, eles

vinham com tudo pra cima, atropelando e de certa forma expulsando a nossa presença lá e com raiva porque a gente tava ali naquele horário. (Sk. 4: F OS V)

A fala da skatista evidencia a disputa espacial existente naquele momento entre esses dois grupos, que possuem o objetivo comum de se apropriar daquele espaço de prática. As mulheres procuravam legitimar e realizar suas práticas no Parque de forma segura e confortável, reivindicando, para isso, a manutenção e ampliação do Horário Feminino, com consequente exclusão dos homens que andavam na sequência. Os homens viam nelas um impedimento para que eles pudessem dispor de toda a noite para andarem à vontade na pista, impedimento este, que, segundo os depoimentos, para eles parecia ser injustificado, já que o número de skatistas que usufruíam da pista no horário exclusivo feminino era muito reduzido. Na época, esse conflito foi resolvido com o fechamento da pista nas terças-feiras e a suspensão das sessões exclusivamente femininas. Todos foram, portanto, penalizados, até que a Sessão Feminina voltou a funcionar em agosto de 2013, como já mencionado anteriormente.

4.2.4 Os outros lugares do skate

Para finalizar as discussões referentes às informações adquiridas com a pesquisa de campo, apresentaremos uma breve discussão sobre a busca pelos lugares dos skatistas, bem como a descrição de outros picos de prática, além do Parque da Juventude. Para tanto, achamos por bem retomar o conceito de lugar.