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As práticas transgressivas

4 DISCUTINDO A RELAÇÃO ENTRE ESPAÇO E PRÁTICA SKATISTA

4.2 Uma análise da apropriação do Parque da Juventude pelos skatistas

4.2.3 O uso do Parque da Juventude pelos skatistas

4.2.3.5 As práticas transgressivas

Foram identificados em alguns momentos dos depoimentos dos entrevistados referências a determinados tipos de transgressões às regras ou concessões e flexibilizações ao

que está determinado na Lei que regulamenta o Parque. É válido explicar que, a despeito dessa modalidade de uso ter se apresentado bastante evidente na fase de observações, durante as entrevistas a maioria dos skatistas não falou sobre esse assunto de maneira aberta, aqueles que comentaram sobre algum tipo de transgressão ocorrida no parque falavam que sabiam ou já haviam presenciado alguma ocorrência com terceiros.

Contudo, consideramos de extrema importância para os objetivos propostos, a discussão referente às variadas formas com que os diferentes sujeitos expressam esse assunto em seus discursos, principalmente quando o contrapomos com a realidade percebida nas suas práticas. Já que a transgressão é uma dimensão fundamental para entender os processos de apropriação de um espaço que é, como vimos, marcado por várias formas de racionalização.

Para debater esse assunto buscamos os conceitos de transgressão estabelecidos por Szpacenkopf (2002). A autora apresenta dois entendimentos de transgressão, no primeiro deles os indivíduos passam a fazer as suas próprias regras ao gozo de transgredir, por não suportarem a proibição imposta pela lei. Na segunda definição a autora a compreende enquanto “um movimento que pode nos aproximar do criativo e do inovador, do que precisa desamarrar-se do conhecido para fazer aparecer o que ainda não pôde ser pensado ou mesmo que foi pensado, mas recusado” (SZPACENKOPF, 2003, p. 05).

Nos depoimentos, encontramos as duas formas destacadas pela autora. A primeira delas é exemplificada na fala de uma das duas únicas pessoas a assumir já ter burlado algum tipo de regra do Parque, uma jovem, de 22 anos, que alegou ter transgredido uma vez quando era mais jovem.

Andar aqui no parque... eu comecei quando tinha 16 anos, eu nem tinha carteirinha ainda. Porque era proibido entrar quem não tem a carteirinha [ainda é proibido], as criança que são de menor. Beleza, eu entrei lá pelos fundos porque eles me barraram pela frente. (Sk. 5: F NG St.)

O outro skatista a assumir ter burlado alguma regra foi o mais jovem que participou das entrevistas, com apenas 16 anos. Ele nos contou uma de suas estratégias.

Ah, de vez em quando tem que dá uma escapada, né! [...] Ah, pego o skate, vê que quando os guarda não tá né, vê quando não tem ninguém olhando, manda umas manobra no banco, bem, bem de rua memo, he! [baixa a voz e olha para os lados ao falar]. (Sk. 1: M NG St.)

Aqui o sentido de “dá uma escapada” equivale a conseguir realizar, dentro do espaço racionalizado, movimentos que fazem parte da essência do skate de rua. Como o Parque

não possibilita isso, eles precisam fazer por meio da transgressão. Ou seja, “a transgressão questiona o sistema normativo, propondo outras maneiras de regulação” (BIRMAN, 2002, p. 49).

A segunda possibilidade é apresentada por um dos funcionários do Parque, na verdade, por meio do mesmo exemplo destacado pelo skatista adolescente. Ele explica um outro modo de compreender esse tipo de transgressão.

Aqui dentro você vê, tem esses bancos, o pessoal gosta de andar num banquinho porque, é o skate. Se você põe isso aí no meio, ai o cara vem pula, ele pula, certo, dá uma batida com o skate e sai girando do outro lado, então o skate é isso. – Ah pô, mas a gente fez a pista, porque você tá andando aqui na praça? Por que o skate é livre cara, é livre, é criatividade, aonde tem um lugar que você acha que é legal andar, você vai lá e anda. (F/Sk 2: M OS V)

Ou seja, o sentido de transgredir para o skatista é a criatividade, se ele seguir apenas o que está estipulado na regra, esta não consegue se manter. Se eliminamos a transgressão como forma de ultrapassagem, como possibilidade de existência e de criação fora dos padrões preconizados, eliminamos automaticamente a condição para a capacidade criativa (BIRMAN op. cit.). Pois “é pela possibilidade de transgressão que o existir e o criar podem comparecer, muitas vezes sinalizando resistência e liberdade em relação a determinadas injunções” (SZPACENKOPF, 2002, p. 38).

O ato de pular a cerca para não passar pela portaria e assim ter que apresentar documentação ou ser obrigado a usar o equipamento de segurança obrigatório foi a ação transgressora mais citada entre os sujeitos da pesquisa. Conforme segue no seguinte depoimento.

Sim, as vezes você vê um ou outro aí que no final de semana, onde você tem uma intensidade maior de vai e vem da pista, você tem muitas pessoas hoje que vêm andar de skate porque viram na TV. E aí ele vem aqui e aí ele fala: vou seguir lei de skatista nada. Vou pular a cerca aí, com o capacetinho de obra e acha que vai poder andar (Sk. 6: M OS St.)

Um outro skatista, ao ser indagado sobre transgressões presenciadas por ele, alegou nunca ter visto algum OEE consentir que qualquer skatista fizesse algo que não seja admitido pelo regulamento, mas sobre os usuários revelou: “Acontece, [...] já vi gente pular, porque a grade não é muito grande né, o pessoal vai lá pra trás e pula, então eu já vi muito isso” (Sk. 2: M NG O).

Ressaltamos que foram percebidas algumas incongruências entre a fala dos sujeitos durante as entrevistas e as ações observadas em campo. Ao contrário do que foi explicitado na

fala do skatista, testemunhamos a ocorrência de concessões por parte dos OEE, tal como a entrada de crianças menores de 12 anos no street em horários não permitidos. O trecho do diário de campo a seguir exemplifica essa dinâmica:

Na guarita entra um garotinho, acompanhado de um adulto, este fala pra o garoto entrar na pista, mas o garoto fala que não é permitido. O adulto então foi falar com o operador, este olhou para o outro operador com cara de dúvida, o outro fez sinal negativo com a cabeça. Os dois passaram a explicar que a sessão infantil no street é apenas nos finais de semana e que naquele horário só poderiam entrar crianças a partir de 12 anos de idade e que ele deveria andar na pista mirim. Minutos depois o garoto voltou com o pai [a pista mirim estava fechada], um dos operadores então falou que ele poderia andar porque a pista estava vazia. E conclui: ‘mas o normal é ele andar lá no fundo’ [se referindo ao street mirim] (DC, 11/10/2013).

Nesse mesmo dia um dos operadores já havia permitido que outra criança acompanhada do pai entrasse, justificando que era um horário em que havia poucos skatistas na pista. Além disso, conversamos com um garoto que disse ter 11 anos e que estava ali em horário de aula porque na sua escola estava havendo jogos e, portanto, não haveria aula naquele dia.

Uma outra forma de transgressão bastante comum era a prática de skate em lugares não permitidos, tais como os locais de passagem e a pista de caminhada, onde existiam placas advertindo sobre a proibição. Essas práticas aconteciam com maior frequência nos finais de semana e em dias de campeonatos, quando o Parque estava cheio. A Figura 19 mostra uma sessão de skate de alguns garotos em um final de semana, que acontecia paralelamente a sessão da pista no térreo do Parque.

Figura 19: Garotos fazem sua própria sessão de skate

Esse tipo de ação nem sempre era reprimida pela GCM e quando acontecia isso não impedia que os skatistas retomassem sua prática tão logo o guarda não estivesse mais à vista.

Uma outra forma de burlar as regras estabelecidas, percebida durante as entrevistas, foi a comercialização de equipamentos de skate em variados espaços do Parque50. Um skatista que frequenta a Sessão Old School, enquanto falava sobre ela, explicou um pouco dessa prática: “aí aqui não acontece só um role de skate e tal, um treino, aqui o pessoal que trabalha aqui, que é antigo, tem marca de skate, então vem fazer entrega de skate um pro outro, de material, vem fazer um negócio novo [...]” (Sk. 6: M OS St.).

Esse tipo de transgressão foi uma das mais presenciadas durante as observações. A comercialização era feita tanto dentro da pista, como na guarita e em outras partes do Parque. Os comerciantes eram tanto skatistas usuários como funcionários. Durante a pesquisa, nós compramos um rolamento novo para o nosso skate e toda a comercialização e a troca do material foi feita ali, nas imediações do street.

Várias outras ações transgressoras foram presenciadas, bem como determinados tipos de concessão, tal como ocorreu algumas vezes durante as Sessões Femininas, a permissão de entrada sem portar a carteirinha específica. Ou como o presenciado em uma manhã de quinta- feira, quando estavam presentes na guarita, além de nós, o coordenador do Parque, um funcionário que trabalha na coordenação e um OEE. Eles conversavam sobre a escala dos operadores na pista. Em um momento o funcionário fez uma pergunta para o coordenador, que não foi escutada porque fora feita em tom baixo, o coordenador responde “Acordo interno ai dos caras”, ao passo que o outro ainda denuncia que era para dois operadores estarem na guarita naquele momento. O OEE presente logo defende o colega dizendo que ele já voltaria. A conversa encerrou dessa forma. (DC, 10/10/2013).

Os exemplos de transgressões apresentados aqui demonstram como a regulamentação apresentada no capítulo anterior não se apresenta completamente enquanto um determinante racionalizador e disciplinarizador. Vimos como algumas de suas determinações já foram ultrapassadas, tal como a exigência de alongamento antes das sessões. Dessa forma, compreendemos essas ações como algo que faz parte do processo de negociação e reequilíbrio do poder que se iniciou depois do surgimento do Parque da Juventude e vem se desenvolvendo por meio da dinâmica cotidiana.

50 Segundo Decreto-Lei Nº 16.096, que regulamenta a Lei Municipal nº 5.698, de 28 de junho de 2007, “Art. 26.

Ficam vedadas no Parque as seguintes condutas: VI - exercer atividades comerciais ou venda, a qualquer título, sem autorização”.

Esses fatores ajudam a compreender ainda a aceitação das regras vistas na sessão anterior, ao que parece, os skatistas aceitam a imposição das regras, em troca dos benefícios advindos com a gestão do Parque, ao mesmo tempo em que sabem que estas não necessariamente serão seguidas à risca, ou seja, eles sempre poderão transgredi-las.