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1 DA CIDADE NOVA AO CITY MARKETING

5.1 AS EDIFICAÇÕES E OS MONUMENTOS DO PATRIMÔNIO

De acordo com Choay (2006, p.11-12), em sua obra fundamental “A Alegoria do Patrimônio”, Patrimônio Histórico designa um bem de uma determinada sociedade, conformado por diversos objetos acumulados continuamente, caracterizados por um passado comum, tais como: obras de arte, o conhecimento do saber fazer e todos os produtos gerados pela diversidade dos saberes. Diz ainda que, em nossa sociedade atual, continuamente transformada pela mobilidade e pela capacidade da “ubiquidade”, o Patrimônio Histórico “[...] tornou-se uma das palavras-chave da tribo midiática”. Nesta pesquisa, leva-se em conta o Patrimônio Histórico edificado e sua valorização – nos diversos aspectos envolvidos – para o estabelecimento das análises.

Choay (2006, p.212-213) afirma que “valorização” é uma expressão que sintetiza o “status” do Patrimônio Arquitetônico Histórico, embora não impeça, ainda nos dias de hoje, sua destruição. Afirma também que é uma palavra que traz uma ambiguidade, pois remete aos valores intrínsecos ao patrimônio que devem ser reconhecidos, mas aponta também um viés de conotação econômica capaz de atrair pelo encanto, pela beleza e outras qualidades das construções. Além disto, aponta duas tendências: a valorização pelo respeito, que dá continuidade à obra dos grandes inovadores dos séculos XIX e XX, tais como Camillo Boito, que conciliava noções de conservação associada à autenticidade, mas que não descartava a restauração como forma de priorizar o presente em relação ao passado das construções; e uma segunda tendência que é a valorização pela rentabilidade, que não respeita o monumento, o que pode levar à sua descaracterização ou mesmo demolição. Essa valorização associada à segunda tendência, apoiada pela indústria patrimonial e pela evolução da economia urbana, e que tem como propósito a transformação do patrimônio em produto econômico, resulta, segundo Choay (2006, p.213-218), em múltiplas operações, quais sejam:

a. A “conservação e restauração”, que são os fundamentos da valorização e contemplam toda sorte de intervenções, inclusive as reconstituições históricas ou as meramente fantasiosas.

b. A “mise-en-scène”, que envolve luz e som numa tentativa de espetacularizar os monumentos.

c. A “animação cultural”, que ocorre quando o edifício passa a ser cenário de eventos sociais ou culturais, numa tentativa de torná-lo mais “consumível”. d. A “modernização”, que contempla a construção ou inserção de um objeto novo

que coloca “[...] no corpo dos velhos edifícios um implante regenerador”. Constitui-se numa intervenção pura e simples do presente no passado, sem o respeito devido ao monumento.

e. A “conversão em dinheiro”, que permite a associação do edifício à publicidade, a locação dos seus espaços e a venda de produtos relacionados.

f. O “acesso”, que deve permitir que o monumento esteja sempre “à mão”, através da proximidade com os transportes de massa, passeios públicos e outras formas de mobilidade urbana.

São novos paradigmas que assinalam para uma nova forma de observar e tratar o prédio histórico, numa perspectiva na qual Kühl (2009, p.134), em sua obra “Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização: problemas teóricos de restauro”, aponta um “alargamento” do conceito do que é considerado um bem cultural, notadamente a partir dos anos 1960, quando começam a tomar corpo “[...] ações voltadas à preservação de ambientes urbanos, de cidades, de partes de território e da paisagem”. É, de fato, um momento em que diversos países passam a enxergar e valorizar seus respectivos Patrimônios Históricos através da adesão à Carta de Veneza, de maio de 1964, que definiu a noção de monumento histórico e estabeleceu princípios internacionais de conservação e restauração desses monumentos, conforme o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, 2013). Em sua introdução, a Carta esclarece a importância e a necessidade que deve ser creditada à conservação e ao restauro dos monumentos históricos de cada cultura:

Portadoras de mensagem espiritual do passado, as obras monumentais de cada povo perduram no presente como o testemunho vivo de suas tradições seculares. A humanidade, cada vez mais consciente da unidade dos valores humanos, as considera um patrimônio comum e, perante as gerações futuras, se reconhece solidariamente responsável por preservá-las, impondo a si mesma o dever de transmiti-las na plenitude de sua autenticidade. (IPHAN, 2013)

Entende-se que a Carta de Veneza apresenta a prevalência de uma visão culturalista do Patrimônio Histórico, tido aqui como objeto que carrega do passado para o presente os melhores valores humanos e toda a tradição acumulada ao longo do tempo, revestido de uma importância transcendental – que transcende a existência comum do cotidiano e torna-se reflexo de uma possibilidade de futuro. A construção, assim, é entendida como mediadora dos processos culturais e como condutora do saber-fazer histórico. É vista como resultado de uma construção social que expressa os valores do modo de vida vernacular dos diversos povos, que devem ser levados às novas gerações com suas características preservadas ou, pelo menos, fidedignamente restauradas.

Entretanto, e além disto, o Patrimônio Histórico passou a ser encarado pelo capital privado e estatal como uma nova forma de obtenção de rendas que, diferentemente da indústria tradicional manufatureira, traz uma nova abordagem à economia urbana e à reprodução do capital. Em localidades onde houve o esgotamento do modelo tradicional de produção Fordista nos anos 1970 e 1980, o turismo, ou “a indústria sem chaminés”, foi responsável por uma reviravolta nas expectativas em relação às soluções para o desenvolvimento das localidades e criação de empregos como resposta à crise provocada pelo desemprego industrial. Dota-se o espaço, dentro dessa lógica, de restaurações e prédios conservados que permitam aos agentes do capital privado condições para competir num cenário mais amplo de disputa por uma fatia do mercado do turismo. Essa estratégia constitui-se numa forma de apropriação da paisagem urbana vinculada ao capital privado e estatal, impondo diferentes pontos de vista, por meio dos quais a paisagem pode ser apreciada.

Zukin (1996, p.205) admite que a paisagem urbana pós-moderna é constituída pelos prédios históricos, além da arquitetura contemporânea dos arranha-céus retorcidos e caixas de vidro. Entende a autora que um cenário urbano pós-moderno [...] também se refere à restauração e redesenvolvimento de antigos locais, à sua abstração de uma lógica de capitalismo industrial ou mercantil, e à sua renovação enquanto um espaço de consumo [...]”. Infere-se então que a paisagem urbana contemporânea é um amálgama, uma colagem, de prédios históricos e prédios novos, tendo em comum a extração das rendas de forma a permitir a continuidade da acumulação capitalista.

Em meados do século XX, o capital privado e a administração pública passam a enxergar a cultura como mercadoria de forma especial. Ambos estabeleceram neste momento as bases para a cooperação público/privada tão em voga nos dias atuais, e constituíram novas bases para a manutenção e o restauro dos bens ditos históricos. O Estado passa a adotar medidas de recuperação de imóveis, restauro de fachadas e reforma de sítios e logradouros. O capital privado, em resposta, passa a investir em equipamentos e serviços tais como: hotéis, restaurantes, embarcações para passeios e outros de apoio ao visitante. O imbricamento dos dois setores se deu, e ainda ocorre, através dos financiamentos públicos via bancos estatais, o que gerou uma nova dinâmica econômica com base no turismo, com as consequentes repercussões na dinâmica imobiliária das cidades.

Portanto, não é à toa que o discurso político hegemônico passa a ser, naquele momento, o da valorização dos bens culturais. A nova ordem das coisas implicou e determinou que as construções e sítios históricos adquirissem um novo status a partir de então associado à recuperação de muitas cidades em crise, que viam se esgotarem as políticas de caráter industrializante, e ao desejo do turista pela novidade, pelo diferente e pelo exclusivo. Fortificações, palácios e templos religiosos se descolaram do passado, muitas vezes não tão heroico assim, e adquiriram uma nova roupagem, associada à identidade das cidades e à paisagem urbana voltada para o entretenimento.

Tais inferências conduzem à definição de duas outras categorias analíticas, além daquelas definidas por Choay (2006), como visto anteriormente:

a. A construção histórica como objeto do discurso político de valorização do patrimônio, no qual são associadas a necessidade da preservação, com viés de cunho culturalista, e a necessidade de exploração do monumento como bem econômico.

b. Os investimentos em equipamentos e serviços vinculados à nova realidade de obtenção de rendas através do turismo, obtidas pelo novo olhar lançado sobre as construções históricas tanto pelo poder público como pelo capital privado. Essas duas categorias serão fundamentais para as análises lançadas sobre a Fortaleza dos Reis Magos, que tem sido objeto do discurso político das administrações estaduais tanto no que diz respeito à sua valorização enquanto bem econômico, quanto naquilo que se refere à exploração da construção como bem de

valor turístico dentro de uma perspectiva de transformações no cenário da economia do RN.