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As entidades pesquisadas: objetivos, territorialização, linhas de atuação/projetos e

6.2 EDUCANDO EM DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO ANGOLANO

6.2.1 As entidades pesquisadas: objetivos, territorialização, linhas de atuação/projetos e

A pesquisa selecionou três das mais importantes entidades com atuação na área de direitos humanos em Angola:

a) Mosaiko Instituto para a Cidadania (doravante Mosaiko), foi criado em 20 de setembro de 1997 por três padres, dois dos quais recém-formados em teologia no estrangeiro, ligados à ordem religiosa da Igreja Católica denominada Dominicana. A organização não teve necessidade de reconhecimento legal justamente porque já estava inserida numa outra instituição, a Igreja Católica. Contudo, ela iniciou recentemente um processo de reconhecimento próprio, ou seja, diferenciado da Igreja, apesar de continuar vinculada à mesma.

A instituição surge em função do movimento inspiracional que vem da historia daquela Ordem religiosa, baseada no entendimento de que a evangelização não se reduz ao âmbito especificamente religioso. E, por conta da situação de guerra vivida naquela conjuntura, o foco das organizações existentes direcionava-se para a ajuda humanitária de emergência e, na ótica dos fundadores do Mosaiko, com este tipo de abordagem, jamais seria possível sair da situação de guerra.

A perspectiva de ligar as pessoas com níveis de instrução baixa, não ficar o nível de conhecimento apenas reduzidíssimo a um numero de pessoas que tinha acesso a uma formação mais elevada e, portanto combater muito a ideia

de que, durante a guerra, não se pode trabalhar em direitos humanos ou porque isso era mal visto, não devíamos fazê-lo. (ENTREVISTA. Frei Mário Rui – Diretor Administrativo e membro fundador do Mosaiko, 15 nov.2011).

Inicialmente o Instituto estava constituído por três pessoas que realizaram consultas junto a especialistas angolanos e estrangeiros para se levar avante o projeto.

b) A Associação Justiça Paz e Democracia (doravante AJPD) surge em junho de 2000 tendo sido legalmente reconhecida como associação em 01 de agosto seguinte. A criação da instituição derivou da necessidade de se desvendar o véu que pairava sobre as constantes e sistemáticas violações de direitos humanos, por parte do governo, com destaque para a violência policial, que eram justificadas pelas circunstâncias de guerra. ‘‘Angola vivia um período de guerra e para nós que vivíamos no centro da cidade, defendíamos que muitos casos de violações de direitos humanos no país não estavam diretamente ligados ao conflito armado’’. (ENTREVISTA. António Ventura – Presidente e membro fundador da AJPD, 29 out. 2011). Participaram do ato de concepção dezesseis pessoas, com destaque para seis senhoras. Eram majoritariamente estudantes universitários, alguns jornalistas, ativistas de direitos humanos no interior e exterior do país.

c) Por último, a Associação Construindo Comunidades (doravante ACC) foi fundada em 23 de julho de 2003, período em que foi também legalmente reconhecida como associação. Os atos de tortura e de cárcere privado que aconteciam na província da Huíla, a necessidade de defesa dos direitos dos mais desfavorecidos, dos que tinham constantemente os seus direitos sociais, econômicos e culturais ameaçados, com realce para a sua segurança alimentar, motivaram a que um grupo de dezessete pessoas, que já se reunia para discutir diversos temas sociais e fazia parte de outra organização, sentisse necessidade de prosseguir com o trabalho desta última, uma vez que as violências continuavam.

Este grupo acabou sendo somente de católicos, mas nunca houve qualquer intenção de excluir pessoas de outras confissões religiosas. Simplesmente, eles já se reuniam no âmbito das atividades realizadas na Igreja, o que facilitou a constituição em associação. Mas o antigo grupo desapareceu por visões contraditórias em termos de atuação e ideologias:

[o grupo anterior] a certo momento tornou-se inoperante, era uma associação muito grande com muitos problemas, muita gente, muitos desafios com visões contraditórias, então chegou um momento em que já não avançava. Foi por isso que os membros entenderam dar continuidade ao espírito de defesa de direitos humanos (ENTREVISTA. Pio Wakussanga – Presidente do Conselho de Direção e membro fundado da ACC, 20 nov.2011).

Faziam parte do núcleo fundador enfermeiros, pessoas ligadas às comunidades agropastoris, funcionários públicos, etc.154

O movimento de criação e desenvolvimento das ONG em Angola foi fortemente influenciado pelo conflito armado. Vários grupos de cidadãos, de todos os extratos sociais, organizaram-se em algumas regiões de Angola, com ênfase para as capitais de província, e mais incidentemente em Luanda.

Agastados com as constantes violações aos direitos humanos, a inércia dos poderes públicos, a ausência de cultura jurídica em todas as camadas sociais, desde às mais abastadas às mais necessitadas, pessoas de diferentes quadrantes, religiosos, cristãos, jovens, estudantes universitários, jornalistas, etc. assumiram a responsabilidade de trabalhar com o tema que, naquele contexto vivido, constituía tabu: a defesa de direitos humanos.

As ONG foram surgindo nas regiões onde menos se sentia o conflito armado. As capitais de províncias, principalmente Luanda, que, por sua vez, posteriormente, estendiam as suas ações às regiões mais longínquas e diretamente atingidas pela guerra. Além disso, era naqueles locais onde havia menos insegurança para desenvolver atividades em prol dos direitos humanos.

Assim, vamos encontrar uma concentração de ONG na capital do país, algumas na província de Benguela e da Huíla (ver mapa p. 31). E a territorialização destas organizações foi bastante definida por questões de segurança, de acessibilidade, recursos financeiros, e, sobretudo, de necessidade.

As organizações surgiram com propósitos diferentes, porém, tinham um objetivo maior em comum – os direitos humanos.

Entre os diferentes objetivos preconizados pelas ONG, identificados nas entrevistas, vale citar os seguintes: promover os princípios e valores democráticos, divulgar uma cultura política voltada às demais questões sociais, fomentar a participação política; conferir capacidade de intervenção no mundo social, político, econômico e cultural; conscientizar as pessoas de que não se devem alhear das realidades sociais, mas sim, devem se empenhar na transformação da realidade inspiradas em valores para a construção de um espírito de paz e de reconciliação nacional.

154 Infelizmente, neste país onde a questão do pão de cada dia está ligada à função pública, sobretudo no quadro

de ser membro do governo quer a nível municipal e em outros níveis, pode ser [vista] na prática, não por lei, [como sendo] incompatível com a defesa dos direitos humanos que implica, de certa maneira, algum confronto de ideias, infelizmente nem todos [antigos membros] continuam aqui [na ACC]. Entrevista Pr. Pio Wakussanga, 20 nov. 2011.

Estas organizações passaram a dedicar-se a outras atividades que não eram humanitárias ou emergenciais, uma vez que, dada a conjuntura de guerra, muitas ONG nacionais e internacionais lidavam somente com essa abordagem. De tal modo, elas especializaram os seus trabalhos, particularmente em função das demandas vivenciadas nas regiões em que estavam estabelecidas.

Foi o caso da ACC, que passou a lidar com questões ligadas ao direito à terra, tema bastante polêmico na província da Huíla. Definindo, entre outros objetivos:

[...] a defesa dos direitos humanos em geral, mas concretamente o direito à terra e ao meio ambiente, a conscientização dos cristãos para que não se alienem à realidade terrena mas que se empenhassem na transformação da realidade inspirada com um espírito e valores cristãos, enfim, a construção de valores da paz e reconciliação, sobretudo naquele tempo que estávamos ainda a viver os efeitos da guerra violenta (ENTREVISTA. Pr. Pio Wakussanga, 20 nov.2011).

Por sua vez, as ONG situadas em Luanda tiveram seu raio de intervenção mais abrangente, tratando de formação em direitos humanos, de intervenção pública relativamente às constantes violações registradas um pouco por todo o país.

Nesse contexto, o público-alvo acabou também sendo definido em função das áreas de atuação destas organizações.

O Mosaiko, apesar de ter sua sede em Luanda, atua no interior do país, nas regiões do Lubango, Matala (província da Huíla), Namibe, Waku Kungo, Gabela, (província do Kuanza Sul), Ndalatando, Dundo (província do Kuanza Norte), Luena (província do Moxico) e Bié (província do Bié) (vide mapa p.31). Nestas regiões, foram surgindo grupos locais e, posteriormente, foram criados subgrupos locais, no nível municipal/comunal, incluindo a Jamba Mineira, Kuvango, Chipindo, Micosse, Capelongo e Frechel (província da Huíla).

Igualmente com sede em Luanda, a AJPD realiza suas atividades principalmente nesta cidade, contudo, tem atuado em outras províncias, com destaque para a província da Huíla (vide mapa p.31).

A ACC também não atua em todo o território, mas tem suas sedes na província da Huíla, apesar de formalmente ter âmbito nacional. Ela tem atuado nas seguintes áreas da província: nos municípios da Chibia, Gambos e do Lubango, havendo uma atuação pontual no nível das províncias vizinhas (Namíbe e Cunene, vide mapa p.31) com outras organizações. Do mesmo modo com Luanda, para ações concretas em seu território.

Foi o caso do Mosaiko com suas três grandes vertentes de atuação que, no fundo, constituem as áreas na qual a organização busca solidificar suas ações:

1) a formação, cujos principais grupos-alvos são educadores e assistentes sociais, profissionais que estão a finalizar seus cursos superiores naquelas áreas, professores e estudantes de educação moral e cívica e outros professores interessados. Outra população- alvo é constituída por grupos locais e, indiretamente, os grupos-alvos derivados desses últimos, líderes comunitários que participam das formações ministradas pela organização, incluindo indivíduos que solicitam formação e aconselhamento jurídico. Um aspecto interessante é a participação, nesses seminários de capacitação, de agentes do governo em geral.

A formação tem o foco de tornar a lei acessível, pois, em muitos casos, os textos legais são excessivamente complexos para que as pessoas [não juristas ou de baixa instrução] os possam usar e, em função, disso é preciso uma adequação pedagógica e metodológica por parte da equipe de formação do Mosaiko.

2) Outra vertente da entidade é a da divulgação dos materiais produzidos e outros, com um público mais amplo e diversificado.

Os principais materiais divulgados pela instituição são: as atas publicadas após as semanas nacionais sociais, da qual falaremos adiante, com um nível de elaboração teórica mais formal, em regra acessível a um público universitário; o Mosaiko Inform, revista de direitos humanos publicada trimestralmente, mais direcionada para pessoas com escolaridade de nível médio; os calendários, acessíveis a todos os níveis, independentemente do grau de instrução. A entidade ainda mantém programas de rádio que, semanalmente, divulgam o trabalho do Mosaiko desenvolvidos na capital e no interior do país e onde se discutem temas relevantes, ligados ao exercício de direitos, individuais ou coletivos. Porém, destaca-se um tipo de público-alvo que atravessa aquele conjunto de ações, que são os decisores públicos e políticos.

3) A terceira e última vertente é da proteção: o grupo é particularmente definido pela condição econômica das pessoas que buscam apoio jurídico junto ao Mosaiko por meio de seus advogados, nos processos mais complexos e que envolvam instituições do governo ou tribunais.155

155 Os grupos com os quais o Mosaiko trabalha, são constituídos por diversas pessoas que formam o seu núcleo

duro, são estes membros dos grupos que planejam e realizam as formações em parceria com a organização, e que mobilizam pessoas que não estão nela inseridos neles, são pessoas externas, daí falarmos em um grupo e seguidamente das pessoas que se beneficiam das ações do Mosaiko por intermédio dos grupos organizados em nível municipal, comunal ou provincial.

Na mesma linha, a AJPD definiu o seu públicos-alvos em função das suas linhas de atuação. São quatro programas, nomeadamente:

a) o programa de HIV/SIDA e direitos humanos, direcionado para pessoas vivendo, pessoas infectadas e afetadas com o HIV/SIDA, em sua maioria mulheres com formação básica;

b) o programa de reforma penal e advocacia (que abarca duas vertentes: formação e reforma legal) cujo objetivo é contribuir para a melhoria no funcionamento do sistema de justiça, concretamente, a justiça penal e direitos humanos. É voltado para cidadãos privados de liberdade que se encontrem nas cadeias, essencialmente homens, geralmente de formação básica.

Neste âmbito, são ainda desenvolvidas atividades de formação da polícia e de funcionários públicos sobre matérias ligadas a direitos humanos, controle e monitoramento das detenções ilegais nas cadeias de Luanda. ‘‘É necessário incutir uma perspectiva de respeito de direitos humanos aos agentes da polícia e outros funcionários públicos’’. (ENTREVISTA. António Ventura, 29 out. 2011).

A reforma legal se concretiza por meio de pressão, a partir de debates públicos sobre a temática, uma vez que a maior parte da legislação em vigor ainda é do período colonial, não se adaptando, portanto, à realidade atual de Angola: ‘’O que nós fazemos é pressão, promover debates sobre a necessidade de reforma destas leis’’ (ENTREVISTA. António Ventura, 29 out. 2011).

c) o programa contra a corrupção e de transparência, onde o principal grupo-alvo são os órgãos do Estado, designadamente, a Assembleia Nacional e o Governo. Seu trabalho é voltado ao levantamento da legislação existente em termos de combate à corrupção.

d) e, finalmente, programa de rádio denominado Artigo Sétimo, inspirado no artigo sétimo da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, onde se discutem temas sobre direitos humanos, boa governação, e corrupção, com a participação ao vivo de ouvintes via telefônica. O presidente da AJPD refere, ainda, que

também temos desenvolvido outras atividades, ligadas à tomada de posições sobre casos flagrantes de violações de direitos humanos e de atropelos à legalidade, e também fazer alerta na situação de iminência de violações de direitos humanos. (ENTREVISTA. António Ventura, 29 out.2011).

Por sua vez, a ACC tem um público-alvo constituído pelas comunidades agropastoris da região da Chibia e Gambos, na província da Huíla (vide mapa na p. 31),

lidando com a questão do direito à terra, à água e outros recursos naturais existentes, direito ao meio ambiente saudável e não poluído, - e para que se abram corredores de transumância.156 Outro grupo são as vítimas dos esbulhos, das demolições forçadas levadas a cabo em 2010, com o intuito de reforçar os direitos destas comunidades, conscientizá-las para que estejam unidas, mantendo-as alertas para as manobras governamentais que podem distraí- las. Segundo o Padre Pio Wakussanga,

As comunidades vítimas de demolições são diversas, a maior parte é mesmo pobre, mas a maior parte fez o ensino de base e, um ou outro, fez o médio e mesmo aquelas cujas casas já estão marcadas para serem demolidas, ainda não foram demolidas com quem nós estamos a trabalhar no perímetro urbano, estes já encontra alguns no ensino superior, um ou outro já terminou o ensino superior, mas a maior parte naturalmente são todos de condição humilde (ENTREVISTA. Pr. Pio Wakussanga, 20 nov.2011).

E, finalmente, os ouvintes do programa de rádio da organização, emitido numa estação emissora local denominada Sociedade Aberta, que aborda temas ligados a cidadania e desenvolvimento para informar as pessoas e dotá-las dos mecanismos necessários para o exercício da cidadania, levando-as a interagirem com os titulares de cargos públicos.

Assim sendo, a ACC desenvolve o projeto de Advocacia na zona periférica e urbana com o objetivo de prestar assessoria jurídica aos grupos locais em defesa da terra, dos recursos naturais e meio ambiente. Existe, ainda, um pequeno projeto de Alfabetização constituído principalmente por mulheres agropastoris. Este projeto é semelhante a outro, de formação, porém, implementado de modo diferente, desenvolvido nas zonas urbanas e cujo objetivo fundamental é a conscientização dos direitos a moradia adequada.

Todos estes projetos trabalham a educação em direitos humanos como tema transversal, com um forte componente de conscientização sobre direitos, abordando matérias constantes dos pactos internacionais e dos compromissos assumidos por Angola neste âmbito, e o modo como a Constituição da República se inspirou nestas convenções.

A formação inclui também outras leis ordinárias que refletem a aplicação dos direitos humanos, especialmente na formação das lideranças locais. As comunidades têm uma consciência elevada da sua dignidade.

156 O termo transumância designa uma técnica de criação de gado praticada em regiões montanhosas e de terreno

acidentado, e que consiste em deslocar os animais para a montanha no início da primavera de forma a aproveitar os pastos, e em trazê-los de volta para as zonas mais baixas. Existe um projeto transumância no sul de Angola, é um projeto de “Melhoria de Acesso à Água e às Pastagens para as comunidades de Pastores nos Corredores de Transumância”. Disponível em:<http://www.huila.gov.ao/TodasPublicacoes.aspx>. Acesso em: 23 dez.2011. Os corredores facilitariam o trabalho destes criadores.

O que a ACC tem feito, mais não é senão dar forma aos direitos no contexto daquelas comunidades. Por exemplo, no que se refere ao direito à terra, as populações têm plena consciência que esta lhes foi legada por seus antepassados e o Estado angolano é recente tendo encontrado as pessoas a viverem naquelas terras. Por isso, em seu entender, ali onde nasceram, é onde também está o umbigo delas, daí resistirem à expropriação que tem sido feita, vista como sendo injusta. Na visão destas comunidades, é inconcebível que alguém as tire de suas terras, onde estão enterrados seus umbigos, a terra que lhes foi concedida por seus antepassados, um direito inalienável e sagrado.

De momento, esta formação está consignada somente no interior, nas comunidades agropastoris e, por dificuldades financeiras, não tem sido possível estendê-las a outras comunidades ou lideranças.