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Uma questão que rotineiramente evitamos em nossos diálogos no cotidiano é também um forte tópico no documentário de Rosely Forganes para ser tratado em sala de aula: a morte. Ouvir a fala dos habitantes do Timor Leste sobre a baixa dos cidadãos comuns e militares, o que cantam esses nativos para driblar as tristezas dessas perdas é também esperar na reação desses alunos-ouvintes alguma expressão, que já detectei em outras turmas das séries iniciais do curso de comunicação.

Trata-se, aparentemente, de uma reação de afastamento do ambiente em que se encontram esses alunos. Os olhos ficam mais distantes e pouco expressivos. Um silêncio praticamente sepulcral emerge entre eles e faz o Timor Leste retratado no documentário sair do pano de fundo dos sons da sala, invadindo não só o imaginário, mas transparecendo nitidamente em boa parte das expressões faciais dos alunos, num misto de concentração e empatia frente à dor do outro ali escutada.

Morin, ao falar sobre o “âmago do sujeito”, articula uma relação entre o sujeito e a morte que pode nos auxiliar na compreensão dessas expressões:

Pode-se compreender melhor, agora, a consciência humana da morte: esta não é somente a decomposição de um corpo, mas é ao mesmo tempo, o aniquilamento de um sujeito. A objetivação extrema da morte –

decomposição e aniquilamento – anda ao lado da subjetivação extrema, pois o sujeito é aniquilado. A morte do ente querido quebra em quem ama o Nós mais íntimo e abre um insuperável ferimento no coração da sua subjetividade. [...] o ser para si (sujeito), que é ‘tudo para si mesmo [...] sabe- se, ao mesmo tempo, um ser para a morte, ou seja, fadado ao nada’. [...] Por isso, a morte não é negada, mas ultrapassada (pela sobrevivência do duplo),

superada (por um novo nascimento), vencida (pela ressurreição). (2007, p.

80-81) [grifos meus]

A subjetivação da morte narrada por Morin aparece já no início nas respostas:

Edu – Qual é a opinião de vocês sobre a morte? Márcia – É triste.

Rita – Em que sentido a morte? Edu – Como você pensa que é a morte?

Renan – Eu acho ela interessante porque... você vai pra um lugar que você não... Ah... porque você não sabe o que vai acontecer com você depois. Entendeu? Você vai morrer... tá lá... (aponta para o chão com os dois braços). Leandro - Ah... Eu não sei não... Se lá...

Edu – Você já pensou sobre a morte? Leandro – Ainda não pensei nisso não. Edu – Nunca?

Leandro – Não...

Gustavo – Quem pensa em morrer?

Nas respostas iniciais dos alunos, é preciso ter um “sentido” para se falar da morte, que ultrapassa o sentido de objetivação descrito por Morin. A morte entendida pelo aluno Renan é vista como “um lugar em que você não sabe o que vai acontecer”. Não se trata, portanto, de descrever a morte no sentido biológico, ou da finitude da vida nesse aspecto, mas entendemos que, Renan buscou, aparentemente, aliviar a tensão e a angústia do aniquilamento humano projetanto uma “viagem” que pode ser até mesmo “interessante”. Leandro e Gustavo pareceram evitar o assunto ao afirmarem que nunca pensaram na morte. Supomos, nesse sentido, que a negação pode ser apontada como um caminho para o entendimento dessa fala.

Para Tiski-Franckowiak (1997, p. 28), o mecanismo de negação é também uma defesa muito comum contra conflitos com os quais não sabemos lidar ou não podemos encarar. Trata-se se de uma tentativa do Ego de expulsar da consciência aquilo que nos causa dor ou angústia.

Além disso, numa época na qual prevalece o hedonismo e o consumismo como formas de driblar a finitude, as festas como possibilidade de negar a angústia e o mal estar na civilização, pensar sobre a morte é algo praticamente fora do contexto da vida de muitos adolescentes. No entanto, entre os alunos que participaram da audição, quase a metade deles se denominou evangélico e, nesse caso, as respostas divergiram das opiniões de Leandro e Gustavo.

Rita – Eu tenho meu ponto de vista. Uns falam que acabou, fim de vida na terra. Pra mim, eu não tenho medo porque eu acredito naquilo que diz um ditado... a vida após a morte... Só que eu já passei pela beira da morte. Eu já passei por isso já, não era mais para eu estar aqui. Depois que você vê que você está viva e está na terra, você começa a refletir sobre tudo o que acontece. A gente começa a dar valor à vida. A gente vê... Não sei bem como explicar, não é o fim do mundo para mim, para a gente assim.Tipo, eu e ela (aponta para a Samara), pra gente que é da igreja...

Samara – A gente acredita na questão da religião também. Edu – Qual religião?

Samara – Evangélica... Não na vida após a morte, mas na eternidade,

entendeu?

Rita – Pode parecer ruim, mas quanto mais a morte chegar pra gente é

melhor, entendeu?

Samara– Porque a gente não morreu (entre aspas com as mãos) entendeu? Rita e Samara - O corpo da gente morreu, mas a alma não. A alma sobe,

entendeu?

Rita – A gente não tem medo da morte, a gente quer que chegue o mais

rápido.

Nesse instante oralizado, a cultura, por meio da crença religiosa, parece ficar mais evidente entre as falas de Rita e Samara. Morin, em O Método 4, ao articular o conhecimento e suas condições socioculturais, entende que:

A cultura que caracteriza as sociedades humanas é organizada/organizadora via o veículo cognitivo da linguagem, a partir do capital cognitivo coletivo

dos conhecimentos adquiridos, das competências aprendidas, das experiências vividas, da memória histórica, das crenças míticas de uma sociedade. Assim se manifestam ‘representações coletivas’, ‘consciência

coletiva’, ‘imaginário coletivo’. E, dispondo de seu capital cognitivo, a cultura institui as regras/normas que organizam a sociedade e governam os

comportamentos individuais. (2005, p. 19) [grifos meus]

É a cultura originária da crença dessas alunas que faz gerar uma visão de mundo distinta de outros alunos da sala. São os princípios apreendidos por meio da religião que fazem com que elas não apenas pensem dessa forma sobre a morte, mas que também exponham seus pontos de vista e sejam capazes de, numa fala quase apaixonada, afirmarem não temer a morte e ainda esperar que “ela” chegue mais rápido. A opinião que converge entre Rita, Samara e outras alunas da mesma religião presentes na audição, são também forças de ligação e coesão social (cf. MORIN, 2005, p. 21) e isso é constantemente reforçado no início das frases “A gente é da igreja”, “A gente não morreu”, “O corpo da gente morreu” e “A gente quer que chegue mais rápido”. Embora a fala seja individual, fala-se aqui por um “nós” coeso e identitário socialmente.

As percepções dos fatos narrados no documentário, e que passam a aparecer nas falas, são resultados dos conhecimentos obtidos e acumulados pelos presentes em seus relatos. Agora expostas, essas percepções propiciam revelar seus imprintings ao coletivo. Nesse sentido, para Morin (2005, p. 25):

Interdições, tabus, normas, prescrições incorporam em cada pessoa um

imprinting cultural, frequentemente, sem retorno. [...] a cultura é coprodutora

da realidade que cada um percebe e concebe. As nossas percepções estão sob controle, não apenas de constantes fisiológicas e psicológicas, mas, também, de variáveis culturais e históricas.

Segundo Morin (ibidem, p. 29):

O imprinting é um termo que Konrad Lorentz propôs para dar conta da marca incontornável imposta pelas primeiras experiências do jovem animal, como o

passarinho que, ao sair do ovo, segue como se fosse sua mãe, o primeiro ser vivo ao seu alcance. Ora, há um imprinting cultural que marca os humanos, desde o nascimento, com o selo da cultura, primeiro familiar e depois escolar, prosseguindo na universidade ou na profissão.

Na fala das alunas Alessandra, Cristiane e Alice, o imprinting religioso também aparece. Agora notamos, inclusive, uma subjetivação em relação à morte que está atrelada a uma dúvida do destino da “alma” cuja determinação só cabe a Deus. Segundo Morin (2007, p. 142), a consciência da morte acompanha o sujeito desde a infância como consciência da destruição absoluta do seu único e precioso tesouro, seu Eu, não menos terrível que a morte dos seus entes queridos. Daí a necessidade de encontrar um conforto no sobrenatural.

Alessandra – É como as meninas estavam falando lá do outro lado, elas acreditam na vida após a morte, eu também acredito. Como a gente também é evangélica, a gente está nesse meio, a gente acredita que a gente não morre, o que morre é a nossa carne e não a nossa alma. A gente descansa pra vinda de Jesus e que aí vai ter o juízo final e ele vai julgar para onde nós iremos, né? Se é para o céu ou para o inferno. Então como elas, eu também acredito nisso, que morrer já era. Eu não tenho medo de morrer e sim como a morte vai vir, se vai ser com dor ou se vai ser de repente, do nada, e se eu vou sofrer, entendeu? Eu fico pensando também nos familiares, nos amigos e no quanto eles vão sofrer, só isso.

Cristiane – Pra mim a morte é um descanso, mas quem sofre é a alma, né? Depende pra onde que a alma vai, é igual ela falou, (aponta para a Alessandra), quem sofre são os familiares também, amigos que vão sofrer, eu me preocupo mais com isso. As saudades que é permanente. Igual... esses dias eu perdi a minha avó e eu só penso nela, porque ela quem me criou, a saudade... E você tem medo da alma dela, entendeu? Onde deve estar (a alma dela), mas como ela era evangélica eu acredito que ela está num bom lugar. Alice – Eu também sou evangélica, então eu acredito que vai morrer a carne, mas a sua alma vai pra um mundo.

Céu ou inferno, medo, sofrimento, destino da alma e juízo final aparecem como dúvidas e angústias para Cristiane, Alessandra e Alice, que parecem encontrar a solução para essas questões por meio da obediência atrelada à pratica religiosa. Morin retoma o pensamento de Freud para articular a questão da religião nesse sentido:

Assim, a religião, segundo Freud, seria a neurose obsessiva da humanidade.

Alivia o indivíduo de sua angústia fazendo-lhe suportar um peso enorme de

rituais, de práticas, de obrigações, de adorações e de sacrifícios. Esse compromisso realiza-se pela mediação dos deuses, que nos exigem

obediência, devoção e holocausto e aos quais agradecemos com louvações. Os deuses são cruéis, mas podemos suplicar-lhes, tentar acalmá-los. O mito e o rito reequilibram o ser humano, fazem com que enfrente a angústia e a dor, permitem-lhe comunicar-se com o mundo inumano. O rito arranca o indivíduo à incerteza, ao vazio, à angústia e o insere numa ordem, num todo, numa comunidade, numa comunhão. (ibidem, p. 143) [grifos meus]

Na pós-modernidade, entre os extremos da sedução do consumo e outros tantos prazeres hedonistas e, na outra ponta, as angústias que marcam o cotidiano dos sujeitos, as religiões proliferam em promessas de ao menos amenizar essas tensões. Para que isso ocorra, no entanto, a devoção é fundamental. Assim, para Morin (op. cit.):

A fé religiosa, como a fé numa ideia, é uma força profunda que faz suportar e combater a crueldade do mundo no que diz respeito ao fiel (pois seu fanatismo contribui, com frequência, a aumentá-la). Dá ao espírito humano segurança, confiança e esperança; preenche-o de certeza de uma Verdade salvadora que recalca a corrosão da dúvida.

Os benefícios de se ganhar o céu, serem perdoadas e terem suas almas e de seus parentes salvas nas falas das alunas evangélicas aqui são apontadas como dádiva de uma devoção. O sacrifício, em forma de devoção da fé religiosa é ao mesmo tempo mais neurótico e mais mágico para o homo sapiens-demens. Nas considerações de Morin (ibidem, p.143-4):

[...] permite acalmar a crueldade dos deuses, superar a incerteza e eliminar a angústia. O sacrifício consagra o grande pacto de vida e morte entre o

humano e o divino. [...] As religiões ensinam a menos temer a morte, a aceitar os golpes da sorte, suscitam a resignação, a quietude.

4.7 As falas sobre o rito na percepção dos alunos ouvintes do documentário