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“How many ears must one man have before he can hear people cry?” Bob Dylan

Ainda que a discussão teórica que fizemos até esse ponto da pesquisa tenha sido de grande importância para uma reflexão acerca do que estamos tratando neste trabalho, torna-se difícil propormos qualquer análise desse tema sem a realização de uma pesquisa de campo.

A etapa que cumpre essa fase foi realizada no mês de abril de 2013, na Escola Estadual Anhanguera, localizada no bairro da Lapa, em São Paulo.

Embora já tenhamos comentado sobre a amostra da pesquisa ser composta por alunos do ensino médio na introdução desta tese, aqui convém fazermos algumas considerações pertinentes sobre a seleção desse grau de ensino, argumentadas pelo nosso referencial teórico, Edgar Morin (2010, p. 78) em A cabeça bem feita: Repensar a reforma,

reformar o pensamento:

Os programas (do ensino médio) deveriam ser substituídos por guias de orientação que permitissem aos professores situar as disciplinas em seus novos contextos: o Universo, a Terra, a vida, o humano. [...] Deveria ser instituído um ensino recomposto de ciências humanas, centralizado no

destino individual, no destino social, no destino econômico, no destino histórico, no destino imaginário e mitológico do ser humano [...]. [grifos

meus]

Entendemos, a partir dessa proposta, que o documentário radiofônico selecionado para a audição e pesquisa de campo desta tese pode ser essa substituição como guia de orientação para os professores que viessem a participar de toda a atividade aqui proposta. Aliás, o documentário escolhido foi inspirado no argumento de Edgar Morin a partir da leitura livro citado acima, como possibilidade de contextualizar o Universo, a Terra, a vida, o humano. São aproximadamente trinta minutos de uma peça radiofônica que enfatiza o humano nos destinos que Morin sugere como pontos para discussão indicados para esse grau de ensino. O documentário possibilitou um diálogo com esses alunos para falarmos sobre guerra, morte, ética, perdão, rituais, além das outras percepções que partiram das falas desses alunos e tornaram visíveis outros possíveis temas que poderiam, no mínimo, facilitar vínculos de afeto entre os próprios alunos e o professor.

Sobre o ensino médio, Morin (2010, p. 80) nos fala das séries de televisão:

[...] em vez de ignorar as séries de televisão – enquanto os alunos se instruem por elas – os professores mostrariam que, por meio de convenções e visões estereotipadas, elas falam, como a tragédia e o romance, das aspirações,

entendidos, encontros, separações, felicidade, infelicidade, doença, morte, esperança, desespero, poder, traição, ambição, engodo, dinheiro, fugas, drogas. [grifos meus]

Apesar do formato escolhido para este estudo não ser as séries de televisão, pensamos estar no caminho indicado por Edgar Morin em nossa tentativa de abordarmos, por meio do documentário radiofônico, os conteúdos que a guerra coloca em debate com os temas que ele descreve acima.

Nossa pesquisa de campo foi dividida em dois momentos. Primeiramente, a preocupação foi em estabelecer um diálogo com professores que estivessem dispostos a dialogar sobre a crise da visualidade em nossos dias. A partir daí, fizemos a proposta da cultura do ouvir em sala de aula, numa ideia inicial que essa cultura fosse empregada com seus alunos.

No segundo momento, fizemos o convite a esses mesmos professores para que acompanhassem seus alunos na audição do documentário radiofônico Vozes do Timor. A subjetividade que transpareceu por meio da oralidade desses alunos, após a audição desse documentário, é o que trataremos nesse capítulo. Antes disso, no entanto, pensamos ser importante relatarmos sobre a adesão dos professores e como ocorreu o diálogo que havíamos planejado inicialmente.

O pesquisador e o tema dessa pesquisa foram apresentados à direção e à coordenação da escola por meio de uma carta redigida e devidamente assinada pelo orientador da tese. A carta esclarecia nosso objeto de estudo, além de explicitar as fases do desenvolvimento da pesquisa de campo. Fomos muito bem recebidos pela direção e pela coordenação, que logo se encarregaram de nos colocar em contato com os docentes do ensino médio, passando também a eles qual era nosso objetivo na escola.

Agendado o dia da primeira fase, comparecemos à escola dispostos a permanecer ali pelo menos o período de uma hora e meia em que fosse possível detalharmos brevemente nosso estudo. A coordenação nos acompanhou até a sala dos professores para uma convocação desses docentes. Depois de algumas chamadas, nos dirigimos até o auditório da escola e demos início ao nosso diálogo com a participação de seis professores, além da coordenadora. A queixa primária que ouvimos por parte dos

professores participantes era de que eles não teriam muito tempo para esse trabalho, já que se encontravam no período de lançamento de notas e fechamento de diários. Embora nem todos tivessem se pronunciado ou feito a mesma queixa, percebemos que havia um clima de ansiedade para que déssemos seguimento à nossa fala, pois eles deveriam voltar rapidamente à sala dos professores para concluírem parte das suas atividades. O que era esperado para um diálogo de no mínimo uma hora e meia foi feito em pouco mais de quarenta minutos. Enquanto fazíamos a exposição sobre alguns dos pontos da pesquisa, falando sobre a problemática da visualidade, alguns docentes ouviam atentamente enquanto dois deles faziam muitas inferências em diversos momentos.

Muitas dessas induções saíam do recorte do nosso trabalho, que tentávamos, em tão pouco tempo, esclarecer aos participantes. O momento mais crítico desse dia foi, após aproximadamente vinte minutos de exposição, sermos questionados por uma professora da seguinte forma: “Eu deixei de fazer o que estava fazendo para vir aqui saber qual é a ‘técnica’ que você ensinará para meu aluno me ouvir, não tenho muito tempo. Você vai demorar muito?” A pergunta serviu como uma brecha para atestarmos nossas leituras sobre a dificuldade de ouvir na pós-modernidade e deixar claro, antecipadamente, que o ouvir é um aprendizado e que para ouvir basta que sejamos passivamente receptivos, conforme nos fala Norval Baitello Junior (2005, p. 106). Pontuamos ainda que, se ela pretendesse aprender como empregar a cultura do ouvir em sala de aula e ser ouvida por seus alunos, deveria, antes de qualquer ação, também aprender a ouvir. Muito embora nosso argumento tenha sido dito de maneira pacífica e precisa, a professora deixou o auditório demonstrando desinteresse pela nossa discussão e ansiedade em voltar às suas atividades. Os demais professores ouviram o que parcialmente programamos acerca da pesquisa e o que era para ser um diálogo ganhou atributos de palestra, com algumas perguntas, questões e agradecimentos feitos ao final da apresentação.

No dia seguinte, voltamos ao colégio, dessa vez para realizarmos a audição com os alunos. Para a amostra, foram selecionados aleatoriamente vinte alunos pela própria coordenação. Contudo, todos eles eram estudantes do primeiro ano do ensino médio.

Além da própria coordenadora, não foi possível a nenhum professor do nosso diálogo participar desse segundo momento da pesquisa, justificando a ausência64 ainda por estarem em salas de aula ou envolvidos em outras atividades, como o fechamento de diário e o lançamento de notas que não haviam concluído no dia anterior.

Percebemos que alguns alunos, ao entrarem no auditório acompanhados apenas pela coordenadora, chegaram com atitudes próprias do ludens para o que a coordenação havia nomeado como “um experimento”. Todos, no entanto, demonstravam curiosidade. Por estarem em grupos e muito provavelmente pelas suas pulsões marcantes, não faltaram risos, piadas e brincadeiras antes do início do nosso trabalho.

Em Além da razão e da loucura, no Método 5 – A humanidade da humanidade, a

identidade humana (2007, p. 130) Morin nos fala sobre o ludens:

[...] cabe acrescentar esta tendência, encontrada em todas as sociedades, muito forte em alguns indivíduos, a bancar o bufão, o clown, a palhaçada, a paródia, que nunca deixam de romper a casca da seriedade, como se o homo

ludens quisesse, desde de dentro, rasgar a máscara do homo sapiens.

O jogo, cuja finalidade não é “séria”, comporta a sua própria seriedade no respeito às regras, na aplicação, na concentração e na estratégia.

Em nossa análise, percebemos também o sentido do que nos fala Morin, ao notarmos que, mesmo no estado lúdico que chegavam os jovens para a audição, as brincadeiras eram provavelmente uma forma encontrada para que pudessem se descontrair frente ao novo, diante de um pesquisador que eles não conheciam e se prepararem para o “experimento”65 que fariam. Tratava-se de uma tentativa de rasgar a máscara do homo

64 Pelo contato que tivemos nesses dias com os docentes, foi possível perceber que, embora os professores

estivessem, de fato, desenvolvendo outras atividades, notadas inclusive pelo próprio pesquisador, havia aparentemente também uma desmotivação e desinteresse em fazer qualquer outra coisa que não estivesse ligado diretamente às suas funções.

65 Pensamos que a palavra “experimento” pode conotar um significado que sugira uma tensão em quem a

ouve. Alguns dos significados dados pelo dicionário Houaiss para a palavra “experimento” são: submeter à experiência; ensaiar, testar, submeter (-se) a provas psicológicas, morais ou físicas; testar (-se), avaliar, sondar, conhecer, pôr à prova; tentar e testar.

sapiens dentro de uma situação que pode impressionar até mesmo pelo nome da

atividade. Enquanto brincavam, porém, havia ali também a consciência do ambiente, os limites que tinham, o respeito às regras e, principalmente, a disposição para participar seriamente da atividade.

Alguns alunos, nos primeiros passos dados ao entrarem no auditório, já questionavam: Vamos fazer um experimento? Sobre o que? Vai filmar? O que vamos ter que fazer? Tem que olhar para a câmera? Morin, em O Método 3, contribui brilhantemente para nossa compreensão quando nos fala sobre a “curiosidade”:

[...] Efetivamente os mamíferos, particularmente os jovens, são animados por uma ‘pulsão exploradora’ ou ‘cognitiva’ desprovida de qualquer utilidade imediata que pode ser chamada de curiosidade.

Essa pulsão cognitiva é movida por um interesse de conhecer que não pode ser reduzido ao conhecimento em questão. Tudo acontece como se a curiosidade, para além das suas finalidades imediatas (como a utilidade de conhecer o seu meio e de acumular informações ao acaso), uma finalidade em si, ou seja, uma satisfação propriamente cognitiva de descoberta e de exame; em outras palavras, o prazer de conhecer. (MORIN, 2008, p. 74)

Aqui, ousamos pensar que as perguntas curiosas somadas ao ludens são sinônimas do prazer mencionado pelo autor. Dessa forma, o ludens foi também encontrado no prazer de conhecer, e não algo estanque no processo de conhecimento desses jovens, que ao contrário dos professores participantes do diálogo, demonstraram bastante interesse pela atividade.

Passado algum tempo em que todos já estavam no auditório, demos início à audição do documentário, não sem antes convidá-los para isso. Convidar uma sala à audição é antes de qualquer coisa requerer a passividade de todos os ouvintes ali dispostos.

Maréchaux (p.V e VI), em suas notas sobre Plutarco aponta ao professor a importância da busca pelo silêncio se ele pretende preencher o ouvido de seus alunos e fasciná-los:

Ao ouvir, aprendemos mais a pensar do que a falar, pois esta audição é feita da própria substância das palavras, tendo a retórica, por assim dizer, apenas uma função reguladora e exterior. Deste modo, a primeira dificuldade que compete ao professor resolver é fazer o discípulo ávido de frases e que sucumbe à vertigem das palavras, compreender a necessidade formadora de

silêncio. [...] a linguagem é semelhante à fita sonora, que dá voz às coisas ausentes e lhes confere um acréscimo de presença, de sorte que o ouvido não passa de um lugar de fascinação, em cuja oficina o espírito encantado fabrica simulacros, pela meditação das palavras-miragens. Criar para os

‘sentidos interiores’, animar com cor, sabor, odor, e prover com uma carnação humana quase real um teatro de palavras cuja fecundidade rivalize vitoriosamente com a lembrança dos espetáculos naturais, unir as paixões e o querer a estes espetáculos mais verdadeiros que a natureza, tal é o poder da retórica dos primeiros mestres. [grifos meus]

No intento que a audição fosse realizada de maneira séria, era necessário, portanto, silêncio no ambiente a fim de que esse silêncio fosse preenchido com o som da peça que iríamos ouvir. Trilhas, efeitos e vozes entrariam pelo auditório e ocupariam aquele espaço com prioridade. Dessa forma, a contribuição por parte dos alunos era necessária Daí o convite. Em outros termos, ser passivamente receptivo em relação ao ouvir requer atenção e, para tanto, era preciso acalmar o estado ludens e enfatizar, para o momento, o estado sapiens e a eficácia da racionalidade humana. Para Morin (2007, p. 116):

[...] Homo é, de fato, sapiens [...] A racionalidade é uma disposição mental que suscita um conhecimento objetivo do mundo exterior, elabora estratégias eficazes, realiza análises críticas e opõe um princípio de realidade ao princípio do desejo. Os avanços da ciência, da técnica e da economia confirmam a eficácia da racionalidade humana.

Entendemos que a disposição mental mencionada por Morin, foi a resposta ao nosso convite. Aos poucos, percebemos que os alunos se dispuseram a ser receptivamente passivos e a ouvir. Acalmaram-se, cada um em seu próprio tempo, alguns com mais dificuldade de abandonar o espírito bufão, outros já mais concentrados. No entanto, como as relações em grupo são compostas também através de “fios invisíveis” – de

maneira a nem sempre ser possível perceber as comunicações interpessoais de um grupo

naquele momento, alguns alunos iam convidando aos outros, por meio de olhares mais

“imersivos” no áudio que preenchia o auditório ou com olhares de advertência expressados por alguns, para que todos deixassem apenas o silêncio ali ser preenchido pela veiculação do documentário. As estratégias e as análises críticas, típicas do

sapiens, citadas por Morin, são comprovadas brilhantemente nas falas dos alunos que

veremos a seguir.

4.2 O “Eu” e o “Nós” presentes nas falas dos alunos sujeitos ouvintes do