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As figuras de ação nos textos de mulheres e nos textos de homens

IV. ANÁLISE TEXTUAL E COMPARATIVA

1. As quatro etapas de análise

1.4. Análise dos aspetos semiológico-interpretativos

1.4.1. As figuras de ação nos textos de mulheres e nos textos de homens

Para a abordagem das figuras de ação, exporto as características das cinco figuras de ação identificadas por Bulea – ação ocorrência, ação acontecimento passado, ação experiência, ação canónica e ação definição -, e aplico-as aos textos no sentido de verificar se ocorrem.

Metodologicamente, baseio-me numa análise qualitativa, em que, por intermédio dos mecanismos discursivos evidenciados na análise da etapa anterior, identifico as figuras interpretativas do agir construídas. Assim, no quadro metodológico das figuras de ação, os tipos discursivos são os elementos preponderantes para a identificação dos processos de agentividade (marcas de pessoa) e situacionalidade (eixos temporais manifestados nos textos), resultando as figuras de ação de escolhas no seio das representações do agir que são dependentes desses processos. Especificamente, para identificar as figuras de ação, tenho em consideração as suas características diferenciais, avançadas por Bulea (2009, 2010b), que respeitam às seguintes dimensões: os traços gerais da compreensão do agir, a estrutura geral, a organização discursiva e enunciativa (tipos discursivos), o eixo de referência temporal (e eixos locais), as localizações (formas verbais), a agentividade (marcas de pessoa) e as modalizações (epistémica, deôntica, apreciativa e pragmática).

Na exportação das características das figuras de ação identificadas por Bulea e na articulação com os dados extraídos da análise dos aspetos linguístico-discursivos e enunciativos, verifico que a ocorrência de uma determinada figura de ação se relaciona com a mesma ocorrência de um determinado tipo de discurso, comprovando a tendência atestada por Bulea (2010b: 75) de que os tipos de discurso participam de forma “constitutiva e potencialmente autónoma” no processo de interpretação do agir.

Assim, verifico que as ocorrências de segmentos de discurso interativo mobilizam, no processo interpretativo, a presença da ação ocorrência; a ação canónica e a ação definição relacionam-se com os segmentos de discurso teórico; e a ação acontecimento passado é mobilizada pelo relato interativo. Tendo observado, na análise dos aspetos linguístico-discursivos, um predomínio dos tipos discursivos discurso interativo e discurso teórico, a identificação das figuras de ação permitiu evidenciar, igualmente, de um modo geral, o maior predomínio da figura de ação ocorrência nos textos e, em segmentos de discurso teórico, da figura de ação canónica. Com menos ocorrências, mas ainda assim relativamente expressivas, assinalo a presença das figuras de ação acontecimento passado e definição. Já a figura de ação experiência é a que apresenta menos expressividade, sendo a sua ocorrência residual, remetendo para segmentos de discurso interativo.

De seguida, particularizo as características que permitem mobilizar as figuras interpretativas na representação do agir e respetivos exemplos. Tal como mencionei, esta análise não pretende ser exaustiva, pelo que serão extraídos apenas alguns exemplos que comprovem a emergência das figuras de ação já anteriormente identificadas nos textos do

meu corpus, sem pretender propriamente uma correspondência entre todas as figuras de ação e todos os textos. Ressalvo, no entanto, também como já referi, que as figuras de ação propostas por Bulea ocorrem em todos os textos. Os exemplos correspondem a segmentos textuais, tanto dos textos de mulheres (TMnúmero) como dos textos de homens (THnúmero), identificados a seguir por S.número e respetivo enunciado, contendo a(s) figura(s) de ação em análise.

No que respeita à figura de ação ocorrência, tanto nos textos de mulheres como nos textos de homens verifico que pontua os segmentos em que a instância agentiva se coloca em relação de proximidade com a situação de interação, pelo que o agir é captado com um forte grau de contextualização. Dessa forma, o discurso e as suas dimensões temáticas situam-se no encalço imediato do actante, mobilizando exclusivamente segmentos de discurso interativo, organizados em relação direta com os parâmetros físicos e actanciais da situação de interação, permanecendo o eixo de referência temporal o dessa mesma situação, e delimitado.

Estruturalmente, a figura de ação ocorrência emerge sob a forma de ajuntamento de elementos heterogéneos relacionados com o agir, ou seja, depende de uma apresentação desorganizada de aspetos diversos. Apesar dessa desordem, os elementos do agir são situados em relação ao contexto de enunciação ou à situação de produção. Por tal, o eixo temporal de referência permanece o da situação de interação, com particular destaque para as localizações que assinalam simultaneidade ativadas pelo predomínio de formas do presente do indicativo e com valor deítico. O eixo de referência temporal é ainda delimitado, para além da ocorrência de deíticos temporais marcados nas formas verbais, pelo recurso a outras expressões temporais (sobretudo advérbios). Ainda, e uma vez que o eixo de referência temporal coincide, por norma, com o da situação de interação, a figura de ação ocorrência nestes textos comporta inúmeros eixos locais, consubstanciados no recurso a formas deíticas espaciais (advérbios e nomes próprios de pendor institucional).

Do ponto de vista das marcas de agentividade, na ação ocorrência atesta-se uma implicação forte do agente nos atos constitutivos do agir, marcada pelo deítico pessoal eu.

Assim, o actante é quase exclusivamente identificado e designado na primeira pessoa do singular (1ª PS), visível, sobretudo, nos pronomes pessoais e possessivos, nos determinantes possessivos e nas desinências número-pessoais das formas verbais, marcando a equivalência

entre a instância emissora do texto e o autor dos processos evocados, e assinalando a sua atestada e forte implicação e, por tal, o seu estatuto de ator nos processos evocados.

Os exemplo extraídos, um no texto de mulheres e outro no texto de homens, atestam a construção desta figura de ação, com as características acima evidenciadas:

Ex. 1 (TM1, S.2): Eis-me perante a Assembleia da República, a cumprir o preceito constitucional de apresentação do Programa do Governo.

Ex. 2 (TH3, S. 10): Sucedo nas funções de Reitor ao Prof. Doutor Manuel Isidro Alves (...).

Bulea (2009, 2010b) assume, ainda, que em referência ao eixo da situação de interação, para além de localizações (repérages) efetivadas por formas verbais que pontuam a localização de simultaneidade (presente do indicativo), a figura de ação ocorrência admite outras: de anterioridade e de posterioridade. Assim, é possível, também, observar o recurso a formas do passado (pretérito perfeito e pretérito imperfeito) e a formas do futuro (nomeadamente, futuro composto, simples e perifrástico), que marcam (e materializam) a temporalidade do ato de produção. O exemplo que se segue ilustra a localização de posterioridade, materializada pela forma verbal de futuro simples:

Ex. 3 (TM6, S. 43): Estarei disponível agora para algumas perguntas, nos próximos 30 minutos.

Segundo a autora, estas três localizações (simultaneidade, anterioridade e posterioridade) podem surgir alternadas, e essa alternância pode, ainda, ocorrer com frequência e rapidez entre elas; como o exemplo a seguir demonstra:

Ex. 4 (TM4, S. 59): Tenho sido muito feliz nesta casa, indo agora, espero, viver um novo ciclo com a alegria e o entusiasmo de sempre e com um renovado sentido de futuro e de esperança.

No que respeita às marcas de agentividade, segundo Bulea (2009, 2010b), atesta-se, como mostrei acima, a implicação forte do agente nos atos constitutivos do agir (1ª PS). No entanto, ainda de acordo com a autora, é possível verificar-se a ocorrência do pronome nós, que retoma, geralmente, complexos identificáveis, a partir do cotexto ou do contexto, onde o actante se insere como parte de um grupo/coletivo e cujo funcionamento é potencialmente deítico. Assumo, no meu trabalho, a coexistência, no processo de implicação do agente de produção no texto, de duas origens enunciativas marcadas pelos deíticos de 1ª PS e de 1ª PPl. Prevendo a ação ocorrência a possibilidade de captar o agir do ponto de vista individual e coletivo, verifico que essa figura de ação pontua tanto os processos captados pelo protagonista da interação verbal, como os processos captados a partir de formas enunciativas pluralizadas, representando um coletivo onde o actante se inser. No entanto, ressalvo, à semelhança do que aferi na análise dos aspetos linguístico-discursivos, que a implicação forte do actante, que lhe confere o papel de ator, é assinalada nas marcas de 1ª PS. Por seu turno, a implicação do agente a partir das marcas dilatadas (1ª PPl) é responsável pela verbalização de acontecimentos deíticos que se relacionam com elementos da ação de linguagem, mas que marcam a responsabilidade do dizer-fazer institucional, integrando, necessariamente, o agente de produção. Nessa medida, a sua atividade discursiva foca a instituição social em si (objetivos, perspetivas e modos de ação institucionais comuns); ao contrário da forma singular, que foca a pessoa, enquanto responsável pelo ato que assume. O posicionamento enunciativo, de forma individual ou coletiva, é francamente distinto, pelo que se percebe quando a agir assume verdadeiramente um estatuto individual e quando assume o estatuto coletivo: com uma clara investida da pessoa no texto pelo recurso às formas de 1ª PS e com enfraquecimento da voz do agente de produção por intermédio da forma dilatada, de 1ª PPl.

Apesar de as marcas de 1ª PPl (implicação atenuada) ocorrerem com maior ênfase nos textos de homens, apresento abaixo, também, um exemplo extraído dos textos de mulheres:

Ex. 5 (TM2, S. 24): O Tratado de Lisboa abriu-nos, a nós, Parlamento, a um protagonismo de larga escala que não podemos desperdiçar.

Ex. 6 (TH5, S. 17): Não podemos ficar indiferentes ao acentuar do processo de regressão social, de acumulação e polarização da riqueza.

Por fim, a ação ocorrência caracteriza-se, ainda, por comportar um grande número de modalizações externas às relações predicativas, sob a forma de modalizações deônticas e epistémicas, com maior ênfase das modalizações deônticas. No entanto, e ao contrário das outras figuras de ação, comporta relações predicativas indiretas materializadas sob a forma de modalizações pragmáticas:

Ex. 7 (TM3, S.9): Quero que saibam que as assumo com alegria.

Ex. 8 (TH6, S. 15): A todos apelo: (...).

Relativamente à figura de ação acontecimento passado, embora ocorra com maior incidência nos textos de homens, apresenta as mesmas evidências. Nesta figura, o agir é captado sem relação com a situação de produção de linguagem, ou seja, numa relação de não contiguidade com a situação da sua textualização. O agir é contextualizado sob o ângulo da singularidade, de forma fragmentária e seletiva, configurando um momento anterior ao da produção de linguagem, isto é, propõe uma compreensão retrospetiva do agir.

Tratando-se da extração do passado de uma unidade praxiológica (ilustrativa do agir), do ponto de vista da organização discursiva, a ação acontecimento passado aparece em segmentos de relato interativo (tipo de discurso) e os processos evocados são captados em referência a um eixo temporal situado a montante (antes) da situação. Embora os processos narrados estejam explicitamente distanciados dos parâmetros temporais da situação de interação, o agente de produção permanece atestadamente implicado no evento narrado, por intermédio da presença de deíticos de 1ª PS (ou de 1ª PPl).

Os factos narrados são assegurados por mecanismos em que a localização dos processos codificados, em relação ao eixo de referência temporal, é efetivada pela presença de formas verbais de pretérito perfeito simples e de pretérito imperfeito; e são geralmente limitados por expressões/organizadores temporais (que ocorrem, por norma, no início do segmento). Assim, os factos relatados são estruturados sob a forma de esquema narrativo prototípico, cronológico, sustentando o seu estatuto de “evento”.

Nestes textos, a ação acontecimento passado apenas contribui para a manutenção do segmento temático central. O acontecimento narrado possui um carácter meramente ilustrativo face à sua circunstancialidade, é enunciado em feição de “história”, extraído do passado, e evidencia uma experiência ordinária do actante:

Ex. 9 (TH1, S. 2): Indigitado pelo Senhor Presidente da República para formar Governo, procedi à constituição do respectivo elenco governativo.

Ex. 10 (TH2, S. 7): Candidato obviamente sem sucesso em 1969, pela CEUD de Lisboa, eleito e reeleito desde há 30 anos como Deputado da democracia – sempre pelo PS, primeiro pelos Açores, em 1975, e, depois de 83, por Lisboa – tive a honra de presidir a várias Comissões e ao meu próprio Grupo de Deputados.

Ex. 11 (TM3, S. 6): Entendeu o Magno Chanceler da Universidade Católica Portuguesa, depois de ouvida a Universidade, através dos seus órgãos superiores, e de ouvida também a Conferência Episcopal, propor à Congregação para a Educação Católica o meu nome para Reitora.

No que concerne à figura de ação canónica, com relevante predomínio nos textos, sobretudo nos de homens, o agir é captado e compreendido sob forma de construção teórica, fazendo abstração do contexto em que se desenvolve e das propriedades do actante que a efetua. Esta figura de ação propõe uma lógica do processo que se apresenta como a-contextualizada, com validade geral e cuja responsabilidade é imputada a uma instância normativa/institucional exterior ao actante. Dessa forma, em relação ao eixo de referência temporal, esta figura de ação caracteriza-se pela evocação genérica dos factos, que não se relacionam nem com a situação de interação, nem com qualquer referência de origem temporal, pelo que o eixo temporal é não delimitado e não marcado. Nessa medida, não comporta nenhuma localização, sendo que os processos são compreendidos, maioritariamente, por formas verbais de presente do indicativo sem valor deítico, traduzindo uma organização cronológica do processo. A sua estruturação geral é expressa por intermédio de uma organização frásica recorrente, invariável, correspondente à estrutura canónica sujeito – verbo – complemento e, ainda, pode comportar estruturas argumentativas efetivadas por organizadores textuais lógico-argumentativos.

Sendo uma forma de construção teórica, prototípica e neutra, com uma estrutura cronológica (prototípica) do curso do agir, organiza-se sob o eixo do expor e da autonomia, podendo, por vezes, mesclar-se com o discurso interativo, resultando num discurso misto teórico-interativo.

No plano agentivo, observa-se a presença da forma pronominal indefinida se, que não remete para o protagonista da interação em curso e que marca uma instância agentiva neutra, adquirindo o estatuto da noção de agente. Decorrente da atorialidade neutralizada, as modalizações observáveis, nesta figura, são quase exclusivamente externas às relações predicativas e assinalando modalizações deônticas (é preciso).

A presença de ação canónica nos textos surge, sobretudo, para pontuar factos tidos como assertivos que se relacionam com a apresentação de aspetos do conteúdo temático; e para veicular informações factuais, manifestando uma intenção comunicativa imputada, essencialmente, à divulgação de conhecimentos da realidade. Associa-se ao raciocínio de ordem lógica do discurso teórico que sustenta os processos de teorização e argumentação necessários para legitimar as posições assumidas. Dessa forma, as situações sociodiscursivas inscrevem-se no mundo do expor e da autonomia, com distanciamento do eu, aludindo, maioritariamente, ao estado das coisas e ao modus operandi do coletivo (institucional ou não) que o agente de produção representa ou deseja representar:

Ex. 12 (TM6, S. 37): A Presidência da República pode e deve ser centro de convergência da diversidade e do pluralismo.

Ex. 13 (TH4, S. 72): Uma última palavra sobre o governo da Fundação: é preciso prosseguir o caminho já traçado no sentido de aumentar a influência dos administradores não executivos.

Ex. 14 (TH5, S. 133 / S. 134): É preciso defender a Autonomia, reedificar o edifício autonómico, tornando-o leal às aspirações das populações e fazendo dele o reflexo dos ideais (...). / É preciso inverter o processo de ataque e desfiguração do Poder Local Democrático, e reconduzi-lo por via das condições que lhe são devidas de autonomia administrativa e financeira (...).

Quanto à figura de ação definição, o agir é captado enquanto objeto de reflexão, em termos de redefinição por parte do actante. Ao contrário das outras figuras de ação, é descontextualizada, não tematiza os actantes, nem a organização cronológica do agir, nem

os componentes praxiológicos, mas encerra em si traços que asseguram a identidade do agir, circunscrevendo-o e delimitando-o face a outras formas de agir/atividade.

Na dimensão discursiva e enunciativa, à semelhança da ação canónica, insere-se em segmentos organizados sob a modalidade do expor, mobilizando o tipo de discurso discurso teórico. A agentividade é quase nula, situação essa exclusiva da figura de ação definição.

Em contrapartida, e em contraste com as outras figuras de ação, esta é fortemente marcada no plano enunciativo, comportando o maior número de mecanismos de posicionamento enunciativo. Nessa medida, a responsabilidade e atorialidade estão investidas e transferidas sobre o próprio ato de “dizer o agir”, materializadas, sobretudo, por modalizações epistémicas, apreciativas, ou, ainda, deônticas externas à relação predicativa.

Quanto ao eixo de referência temporal, é sempre não limitado com predomínio da forma verbal de presente do indicativo sem valor deítico. Diferencia-se, no entanto, da ação canónica, pelo facto de as formas verbais de presente do indicativo não deítico se basearem, excecionalmente, nos processos (gestos/atos) relacionados com o agir em si, o que comporta, discursivamente, um número reduzido de relações predicativas fortes (sujeito + verbo). No entanto, mobiliza relações predicativas constituídas por construções impessoais, que configuram retomas anafóricas integrais do próprio signo que codifica o agir(-referente), sendo o seu valor objeto de redefinição.

Essas construções impessoais assumem-se com o verbo ser (ou ter), como marca de atribuição de propriedade, sobretudo na forma é (ou tem); e inserem-se em estruturas recorrentes em que é é precedido de um sintagma nominal ou adjetival (É + qualquer coisa):

Ex. 15 (TH5, S. 1): Esta candidatura é indissociável de um colectivo que a impulsiona e inseparável de uma memória viva, de uma longa história de resistência e de projecto;

e admite, ainda, estruturas com o verbo haver, na forma impessoal há, em que é precedido, também, de um sintagma nominal ou adjetival (Há + qualquer coisa):

Ex. 16 (TH5, S. 2 / S.3): Há uma memória partilhada e vivida por tantos homens e tantas mulheres (...). / Há uma longa marcha do sentido do intolerável.