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II. ASPETOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

4. As figuras de ação: a análise da representação da liderança

4.2. Figuras de ação e tipos de discurso

Com base nos pressupostos saussurianos e na transposição dos seus contornos mais significativos sobre o estatuto, o papel e os efeitos do signo numa teoria linguística, Ecaterina Bulea (2009, 2010b, 2016) enceta um conjunto de pesquisas empíricas baseadas no trabalho de enfermagem, com o objetivo de perceber o papel da linguagem na análise do agir e seus

efeitos na interpretação da atividade. As suas pesquisas consistiram, numa primeira fase, na recolha de um corpus constituído por textos documentos institucionais e entrevistas: os primeiros com o intuito de descreverem e prescreverem as tarefas de cuidado características do trabalho de enfermagem e, os segundos, comportando entrevistas às enfermeiras, antes e depois da realização do cuidado. Na fase seguinte, procedeu ao tratamento dos textos que consistiu, metodologicamente, na análise de conteúdo, de um lado; e, do outro, na análise das características linguísticas dos textos, visando, numa lógica descendente, os diferentes níveis da arquitetura textual.

Para o desenvolvimento dos seus trabalhos, Bulea (2010b: 10-11) enuncia três problemáticas referentes ao agir humano como objeto de análise:

A primeira diz respeito ao estatuto das dimensões praxiológicas das condutas humanas e sua relação com os processos aos quais se referem, e, ainda, a sua relação com os processos da dimensão gnosiológica (funcionamento de processos de pensamento).

A segunda questão, de viés metodológico, remete para as condições sob as quais é possível ter acesso ao agir humano, ou seja, o processo de conhecimento das propriedades do agir. Por outras palavras, refere-se às modalidades sob as quais esses processos praxiológicos se tornam acessíveis (aos atores/observadores), descritíveis e transmissíveis.

A terceira problemática relaciona-se com a dimensão formativa da análise do agir e suas potencialidades desenvolvimentais, ou seja, relaciona-se com as condições sob as quais a compreensão das propriedades desses processos pelas pessoas potencia o desenvolvimento.

No quadro da tese de Bulea, a acessibilidade ao agir é amplamente fundamentada no uso da linguagem, ou melhor, no papel, no estatuto e nos efeitos subjacentes à linguagem, assentando em duas particularidades: na dimensão praxiológica da linguagem e na compreensão da linguagem enquanto atividade dinâmica sob o efeito da qual se constroem as representações humanas do mundo. Nessa medida, a linguagem desempenha o papel, por um lado, “de meio de tomada de consciência, pela pessoa, das propriedades do seu agir – e assim de instrumento de desenvolvimento; e, por outro lado, de meio de transmissão aos

‘outros’ (...) dessas mesmas propriedades” (Bulea, 2010b: 24), antevendo, aqui, o carácter desenvolvimental da verbalização do agir.

Para compreender o papel que a linguagem assume nas tomadas de consciência e nos processos de desenvolvimento, Bulea aporta as suas reflexões em alguns pressupostos de Saussure (1995, 2004) que considera validados pelas teses de Vygotski ([1934]1997) e do

Interacionismo Social, nomeadamente: a dimensão sócio-histórica da linguagem e o estatuto integralmente psíquico das entidades que a compõem (os signos). De acordo com Bulea (2010b: 14), o estatuto dos signos evidencia que eles são “os produtos de uma combinação complexa de operações psíquicas elementares que cristalizam e estabilizam (momentaneamente) acordos sociais relativos à designação de entidades do mundo” e que, na esteira vygotskiana, a sua apropriação e interiorização desempenham um papel decisivo na constituição do pensamento consciente.

A partir destas questões, Bulea (2010b: 12) elabora uma tese que visa identificar, descrever e conceituar os processos específicos pelos quais os conhecimentos e as novas significações engendram as transformações e as reorganizações dos conhecimentos e das condutas humanas. Dessa forma, assume que na impossibilidade de aceder diretamente às propriedades do agir e suas conscientizações, constituem-se interpretações que se explicitam através da linguagem, manifestando-se esta, por sua vez, sob a forma de textos. E estes são entendidos como produtos de uma atividade (ou de um trabalho/profissão), implicando escolhas na utilização dos recursos linguísticos. O exame das características técnicas desse trabalho de linguagem em relação a uma atividade (ou profissão) permite identificar e conceituar os processos por intermédio dos quais os produtos das tomadas de consciência são assumidos/apropriados pelas pessoas e interiorizados com vista à reorganização dos sistemas de significação e das capacidades do agir.

Assim, na continuidade do pensamento saussuriano, Bulea (2010b: 15) assume que a atividade de linguagem coloca em funcionamento unidades-signos no quadro englobante dos textos, conferindo a estes um estatuto fundamental nas suas premissas, em particular a sua análise, tendo em conta três aspetos: a conceção de texto, as suas relações com as práticas humanas às quais se articulam, e a sua estruturação interna. Para a análise dos textos, Bulea aporta-se no quadro epistemológico e metodológico do Interacionismo Sociodiscursivo, em duas direções: na abordagem das condições de produção dos géneros de textos (i.e., a contextualização dos textos) e na abordagem da arquitetura interna dos textos, mais concretamente no que respeita à importância determinante atribuída aos tipos de discurso (i.e., a organização dos textos).

Das suas pesquisas e respetivo trabalho metodológico resultaram o que designou figuras de ação. Inicialmente designadas “registros de agir” (Bulea & Fristalon, 2004), as figuras construídas nos textos foram detalhadamente revistas e ampliadas originando,

posteriormente, a noção de figuras de ação (Bulea, 2010b: 16). Para a sua definição e caracterização, Bulea aponta a necessária noção de tipos de discurso.

A pluralidades dos tipos discursivos mobilizados no processo interpretativo constituem um modo de produção e de reorganização de significações atribuídas ao agir, participando de maneira constitutiva no processo de interpretação do agir. De acordo com Bulea (2010b: 15), os tipos discursivos são “configurações de unidades linguísticas interdependentes” e estabelecem, na sua composição e organização, relações, de um lado, com o conteúdo referencial e, de outro, com a situação de comunicação, cujo texto é o produto. Portanto, os tipos de discurso entram na composição de qualquer texto e estruturam as unidades linguísticas de posição inferior, pelo que os concebe como estruturas linguísticas

“intermediárias”. Nessa relação entre conceção e organização dos textos, a outra vertente do trabalho de Bulea (2010b) assenta na abordagem do papel que as dimensões linguísticas desempenham na representação das práticas, ou mais especificamente, na influência que a dimensão linguística dos tipos discursivos exerce nas modalidades de elaboração dessas representações. Assim, para compreender o funcionamento das figuras de ação, Bulea (2010b:

75) defende que os tipos de discurso participam de maneira “constitutiva e potencialmente autónoma” no processo de interpretação do agir pelas pessoas, mediatizando, no interior de um texto, a relação que o actante produtor mantém com o conteúdo mobilizado em relação ao agir.

Nesse seguimento, Bulea (2010b: 17) apresenta as figuras de ação como “produtos interpretativos” (que visam o agir(-referente)) organizados pelos tipos de discurso, resultantes da articulação/combinação entre (a análise dos) tipos discursivos (como formas de organização enunciativa mobilizadas nas produções linguísticas em geral) e (a análise d)o conteúdo temático da ordem do agir (mobilizado em textos particulares). Nessa interface entre o conteúdo temático e os tipos de discurso, Bulea (2010b: 17) acrescenta que as figuras de ação “não são nem unilateralmente dependentes das escolhas temáticas, nem unilateralmente dependentes das escolhas discursivas, mas o teor e o tom de sua dimensão interpretativa são, contudo, parcialmente restritos aos (ou dependentes dos) recursos linguísticos mobilizados”.

Constituem, nessa medida, um “ponto de vista global”, a partir do qual se constroem as representações de uma tarefa ou atividade no trabalho discursivo, sendo que as escolhas de

“pontos de vista” traduzem escolhas de carácter enunciativo, efetivadas pelas correspondentes figuras: realização linguística essa que implica o domínio dos processos linguísticos que enformam os tipos de discurso(Bulea, 2010b: 18-19). As figuras de ação são, portanto, no

entendimento de Bulea (2010b: 75), entidades semióticas amplas que englobam e reconfiguram as unidades-signos que retornam ao agir, significantes em si mesmas. Não configuram unidades linguísticas como os tipos discursivos, mas são organizados por estes, pelo que se assumem como configurações discursivas. No entanto, não funcionando ao nível micro das significações, também não se situam ao nível do texto (macro), sendo, no entanto, mobilizados nesses. Tal significa que as figuras de ação são entidades de significação supraordenadas em relação às unidades palavras e infraordenadas em relação aos textos, combinando análise temática e análise dos tipos discursivos:

A construção das figuras de ação parece assim reproduzir a tentativa de compreender o processo praxiológico (ou o agir), em um nível que é infraordenado em relação ao texto, supraordenado em relação aos signos, e em virtude das propriedades mesmas dos tipos de discurso.

Bulea, 2010b: 153