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Configurações discursivas das figuras de ação

II. ASPETOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

4. As figuras de ação: a análise da representação da liderança

4.3. Configurações discursivas das figuras de ação

entendimento de Bulea (2010b: 75), entidades semióticas amplas que englobam e reconfiguram as unidades-signos que retornam ao agir, significantes em si mesmas. Não configuram unidades linguísticas como os tipos discursivos, mas são organizados por estes, pelo que se assumem como configurações discursivas. No entanto, não funcionando ao nível micro das significações, também não se situam ao nível do texto (macro), sendo, no entanto, mobilizados nesses. Tal significa que as figuras de ação são entidades de significação supraordenadas em relação às unidades palavras e infraordenadas em relação aos textos, combinando análise temática e análise dos tipos discursivos:

A construção das figuras de ação parece assim reproduzir a tentativa de compreender o processo praxiológico (ou o agir), em um nível que é infraordenado em relação ao texto, supraordenado em relação aos signos, e em virtude das propriedades mesmas dos tipos de discurso.

Bulea, 2010b: 153

estrutura geral, a organização discursiva e enunciativa (tipos discursivos), o eixo de referência temporal (e eixos locais), as localizações (repérages) e formas verbais, a agentividade, as modalizações e outros mecanismos discursivos.

Considerando o agir-referente trabalho, os resultados dos trabalhos de análise de Bulea (2010b) permitiram identificar cinco configurações interpretativas (transversais e recorrentes), a saber: ação ocorrência, ação acontecimento passado, ação experiência, ação canónica e ação definição7.

A seguir, com base na proposta de Bulea (2010b: 123-148), identifico as características das cinco figuras de ação:

a) Ação ocorrência

Esta figura de ação constitui uma compreensão do agir-referente como contíguo à sua textualização, ou seja, a sua organização linguística caracteriza-se por um forte grau de contextualização. A construção dessa contextualização mobiliza os elementos disponíveis no ambiente imediato do actante (espaço/tempo), descrevendo uma ação do agir-referente próxima à sua transposição por via da linguagem (relação de proximidade com a situação de interação).

Estruturalmente, a figura de ação ocorrência emerge sob a forma de ajuntamento de elementos heterogéneos relacionados com o agir, ou seja, depende de uma apresentação desorganizada e desordenada de aspetos diversos. Apesar dessa desordem, os elementos do agir são duplamente situados: de um lado são compreendidos de forma correlativa por intermédio de relacionamentos sucessivos, sendo por isso mutuamente situados; de outro lado, e simultaneamente, são situados em relação ao contexto de enunciação ou à situação de produção.

7 Mais tarde, a partir das figuras de ação, Ecaterina Bulea, Eulália Leurquin e Fábio Carneiro (2013) desenvolvem um trabalho sobre o agir do professor e as figuras de ação, fazendo a distinção, ainda, entre figuras de ação interna e figuras de ação externa. Segundo os autores (2013: 116-117), as figuras de ação interna reportam às representações textualizadas das partes ou das dimensões do agir assumido pela fonte dessas representações (o próprio agir); e as figuras de ação externa dizem respeito às representações textualizadas das partes ou das dimensões do agir assumido por outros protagonistas (coactantes implicados no agir-referente, quer pela presença física-temporal, quer pela função social que ocupam).

No que respeita à organização discursiva e enunciativa, esta figura surge quase exclusivamente em segmentos de discurso interativo, admitindo múltiplas ocorrências de discurso relatado (discursos indiretos inseridos nos segmentos interativos).

Por depender do discurso interativo, o conteúdo temático mobilizado é organizado em relação direta com os parâmetros físicos e actanciais da situação de interação, permanecendo o eixo de referência temporal o dessa mesma situação, e delimitado. Em referência a este eixo, observa-se um número significativo de localizações (repérages) efetivadas por formas verbais específicas, pontuando localizações: i) de anterioridade – mobilização de formas do passado, sobretudo, o Pretérito Perfeito (por vezes com valor de presente concluído, compreendendo o resultado atual do ato codificado pelo verbo) e o Imperfeito; ii) de posterioridade – mobilização de formas do futuro, nomeadamente Futuro Composto e Futuro Perifrástico e, ainda, Futuro Simples; iii) de simultaneidade – mobilização da forma do Presente do Indicativo (por vezes com valor de referência local), marcando a inclusão dos processos codificados pelo verbo na duração representada da interação em curso. Estas três localizações marcam (e materializam) a temporalidade do ato de produção e podem surgir alternadas. Essa alternância pode, ainda, ocorrer com frequência e rapidez entre elas.

Para além das localizações, constata-se a criação de eixos de referência locais, sendo eles: i) (maioritariamente) delimitados - retomam o momento da realização da tarefa, pelo que os processos codificados pelos verbos são situados no interior desse eixo, ou seja, indicam a localização de “inclusão” desses processos na duração representada por esse eixo local, sendo compreendidos sob a forma de Presente com valor psicológico; ou ii) ilimitados ou sem limites (apesar de raros nesta figura de ação) - os processos são compreendidos sob a forma de Presente Genérico, constituindo-se objeto de uma localização neutra (associam-se aos conhecimentos teóricos do actante).

Do ponto de vista das marcas de agentividade, na ação ocorrência atesta-se uma implicação forte do agente nos atos constitutivos do agir, marcada pelo deítico pessoal eu.

Assim, o actante é quase exclusivamente identificado e designado na primeira pessoa do singular, por intermédio de pronomes (pessoais e possessivos), marcando a equivalência entre a instância emissora do texto e o autor dos processos evocados, e assinalando a sua atestada e forte implicação (estatuto de ator). É possível, ainda, a ocorrência do pronome nós, que retoma, geralmente, complexos identificáveis, a partir do cotexto ou do contexto,

onde o actante se insere como parte de um grupo/coletivo (por vezes, também, sob a forma de complexo genérico não identificável) e cujo funcionamento é potencialmente deítico.

A ação ocorrência caracteriza-se, ainda, por comportar um número significativo de relações predicativas indiretas (em que o actante é o sujeito e, portanto, acentuando o seu estatuto de ator e a sua implicação forte), materializadas sob a forma de modalizações pragmáticas. Comporta, igualmente, inúmeras modalizações externas às relações predicativas, sobretudo modalizações deônticas (é preciso) e, ainda, epistémicas (talvez, é verdade que, é certo, entre outras), realizadas por via de formas impessoais.

b) Ação acontecimento passado

Esta figura de ação propõe uma compreensão retrospetiva do agir. O agir é contextualizado sob o ângulo da singularidade, no entanto situando-se numa relação de não contiguidade com a situação de produção de linguagem. Trata-se da delimitação e extração do passado de uma unidade praxiológica (ilustrativa do agir, face ao carácter circunstancial do seu conteúdo), sob a feição de uma “história”, que evidencia a experiência geral ou a prática ordinária do actante, e cuja contextualização existe, porém fragmentária e seletiva (Bulea, 2010b: 132).

No que concerne à organização discursiva e enunciativa, esta figura aparece em segmentos de relato interativo. Por tal, o conteúdo temático mobilizado é explicitamente distanciado dos parâmetros temporais da situação de interação, marcado no início do segmento por expressões temporais. Ou seja, os processos evocados são compreendidos em referência a um eixo temporal situado a montante (antes) da situação de interação.

Embora se verifique esse distanciamento entre os parâmetros temporais e os parâmetros da situação de interação, no que remete à agentividade, o actante permanece atestadamente implicado no evento narrado, sendo essa implicação marcada pela presença massiva do pronome eu, tal como na figura de ação ocorrência. No entanto, nesta figura, o seu funcionamento difere daquela na medida em que o destinatário do agir é designado de forma genérica, assumindo a função de fonte de série isotópica, assegurada pelo pronome pessoal de terceira pessoa como ligação anafórica.

Relativamente à coesão verbal (localizações e formas verbais), esta é assegurada por mecanismos que advêm especificamente do relato: a localização dos processos codificados pelos verbos em relação ao eixo de referência temporal é interna, sendo as mais recorrentes as localizações isocrónicas. Estas localizações reproduzem a ordem dos factos narrados e são, por um lado, efetivadas pela presença de organizadores temporais/expressões temporais (que ocorrem, por norma, no início do segmento) e, por outro lado, pelas formas verbais de Pretérito Perfeito e Imperfeito. Estas formas verbais, para além da localização, asseguram uma função de contraste, assinalando a oposição entre os processos postos num primeiro plano (anterior) e codificados pelo Pretérito Perfeito (a atorialidade coincide com os processos compreendidos); e os processos postos em segundo plano (passado) e codificados no Imperfeito (relativos a outras variáveis do contexto que não o actante – a situação, outros protagonistas, entre outros).

A organização linguística da ação acontecimento passado é, ainda, marcada por outros mecanismos discursivos e característicos do relato interativo em geral, para além das i) localizações isocrónicas, que constroem a figura com base na compreensão da agentividade e dos atos constitutivos do agir (função de contraste assegurada pelas formas verbais), nomeadamente: ii) a ausência de localizações proactivas (apresentação dos processos como posteriores ao processo narrado); e iii) a sobreposição entre propriedades discursivas e recursos linguísticos próprios do relato interativo, de um lado e, do outro, a estruturação dos factos narrados relevantes do esquema narrativo prototípico. Esta última característica confere à ação acontecimento passado uma estruturação simultaneamente contrastiva e cronológica, evidenciada pelos traços da oralidade do relato e o esquema narrativo prototípico, sustentando o seu estatuto de “evento” e adquirindo um carácter individual por refletir a experiência passada comum do actante.

c) Ação experiência

A ação experiência configura uma compreensão do agir-referente pela cristalização pessoal de múltiplas ocorrências (do agir) vividas. Corresponde a uma espécie de balanço da experiência singular do actante, a partir da sedimentação, singularização e des-contextualização de repetidas práticas de uma mesma tarefa em situações diversas. Apesar de descontextualizada (de um contexto singular) e abstrata, ela é recontextualizável, sendo

passível de ser adaptada pelo actante, pois é construída e assumida por ele e aplicável a cada contexto particular. Assim, a ação experiência procede da identificação, apreensão e entrecruzamento de duas ordens de traços ligados ao agir: os constituintes estáveis e incontornáveis do agir com forte recorrência; e as características próprias aos actantes, de seus modos de fazer que transgridem a singularidade das situações.

Do ponto de vista discursivo e enunciativo, a figura de ação experiência organiza-se, sobretudo, sob a forma de discurso interativo. Embora partilhe esta característica com a figura de ação ocorrência, distingue-se desta, essencialmente, pelo eixo de referência temporal: contrariamente à figura de ação ocorrência, a figura de ação experiência estrutura-se sob um único eixo, homogéneo (ausência de eixos locais) e não delimitado. Por tal, é marcado por advérbios generalizantes e com valor de reiteração (sempre, normalmente, entre outros) e por sintagmas preposicionais e nominais com esse valor genérico e reiterativo (de todo modo, de qualquer forma, entre outros).

Dessa forma, e no que concerne às localizações, não comporta nenhuma localização, ou melhor, as localizações são neutras, realizadas pelas formas de Presente Genérico e pela presença de organizadores temporais (justaposição cronológica de processos). Portanto, as marcas características desta figura são neutras, com ausência de marcas (localizações) proactivas ou retroativas, pelo que a organização discursiva desta figura procede por justaposição de processos, que reproduzem, tendencialmente, a ordem cronológica da atividade.

Relativamente à sua estruturação, essa compreensão cronológica comporta uma abundância de marcas de variabilidade, o que lhe confere uma estruturação temporal elástica. Essas marcas de variação assinalam os pontos de bifurcação do agir (ou que reorientam o curso do agir), destacando-se: i) as estruturas em si (se + qualquer coisa), ii) as estruturas verbais (repetição de um elemento verbal nuclear – ver + x, ver + y); e iii) a alternância das formas afirmativa e negativa (fazer ou não fazer, entre outros).

No que respeita ao aspeto agentivo, observa-se a coexistência e cofuncionamento de múltiplas formas pronominais (eu, tu, nós, pronome indefinido se, entre outras), com destaque para a forma tu com valor genérico. Tal atesta a dissociação entre o autor do processo evocado e o autor da atividade de linguagem, traduzindo o distanciamento do actante em relação ao agir e, portanto, com implicação mais fraca. O actante assume, dessa

forma, um duplo estatuto: de instância de auto-regulador de bifurcações do agir e de lugar de capitalização e dessingularização das experiências vividas.

Relativamente às modalizações, são mais frequentes que na ação ocorrência, especificamente no que concerne às modalizações epistémicas e deônticas, estas últimas, sobretudo, externas à relação predicativa (é preciso). Ainda sobre as modalizações, verifica-se a preverifica-sença de modalizações apreciativas e uma diminuição substancial de modalizações pragmáticas, contrariamente ao que se sucede na figura de ação ocorrência.

d) Ação canónica

Na figura de ação canónica o agir é captado e compreendido sob a forma de construção teórica, ou seja, a ação do ponto de vista da sua construção teórica, fazendo abstração do contexto em que se desenvolve e das propriedades do actante que a efetua. É uma forma de construção teórica, prototípica e neutra, com uma estrutura cronológica (prototípica) do curso do agir e/ou das normas em vigor que o regem. Independentemente do ângulo de conduta adotado, propõe uma lógica da tarefa que se apresenta como a-contextualizada, com validade geral e cuja responsabilidade é imputada a uma instância normativa/institucional exterior ao actante.

Do ponto de vista enunciativo e discursivo, a ação canónica organiza-se exclusivamente sob o eixo do Expor, quer em segmentos de discurso teórico, quer mesclando-se este com o discurso interativo, resultando num discurso misto teórico-interativo.

Assim, em relação ao eixo de referência temporal, esta figura de ação caracteriza-se pela evocação genérica dos factos, que não se relacionam nem com a situação de interação, nem com qualquer referência de origem temporal, pelo que o eixo temporal é não delimitado e não marcado. Nessa medida, não comporta nenhuma localização, sendo que os processos são compreendidos por formas verbais de Presente Genérico, traduzindo uma organização cronológica do processo. Essa ordem cronológica, contrária à da figura de ação experiência, não comporta marcas de variação nem admite bifurcações possíveis no curso de agir: a sua estruturação geral é expressa por intermédio de uma organização frásica recorrente, invariável, correspondente à estrutura canónica sujeito – verbo – complemento e,

ainda, pode comportar estruturas argumentativas efetivadas por organizadores lógico-argumentativos (por isso, pois, então, entre outros).

No plano agentivo, observa-se a presença da forma pronominal se, que não remete aos participantes da interação em curso e que marca uma instância agentiva coletiva e neutra, adquirindo o estatuto da noção de agente.

Decorrente da atorialidade neutralizada, o seu estatuto de agente é marcado pela ausência de relações predicativas indiretas sendo as modalizações observáveis, nesta figura, quase exclusivamente externas às relações predicativas e assinalando modalizações deônticas (é preciso).

e) Ação definição

A figura de ação definição caracteriza-se pela apreensão do agir enquanto objeto de reflexão, na qualidade de suporte e de alvo de uma nova (re)definição por parte do actante.

O agir é concebido como um “fenómeno no mundo” (Bulea, 2010b: 144-145), originando uma atividade de investigação e de posicionamento que consiste, por um lado, na captação das características e do estatuto do agir e, por outro, na observação das atitudes socioprofissionais que se manifestam sobre si. Tal significa que, ao contrário das outras figuras de ação, a ação definição desprende-se de traços discriminatórios, ou seja, é descontextualizada, na medida em que a sua construção não mobiliza elementos disponíveis no contexto imediato do actante. Por outras palavras, não tematiza os actantes, nem a organização cronológica do agir, nem os componentes praxiológicos, mas encerra em si traços que asseguram a identidade do agir, circunscrevendo-o e delimitando-o face a outras formas de agir/atividade.

Na dimensão discursiva e enunciativa, à semelhança da ação canónica, insere-se em segmentos organizados sob a modalidade do Expor, que relevam do discurso teórico (sobretudo) e, possivelmente, do discurso misto teórico-interativo.

Em relação ao eixo de referência temporal, é sempre não limitado com predomínio da forma verbal de Presente Genérico. Diferencia-se, no entanto, da ação canónica, pelo facto de as formas verbais de Presente Genérico se basearem, excecionalmente, nos processos (e nos gestos e nos atos) relacionados com o agir em si, o que comporta, discursivamente, um número reduzido de relações predicativas fortes (sujeito + verbo) e, em

contrapartida, mobiliza relações predicativas constituídas por construções impessoais. Essas construções impessoais assumem-se com o verbo ser (ou ter), nomeadamente na forma é (ou tem), e inserem-se em estruturas recorrentes em que é é precedido de um sintagma nominal ou adjetival (É/Há + qualquer coisa). Constituem-se, de um lado, com o verbo ser enquanto verbo “fraco”, isto é, como marca de atribuição de propriedade; e, de outro lado, com o verbo ter com valor de identificador-introdutor de um “sujeito real” (Bulea, 2016:

205). A ocorrência das construções impessoais configuram retomas anafóricas integrais do próprio signo que codifica o agir(-referente), sendo o seu valor, no discurso, por intermédio daquelas, objeto de reatualização, recomposição e reorientação ocorrencial.

Quanto à agentividade, é quase nula, situação essa exclusiva da figura de ação definição. Em contrapartida, e em contraste com as outras figuras de ação, esta é fortemente marcada no plano enunciativo, comportando o maior número de mecanismos de posicionamento enunciativo. Nessa medida, a responsabilidade e atorialidade (do actante) estão investidas e transferidas sobre o próprio ato de “dizer o agir”, materializadas, sobretudo, por modalizações epistémicas (é verdade que, é possível que, verdadeiramente, talvez, entre outras), apreciativas e/ou, ainda, deônticas (é necessário, entre outros), externas à relação predicativa.

De modo esquematizado, coloco em perspetiva, na figura que se segue, as cinco figuras de ação e suas respetivas características diferenciais:

Figura 17. Características diferenciais das figuras de ação [adaptada de Bulea, 2009: 150; 2010b: 123-148]