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AS FORÇAS SOBRENATURAIS

No documento No Começo Eram os Deuses - Jean Bottéro.pdf (páginas 103-109)

A Magia e a Medicina reinam na Babilônia

AS FORÇAS SOBRENATURAIS

Assim foram elaboradas — da mesma maneira que nos diversos setores da técnica, inclusive na medicina empírica — inúmeras receitas apropriadas, imaginava-se, para expulsar os "demônios", defender-se de suas agressões, afastar os males por eles inoculados em seus alvos. É a esse nível da luta contra o mal, no qual os atos ou as palavras eficazes das vítimas opunham-se diretamente à atividade caprichosa das "forças sobrenaturais", que deveríamos reservar o termo Magia, invocado a esmo e com demasiada freqüência, como tantos outros termos.

Oficialmente, contudo, a Magia praticamente não é atestada em nosso imenso dossiê: em uma época que não temos condições de determinar — o mais tardar, ao que parece, desde o alto terceiro milênio a.C. —, ela fora assumida com uma atitude completamente diferente, abertamente religiosa e "teocêntrica". Por um lado, e talvez em conformidade com o movimento de devoção que produziu no país uma primeira sistematização do panteão, a dominação dos deuses estendeu- se ao Universo inteiro; e, no mesmo processo, ao perderem sua liberdade primeira de movimento, os "demônios" passaram a estar sob a dependência deles. Por outro lado, a partir de uma analogia feita com os soberanos daqui

debaixo, imputou-se aos de Em-cima a responsabilidade por todas as obrigações e proibições que constrangem os homens: religiosas, sociais, administrativas, jurídicas e políticas. Toda infração em relação a uma norma qualquer — "interditos" imemoriais; imperativos dos costumes; prescrições implícitas do direito ou explícitas das autoridades — tornava-se ipso facto uma ofensa ao império dos deuses, uma "falta" contra eles, um "pecado"; e, assim como aqui embaixo os soberanos corrigem tudo o que desafia sua autoridade, cabia aos deuses, por meio de castigos convenientes, reprimir tais desordens. Esses castigos eram os males e os infortúnios da existência, e não eram mais infligidos pelos "demônios", como na visão "mágica" das coisas, de acordo com sua fantasia, mas desde então sob a ordem dos deuses, dos quais, no domínio da sanção, eles haviam se tornado os executores. Assim, "mal de sofrimento", em geral, e doença, em particular, integrados ao sistema religioso do Universo, haviam ali encontrado sua justificativa, sua explicação, sua razão última de ser. E também seu antídoto, pois a técnica contra as "forças ruins" fora conservada, materialmente intocada, da Magia primeira: sempre feita das mesmas palavras e dos mesmos gestos — ritos orais e manuais, que antes agiam imediatamente sobre esses "demônios" hostis, mas que foram desde então incorporados ao culto sagrado, cuja parte, digamos, "sacramentai" eles compunham. Por meio de cerimônias, atingindo às vezes as dimensões de liturgias solenes e das quais nos resta uma surpreendente quantidade de rituais, pedia-se aos soberanos do Mundo que mandassem que os "demônios" e as forças maléficas não se aproximassem de modo algum dos impetrantes, ou que se retirassem com os males com que os haviam arrasado. Isso se chama propriamente de Exorcismo.

Assim tinham-se outros meios para lutar contra as doenças: outra medicina, não mais específica, mas, por assim dizer, "universal", pois seu objeto era a expulsão do "mal de sofrimento" como tal. Ela não era mais fundada no empirismo, mas em um verdadeiro sistema de pensamento mitológico e, em suma, "teológico", de dependência dos deuses e de recurso ao seu poder. O especialista não era mais o asû, mas um personagem completamente diferente, um "clérigo": o exorcista. Em acádio, era chamado de âshipu, algo como "conjurador" (dos males) ou

"purificador" (das máculas que supostamente haviam provocado a irrupção dos ditos males).

"A DIMÎTU SUBIU DO INFERNO"

Para que se veja o exorcista oficiando e se perceba a que ponto seu comportamento diante da doença se distinguia em relação ao do asû-médico, enumero a seguir, extraídas de um diretório ad hoc, as instruções que lhe eram dadas, visando a que procedesse ritualmente à expulsão de uma "doença" cujo nome (dimîtu) não nos diz mais nada e que, aliás, na nebulosa e imprecisa nosologia da época, parece representar toda uma família de afecções, mais do que um único mal:

1. Apresentação da doença e evocação de suas origens: "A dimitu subiu do Inferno (...) e os 'demônios' que a traziam, encontrando este paciente abandonado por seu deus-protetor, que ele havia ofendido, envolveram-no com ela como com um manto!"

2. Descrição do estado miserável em que se encontra o doente, com vistas a despertar a piedade dos deuses: "Seu corpo está infectado; seus braços e suas pernas estão paralisados (...); seu peito se esgota em ataques de tosse, sua boca está cheia de muco, e ei-lo mudo, deprimido e prostrado!"

3. A origem sobrenatural do remédio é destacada, ao mesmo tempo para garantir sua eficácia e para sugerir que, em sua aplicação, o oficiante aja apenas em nome dos grão-mestres divinos do Exorcismo: Ea e Marduk.

Quando o viu naquele estado, Marduk foi procurar seu pai, Ea, descreveu para ele as condições do doente e disse: "Ignoro o que esse homem possa ter feito para encontrar-se assim afligido, e não sei como curá- lo!" Ea respondeu ao filho: "Você sabe tudo! O que eu poderia ensinar-lhe, se você sabe tanto quanto eu?"

4. O tratamento, sob a forma de instruções de Ea a Marduk, de quem o exorcista vai então desempenhar o papel:

Eis, então, o que será preciso fazer para curá-lo: Você pegará sete pães de farinha grosseira (?), reunindo-os com um fio de bronze. Depois esfregará o homem com eles, e fará com que ele cuspa sobre os restos que cairão, pronunciando diante dele uma "Fórmula do Eridu" (conjuração ou oração especial, reputada por sua eficácia), [tudo isso] depois de tê-lo levado para a estepe, em um local afastado, ao pé de uma acácia selvagem. Você confiará então o mal que se abateu sobre ele (sob a forma da massa de pão com a qual ele terá sido esfregado e das migalhas caídas no decorrer da fricção) a Nin- edinna (a deusa-patrona da estepe), a fim de que Ninkilim, o deus-patrono dos pequenos roedores selvagens (que habitam a mesma estepe), faça com que estes peguem a doença (dando-lhes de comer os restos em questão).

5. Rito oral, sob a forma de invocação terminal:

Que a divina curadora Gula, capaz de devolver a vida aos moribundos, o restabeleça por meio do toque de sua mão! E você, compassivo Marduk, para que ele fique completamente fora de perigo, pronunciará a Fórmula que o libertará de sua aflição!"

Não se trata, portanto, de um procedimento deixado à iniciativa do operador, como no caso do médico de Asaradon, mas de um verdadeiro ritual previamente fixado e ne varietur, no qual cabe ao exorcista apenas executar o cerimonial auto-eficaz. De resto, o âshipu se apaga inteiramente diante dos deuses que representa: como se vê na fórmula final (5), são eles os verdadeiros curadores! O mal é aqui considerado uma realidade material, trazida de fora (do "Inferno") pelos "demônios" e depositada no corpo do doente, que se encontrava indefeso e exposto a tal perigo por seu deus, que ele havia ofendido e que o entregava, assim, aos executores de sua vingança (1). Para expulsar a doença intrusa, o tratamento (4-5), cuja receita é atribuída a Ea, mestre supremo do Exorcismo e

inventor de todas as técnicas, deve ser aplicado, na pessoa do exorcista, pelo grande Marduk, filho de Ea (3); ele se funda na "lei" do contato e da transferência: pãezinhos (sobre os quais se lançarão infalivelmente os murídeos da estepe), no número "sagrado" de sete e reunidos em uma massa, são esfregados no corpo do paciente para "pegar" seu mal por meio desse contato íntimo. De acordo com uma outra "lei", também fundamental em Exorcismo e segundo a qual a repetição de palavras e atos reforça sua eficácia, o doente, ao "cuspir" nas migalhas caídas durante a esfrega e cuidadosamente recolhidas, transmite a elas a doença de que padece. A operação se faz fora do espaço socializado, em plena estepe, para que o mal seja mais seguramente afastado, não apenas do paciente, mas dos outros homens; ela ocorre junto a um arbusto que só cresce no deserto e ao qual era atribuída — ignoramos por que razão — uma virtude "purificadora". Abandona-se ali o pão, desde então portador do malefício; e os pequenos animais selvagens que virão devorá-lo, incitados pelas divindades locais, incorporarão à sua própria substância, levando-a com eles, a doença "retirada" do paciente. É esse o viés por meio do qual os deuses, invocados ao final (5), devem "curar" o doente.

Resta-nos, assim, uma prodigiosa quantidade de "exorcismos" contra todos os males e infortúnios que podiam so- brevir aos homens, em sua situação, seu coração, seu espírito e seu corpo. Aos nossos olhos, apenas as duas últimas categorias são da alçada da terapêutica exorcística, mas somente o objeto imediato delas as distingue das outras. Todos esses procedimentos são construídos no mesmo esquema essencial; variam apenas, adaptados em cada caso aos objetivos e às circunstâncias particulares, os ritos manuais e o conteúdo das "orações" conjuntas, as "leis" a que se recorre, assim como as drogas utilizadas. Estas são, como na medicina, tomadas das diversas ordens da natureza, mas muito menos diversificadas, em razão de seu reduzido número de "poderes" exploráveis (purificação, expulsão, evacuação...). Diferentemente dos "remédios" médicos, essas drogas só tinham, com os males que deviam expulsar, uma relação "mística" e imaginária — como a acácia selvagem citada! Não eram tomadas como específicas, destinadas a lutar, por sua própria virtude, contra as

doenças, mas apenas como suportes e reforços para as orações dirigidas aos deuses a fim de levá-los a agir.

Na medicina exorcística, somente os deuses agiam: ao exorcista cabia apenas implorar seu socorro por meio da aplicação de um ritual tradicional e considerado capaz de influenciá-los mais seguramente. Articulada em ficções, mitos e "forças" incontroláveis, tratava-se de uma terapêutica irracional. Na medicina empírica, o operador era o médico-asû em pessoa, que examinava o doente e decidia hic et nunc o tratamento a ser aplicado, que ele preparava com as próprias mãos, escolhendo as manipulações e os "simples" por sua virtude natural, que contribuía para frear ou deter a ação ou o progresso do mal. Causas e efeitos se encontravam proporcionados e eram da mesma ordem: tratava-se de uma terapêutica racional.

As origens dos dois métodos se perdem nas trevas da pré-história. Irredutíveis, porém, um ao outro, em razão de sua própria constituição e de seu espírito, seria imponderado querer a qualquer custo que o primeiro houvesse saído do segundo, ou vice-versa, ou que um representasse um progresso ou uma regressão do outro. De fato, sobreviveram lado a lado durante toda a história do país: do início ao fim, vemos empenharem-se juntos e com freqüência, à cabeceira dos mesmos pacientes, exorcistas e médicos.

Consideremos o enfermiço Asaradon, por exemplo, que vimos confiar-se a seu arquiatro1 Urad-Nanâ: ele recorria ao mesmo tempo aos exorcistas. De um deles, chamado Marduk-shâkin-shumi, restam-nos cerca de trinta respostas às consultas do rei. Segue-se uma delas, contemporânea da carta de Urad-Nanâ e aparentemente relativa à mesma crise. Pode-se apreciar a diferença de tom e de ótica.

Boa saúde ao Monsenhor Rei! E que os deuses Nabû e Marduk o abençoem! Monsenhor informou-me então que, nos braços e nas pernas, está sem forças, e incapaz até mesmo de abrir os olhos, tamanhos são seu mal e seu abatimento. E o efeito da febre, que permanece agarrada ao corpo. Não é, porém, nada de grave: os deuses Assur, Shamash, Nabû e Marduk proverão sua cura..., sua

doença o deixará, e tudo ficará bem! Na verdade, basta esperar; e o Rei, com seu séquito, poderá comer tudo o que quiser!

Para além desse belo otimismo, deve-se ouvir que Marduk-shâkin-shumi terá feito, nesse entretempo, o necessário — rituais e exorcismos — para obter o favor dos deuses relativamente a seu nobre paciente, sem que este e seus familiares corressem o risco de indispô-los ao romper um interdito alimentar qualquer. Médico e exorcista tratavam, portanto, simultaneamente, a mesma doença e o mesmo paciente, cada um de seu lado e com seus métodos.

No documento No Começo Eram os Deuses - Jean Bottéro.pdf (páginas 103-109)