• Nenhum resultado encontrado

TENDÊNCIA AO TALIÃO

O "Código de Hamurábi"

TENDÊNCIA AO TALIÃO

Hamurábi queria, com seu "Código", e ele o repete alto e bom som, ensinar os reis e juizes vindouros a julgar e a decidir como ele, para assegurar ao futuro, no país, a mesma "boa conduta", e seus resultados benéficos. Seu "Código" não é, portanto, um conjunto completo das "leis" em vigor na Mesopotâmia antiga, nem mesmo no tempo de seu autor: é um florilégio de jurisprudência. E o que acabamos de perceber quanto a ele pode ser da mesma forma depreendido dos

outros "Códigos", únicas fontes formais conhecidas do "direito" nesse país que permaneceu obstinadamente fiel — a despeito do uso tão generoso que não deixou de fazer de sua escrita — ao direito consuetudinário e não escrito. (...) No "Código de Hamurábi", para nos atermos a essa obra-prima exemplar, se um certo número de "artigos" tem por objetivo apenas resolver dificuldades mais ou menos freqüentes da vida em comum — tal como aqueles que regulamentam a única forma de divórcio então admitida, o repúdio por parte do marido, ou as relações entre um negociante e seus empregados —, outros levam à condenação a penas. Às vezes infamantes, como o banimento, acima citado, do pai incestuoso. Bem mais freqüentemente, corporais ou aflitivas.

Algumas dessas penas não põem em perigo a vida do réu, o que permite supor um grau menor de criminalidade. Deve-se chicotear, raspando-lhe a cabeça pela metade para expor à derrisão pública, o caluniador de uma sacerdotisa (127); e quem ultrajou um homem de condição superior à sua deve também ser chicoteado em público (202), no mesmo intuito.

As coisas se agravam com a mutilação: corta-se a língua do adotado que renegou o pai adotivo (192); a orelha do escravo que esbofeteou um homem de condição (205) ou que se revoltou contra seu senhor (282). Corta-se a mão do filho que bateu no pai (195); a do médico que, por imperícia, causou a morte do homem de condição de que tratava, e, se ele apenas vazou-lhe um olho, vaza-se o seu também (128), assim como o do "barbeiro" que, ao raspar o tufo de cabelos que marcava um escravo, favoreceu sua fuga (226). Corta-se um seio da ama que deixou que seu bebê morresse (194). Além da tendência ao talião segundo a "variabilidade" didática dos casos, explicada acima, pode-se ressaltar aqui uma modulação da pena em função do estado social da vítima. Se se tratava de um homem de condição, desencadeava-se a maior severidade: a pena corporal; se era um simples súdito, ou um escravo, cedia-se a uma compensação pecuniária graduada.

Em grande número de casos — o que nos permite estimar como a justiça da época era extremamente severa —, o crime era considerado grave o bastante para que seu autor devesse ser privado da vida. Normalmente, essa pena de morte é marcada por um verbo atípico, que significa essencialmente "matar", sem que se

precise a modalidade da morte: nós diríamos "executar", sem mais. Assim são castigados os autores de falsos testemunhos em um caso capital (13); os ladrões, não menos que os receptadores a eles assimilados, quando se trata de bens públicos ou "sagrados" (6, 8s), de crianças (14) e de escravos (15ss).

Até mesmo em matéria menos reservada, como, por exemplo, na forma brutal e violenta de roubo chamada "saque", o crime também era passível de morte (22); da mesma maneira que os problemas na construção de um edifício, implicando seu desabamento e a morte de seu proprietário e ocupante (229); e se a vítima era o filho deste, executava-se o filho do pedreiro responsável (idem). Mesma pena era aplicada para quem perturbasse gravemente o andamento do serviço público (26 e 33s) ou, ainda que indiretamente, favorecesse um complô (109); para quem houvesse violado uma noiva virgem (130) ou, por seus maus-tratos, houvesse provocado a morte de uma pessoa de condição, retida em sua casa, conforme os costumes da época, como garantia de uma dívida (116). Daquele que, com seus golpes, houvesse desencadeado um aborto levando à morte, matava-se a filha (209 s).

Deviam ser considerados ainda mais odiosos os crimes cujos autores estavam destinados a uma morte acompanhada de circunstâncias que a tornavam mais humilhante, aflitiva ou cruel. O autor de um roubo com arrombamento devia ser, após a execução, exposto no teatro de sua empreitada (21). Empalava-se a mulher que havia levado o amante a matar o marido (154). Afogava-se a taberneira que fraudava sua clientela (138); os adúlteros pegos em flagrante delito (129); a esposa que, depois de ter-se recusado ao marido, se revelava, após investigação, leviana e pouco séria (143); aquela que, com o esposo distante em viagem de negócios, e sem que ele a houvesse deixado em estado de necessidade, tomou outro homem (133); assim como o sogro que dormira com a nora (155). Destinava-se ao fogo quem quer que se houvesse aproveitado do incêndio de um imóvel para pilhá-lo (25); a sacerdotisa que freqüentava lugares de má reputação (110) e o filho que havia dormido com a mãe (157). [...]

Talvez, para terminar, não fosse inútil elevar um pouco o debate com uma observação inesperada, que vai contradizer essa máxima dos "Códigos" que é constituída pela escala da gravidade do crime e de sua punição.

Sabe-se que, em sua crença, os mesopotâmios se imaginavam submetidos a um duplo poder, sobreposto, de governo e, consequentemente, de justiça: o da ordem, digamos, "civil", representada pelo rei e por sua coorte de funcionários e de juizes — toda a justiça que foi tratada aqui é dessa alçada —; e a ordem dos deuses, organizados, da mesma maneira, em uma espécie de pirâmide, tendo o mais poderoso de todos em seu cume, o soberano dos deuses e do mundo, que lidera toda uma escala de divindades subalternas. Dessa Autoridade suprema emanava uma espécie de Legislação superior, à qual os mesopotâmios associavam a multidão infinita de todas as obrigações e proibições que esquadrinhavam a existência humana: não somente aquelas que eram da alçada do direito comum e dos tribunais, mas todas as outras, que concerniam especialmente ao ritual e ao exercício do culto, à ética pessoal e às relações de vida cotidiana com os outros, não menos que às vagas coerções tradicionais do folclore e da rotina, que são observadas um pouco em toda parte, "porque isso se faz", sem que ninguém se pergunte sobre a razão ou o valor.

Faltar a qualquer um daqueles deveres infinitos podia implicar, da parte dos deuses-juízes, um castigo: e eram precisamente o mal e o infortúnio que muitas vezes sobrevinham de forma súbita, incompreensíveis, que tal mitologia da Justiça divina se encarregava de explicar.

Ora, nesse plano, não havia hierarquia das faltas, dos delitos e dos crimes: tudo se valia, e temos textos religiosos que põem explicitamente em pé de igualdade, em relação aos deuses e à sua Justiça vindicativa, o fato de ter urinado ou vomitado em um curso d'água ou arrancado uma gleba de um campo e o fato de ter-se comportado mal durante uma cerimônia litúrgica, o de ter tagarelado inconvenientemente ou ter cometido alguma incongruência; e não apenas a fraude e o uso de moeda falsa, mas o roubo, o adultério e o homicídio, e até mesmo "o assassinato de um amigo a quem se acabava de jurar amizade"!

O fato é que todas essas infrações, estimadas em relação aos deuses, constituíam igualmente um "pecado", uma "revolta" contra eles, um "desprezo" de sua vontade. E, sobretudo, que, em tais circunstâncias, não se refletia a partir da falta para conceber a punição, mas partia-se desta última: neste caso, do infortúnio sobrevindo, que teria sido absurdo, inexplicável e um efeito da injustiça divina,

se não se houvesse deduzido, postulado sua causa: a saber, a vontade compensatória dos deuses justos e juizes. Se estou de repente mergulhado no infortúnio, seja ele grande ou pequeno, só pode ser, uma vez que os deuses sempre estão na origem de tudo e são necessariamente imparciais, por uma falta que devo ter cometido em relação a eles. Explicação mitológica e na contramão do raciocínio que comandava as "sentenças" da justiça humana, que partia do delito ou do crime cometido, e devidamente constatado, para concluir sobre uma pena modulada inevitável.

Aos olhos dos juizes daqui debaixo, os crimes e seus castigos constituíam uma categoria à parte; aos olhos dos deuses, tudo podia ser crime.

C

APÍTULO

IV