• Nenhum resultado encontrado

A Magia e a Medicina reinam na Babilônia

DUAS TERAPÊUTICAS

Ocorria que quando o tratamento de um se revelava infrutífero, o paciente se voltava para o outro. Eis o que prevê um tratado médico sobre a "febre":

Se o paciente é tomado, ao longo do tempo, por uma dor que não cede durante o dia, trata-se da intervenção de um fantasma (que é a causa). Quando o exorcista tiver feito seu ofício (sem resultados, entende-se), você (médico) massageará o doente com um unguento composto como se segue...

Naturalmente, o esculápio também conhecia fracassos, como deixa entrever outra tabuleta: "Apesar da intervenção do médico, houve recaída!" E até mesmo receitas haviam sido previstas para prevenir fiascos sucessivos: "Se o paciente, tomado por um fantasma, não tiver sido acalmado, nem pela operação do médico nem pela do exorcista, eis um remédio a ser aplicado..." Insucessos como esses de modo algum abalavam a confiança nessas duas terapêuticas e em seus representantes: o asû era falível, como todo mundo; ele podia — conforme vimos anteriormente na carta de Urad-Nanâ — hesitar, e até mesmo enganar-se. Quanto aos exorcismos, os deuses permaneciam livres para não ouvir as orações que lhes eram dirigidas, e conhecemos rituais de recurso: "Para os casos em que os deuses teriam recusado" intervir no pedido. Do lado dos pacientes, nem a coexistência nem os fracassos das duas terapêuticas eram escandalosos: elas se

completavam, e sempre se encontravam excelentes razões para explicar seus malogros. É por isso que a medicina empírica e a exorcística puderam, sem revoluções nem progressos intrínsecos apreciáveis, persistir lado a lado enquanto durou esta civilização.

Elas até mesmo se "contaminaram", com o tempo, de tal modo que nos ocorre encontrar algo do irracional exorcístico na medicina e algo do racional médico na prática dos âshipu.

Quando, por exemplo, o médico Urad-Nanâ, para reforçar a virtude sudorífera de sua loção, ou talvez para atenuar os efeitos demasiado violentos, manda para seu nobre cliente Asaradon "porta-amuletos para pendurar no pescoço", ele se comporta um pouco como um de nossos práticos que, tão cheio de devoção quanto seu doente, o aconselharia a usar uma medalha miraculosa. Essas bolsinhas, chamadas melu, eram na verdade da alçada dos exorcistas, que as preparavam com peles ritualmente tratadas e nelas encerravam, para reforçar "orações" e devotas manipulações, talismãs que supostamente afastavam as "forças maléficas".

Algumas doenças eram normalmente definidas, não por meio de termos próprios

(dimîtu, di'u...) ou de algum tipo de descrição, como "ferida com corrimento",

mas pelo recurso a nomes de divindades, demônios ou outros agentes sobrenaturais maléficos que as teriam provocado. Dizia-se: "Intervenção" ou "Apreensão" "do deus Shamash", "do deus Sîn", "da deusa Ishtar", "de um demônio-râbisu" ou "de um fantasma". Os exorcistas, na origem dessas ficções explicativas do estado do paciente, deviam tomá-las ao pé da letra, e certamente levavam-nas em conta para escolher o tratamento sobrenatural a ser aplicado. Os médicos tomaram deles por empréstimo, aqui e ali, essas denominações — como se terá notado na "Intervenção de fantasma" acima referida —, mas é possível que, no espírito deles, elas não tenham sido mais do que designações de estados mórbidos ou de síndromes mais ou menos bem definidas, eloqüentes para eles, mesmo que não nos digam mais nada. Por exemplo, a "Intervenção de fantasma" parece ter definido um estado patológico mais ligado ao que chamaríamos de "nervos" ou de "psiquismo" do que ao organismo propriamente dito.

Um artigo digno de que nos detenhamos um momento é o contágio. Em uma carta escrita por volta de 1.780 a.C., o rei de Mari, Zimri-Lim, em viagem, adverte nos seguintes termos sua esposa, que ficara no país:

Chegou a mim que a Senhora Nannamé, embora acometida de uma doença purulenta da pele (literalmente: "ferida com corrimento") freqüenta o Palácio e convive com inúmeras mulheres. Proíba rigorosamente qualquer uma de sentar- se em sua cadeira ou deitar-se em seu leito. Ela não deve mais ter contato com todas essas mulheres: pois a doença dela é contagiosa (literalmente: "se pega").

E em uma segunda carta, da qual só nos resta, infelizmente, um fragmento, o rei, falando aparentemente da mesma desafortunada, acrescenta que "como, por causa dela, inúmeras mulheres correm o risco de contrair a doença purulenta em questão, é preciso isolá-la num cômodo à parte..." Esses documentos, sem dúvida o mais antigo testemunho médico relativo ao contágio, nos mostram que, aos olhos dos médicos — como sugerem texto e contexto —, uma doença podia, por contato até mesmo indireto com o portador, passar do sujeito já atingido para outro. Em um país freqüentemente devastado, desde seus tempos mais remotos — sabemos disso —, por mortíferas epidemias, não era necessário um gênio sobre-humano para tirar essa lição. Ocorre, porém, que essas mesmas considerações reaparecem em contextos indubitavelmente exorcísticos. Por exemplo, um grande diretório chamado "Combustão" (Shurpu) contém um longo trecho em que se examina como pôde chegar ao paciente o "porta-desgraça" que se agarrou a ele, devastando seu espírito, seu coração ou sua situação. Talvez, diz o texto, entre outras conjecturas, sua desafortunada vítima o tenha "pego" por contato mediato com alguém que já estava sob a ação do mesmo agente maléfico, seja por "ter-se deitado em seu leito, sentado em sua cadeira, ter comido em sua tigela ou bebido em seu copo". Eis, portanto, o "contágio", fenômeno antes de tudo e essencialmente empírico, explorado pelo Exorcismo. Ainda sobre esse aspecto, houve contaminação muito antiga deste pela medicina. Último reflexo, mas não o menos significativo, dessa interpenetração das duas terapêuticas: entre as obras referentes às doenças, a mais notável — uma

verdadeira obra-prima se levarmos em conta que foi composta, o mais tardar, há cerca de 35 séculos — foi intitulada por seu editor Tratado de diagnósticos e de

prognósticos médicos. Distribuído em quarenta tabuletas, ele devia perfazer, em

seu interior, entre 5 e 6 mil linhas de texto: resta-nos a metade. Construído com base no mesmo modelo que os manuais de "Divinação dedutiva", seu propósito era reunir todos os "sinais" e "sintomas" mórbidos observados com o intuito de tirar conclusões relativas à natureza do mal que eles denunciavam e à sua evolu- ção. Retornaremos mais tarde às tabuletas I e II. Da terceira à décima quinta — a décima sexta se perdeu —, esses sintomas eram cuidadosamente classificados em uma ordem que passava em revista, da cabeça aos pés, todas as partes do corpo e levava sucessivamente em consideração, em relação a cada uma delas, as apresentações significativas do ponto de vista médico: coloração, volume, aspecto, temperatura, sensibilidade, presença de dados adventícios, atitudes gerais do doente em concomitância com esses sinais etc.

No documento No Começo Eram os Deuses - Jean Bottéro.pdf (páginas 109-112)