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OS DEUSES, IMPORTUNADOS PELOS HOMENS

A Epopéia de Gilgamesh

OS DEUSES, IMPORTUNADOS PELOS HOMENS

Não se trata de uma idéia no ar: Ea extrai dela um plano sutil e preciso, que expõe. O homem será feito de argila — matéria onipresente no país —, essa terra a que ele deverá retornar ao morrer. Contudo, para conservar algo daqueles que

precisará substituir e servir, seu gládio será umedecido com o sangue de um deus de segunda categoria, imolado para a circunstância. A assembléia aplaude um projeto tão vantajoso e sábio, e sua execução é confiada, sob as diretrizes de Ea, à "parteira dos deuses: a sábia Mami". Ela prepara o protótipo, que é em seguida realizado por várias deusas-mães em 14 exemplares: sete machos e sete fêmeas, os primeiros "pais" da humanidade.

A sábia Mami realiza seu ofício com perfeição e prospera tanto que, "uma vez que as populações se multiplicam ao extremo" e que "o rumor delas se torna semelhante ao mugido dos bois", os deuses se sentem incomodados em sua vida pacífica e despreocupada, a ponto de "perderem o sono". Para pôr fim a esse alarido, Enlil, impetuoso e chegado a soluções extremas, assume a responsabilidade de dizimar os homens por meio da Epidemia. Mas Ea, racional e consciente do risco de uma redução demasiadamente grande do número de homens, que seria catastrófica para os deuses, adverte Atrahasis, o Supersábio — alcunha de um alto personagem desse mundo, que tem sua confiança e goza de grande autoridade sobre a população humana. Ea mostra a ele como esta última poderá eliminar o flagelo: bastará que desvie todas as oferendas alimentares exclusivamente para Namtar, divindade da Epidemia assassina, e os deuses, reduzidos à fome, serão obrigados a interromper o mal. O que, de fato, ocorre. Entretanto, com o retorno à segurança, os homens retomam suas ocupações agitadas e tumultuosas, e impacientam uma vez mais Enlil que, dessa vez, lhes envia a Seca. Nova aparição de Ea, que aconselha Atrahasis a mandar reservar unicamente para Adad, senhor das precipitações atmosféricas, as provisões dos deuses. As lacunas do texto nos fazem suspeitar que Enlil não cede logo. No final, porém, tudo volta à ordem, e a humanidade refloresce.

Dos restos da tabuleta, deduz-se pelo menos que o rei dos deuses, decidido, no final das contas, a eliminar os homens, sempre tão ruidosos, vai apelar para uma catástrofe ainda mais radical: o Dilúvio. Desconfiado, toma todas as precauções para que seu funesto projeto não possa ser divulgado entre os humanos e que, assim, ninguém escape da morte. Ea, porém, sempre engenhoso, dá um jeito de anunciar obliquamente para Atrahasis o desastre iminente e o estratagema que preparou para salvá-lo — mas, dessa vez, apenas ele, com os seus.

Atrahasis deverá então "construir um barco com ponte dupla, solidamente aparelhado, devidamente calafetado, e robusto", cujo "plano é desenhado no solo" por Ea. Ele o abastecerá e, ao sinal de seu deus, aí "embarcará [suas] reservas, (seu) mobiliário, (suas) riquezas, (sua) esposa, (seus) próximos e aliados, (seus) mestres de obras (para preservar os segredos das técnicas adquiridas), assim como animais domésticos e selvagens"; depois disso, bastará que ele "entre no barco e feche a escotilha". A seqüência, lacunar no que nos restou do Poema, pode ser facilmente suprida pelo relato de A epopéia de Gilgamesh, posterior em vários séculos, mas amplamente inspirada nele.

Tendo, pois, encontrado o meio de explicar, sem alarmá-los, seu estranho comportamento àqueles que o cercam, Atrahasis executa as ordens, "embarca carga e família" e "oferece um grande banquete". Contudo, no decorrer deste, fica ansioso: "Ele só faz entrar e sair,/ Sem se sentar nem ficar parado,/ Com o coração partido, doente de inquietude": espera o sinal fatídico.

O sinal, enfim, chega: "O tempo mudou de aspecto/ E a Tempestade desabou por entre as nuvens!" É preciso zarpar:

Quando se fizeram ouvir os estrondos do trovão,/ Trouxeram-lhe betume,/ Para que vedasse sua escotilha./ E, uma vez que esta estava fechada,/ E que a tempestade continuava a ribombar nas nuvens,/ Os ventos se enfureceram/ E assim ele cortou as amarras, para liberar a nave!

O Dilúvio, manifestado na forma de uma enorme inundação provocada por chuvas torrenciais, então prosseguiu:

Seis dias e sete noites: o temporal fazia estragos./ Anzû (o Rapace divino gigantesco) lacerava o céu com suas garras:/ Era exatamente o Dilúvio/ Cuja brutalidade caía sobre as populações como a Guerra!/ Nada mais se via/ E ninguém mais era identificável naquela carnificina!/ O Dilúvio mugia como um boi;/ O Vento assobiava, como a águia que grita!/ As trevas eram impenetráveis: não havia mais Sol!

Quando o cataclismo tinha realmente:

Esmagado a terra, no sétimo dia,/ o Furacão belicoso do Dilúvio caiu,/ Após ter distribuído seus golpes (ao acaso), como uma mulher em meio às dores;/ A Massa d'água apaziguou-se; a Borrasca cessou: o Dilúvio tinha terminado!

Então, conta o herói:

Abri a escotilha, e o ar vivo saltou-me ao rosto! Depois procurei com os olhos a margem, no horizonte da Extensão d'água:/ A algumas centenas de braças, uma língua de terra emergia./ A nave acostou ali: era o monte Nirçir, onde ela enfim arribou!

Por prudência, Atrahasis espera ainda uma semana antes de utilizar um estratagema dos primeiros navegadores de alto-mar.

Peguei uma pomba e lancei-a;/ A pomba se foi, mas voltou:/ Não tendo visto onde pousar, retornou!/ Peguei em seguida uma andorinha e lancei-a;/ A andorinha se foi, mas voltou:/ Não tendo visto onde pousar, retornou!/ Enfim peguei um corvo e lancei-o:/ O corvo se foi, mas, encontrando a retirada das águas,/ Debicou, crocitou, e não voltou!

É sinal de que pode então deixar seu refúgio. Também mandou sair do barco seus passageiros, que "dispersa aos quatro ventos"; e, logo retomando a função essencial da humanidade, da qual é, com sua família, o único sobrevivente, o único representante, ele prepara um banquete para os deuses, que, em jejum há muito tempo, giram em torno dele "como moscas".

Então, enquanto a grande-deusa, aquela que se havia dedicado à criação dos homens, exige em vão a renegação de Enlil, autor do desastre, este, ao constatar que seu plano de supressão total da humanidade fora frustrado, fica enfurecido. Mas Ea mostra a ele que jamais deveria ter recorrido a um meio tão brutal e extremo, e, "sem refletir, provocar o Dilúvio".

Afinal, se os homens houvessem desaparecido totalmente, não teríamos recaído na situação sem saída que, precisamente, provocara a criação deles: um mundo sem produtores? E, para mostrar o que bastaria ter sido feito, o sábio Ea propõe introduzir na nova geração, originada de Atrahasis, uma espécie de "malthusianismo natural" que, restringindo os nascimentos e a sobrevivência dos recém-nascidos, moderará a proliferação e o tumulto. E por isso que, desde então, algumas mulheres serão estéreis; outras serão expostas à implacável Demônia-Destruidora, que lhes tirará os bebês do seio; outras, enfim, abraçarão um estado religioso que lhes interditará a maternidade.

Aqui, em uma última quebra que nos priva do desenlace, se encerra a terceira e última tabuleta do Poema.

A despeito da concisão do resumo que acabamos de ler, vemos que se trata menos de uma verdadeira história antiga da humanidade, isto é, de um relato suficientemente fiel aos acontecimentos que teriam presidido às suas origens e aos seus primeiros avatares, do que de uma explicação de sua natureza, seu lugar e sua função no universo. Mais do que uma espécie de crônica, é, em suma, algo como uma exposição de teologia que, a despeito de seu estilo animado e descritivo, quer não relatar dados de fato, mas inculcar definições, maneiras de ver, todo um sistema de idéias relativas ao universo e ao homem. É o que chamamos de relato mitológico.

Apesar de sua vivaz inteligência, de sua curiosidade universal, dos enormes progressos intelectuais e materiais pelos quais sabemos que são responsáveis ao longo dos três milênios (no mínimo) em que cresceu e se irradiou sua civilização, os velhos mesopotâmios jamais chegaram ao pensamento abstrato: como muitos outros povos antigos, e até mesmo modernos, e em contraste com nossos hábitos, jamais dissociaram ideologia de imaginação. Assim como em seus tratados matemáticos, nos quais propunham e resolviam apenas problemas particulares, sem deles extrair ou formular princípios de solução, eles apresentavam suas idéias gerais não em sua universalidade, mas sempre encarnadas em algum dado singular.

O mito, expressão favorita de um pensamento especulativo como esse, era precisamente o que lhes permitia materializar suas concepções, infiltrá-las em

imagens, cenas, encadeamentos de aventuras, criadas, é claro, por sua imaginação, mas sobretudo para responder a alguma interrogação, para esclarecer algum problema, para ensinar alguma teoria — como os fabulistas constroem suas historietas para inculcar uma moralidade.

Toda a literatura suméria e babilônica é recheada dessa "filosofia em imagens" que é a mitologia, e o Poema de Atrahasis é um belíssimo exemplo disso, notável pela amplitude do quadro por ele traçado e pela inteligência e pelo peso das questões ventiladas. Seu problema, em suma, tratado naturalmente na ótica de seus autores, é o da condição humana. Qual é o sentido de nossa vida? Por que estamos sujeitos a um trabalho que nunca termina e que é sempre esgotante? Por que essa separação entre uma multidão que a ele se encontra exclusivamente condenada e uma elite que leva uma existência tranqüila, assegurada precisamente pela pena alheia? Por que, conscientes da imortalidade, precisamos, ao fim, morrer? E por que essa morte é de tempos em tempos acelerada por flagelos inesperados e mais ou menos monstruosos? E tantos outros enigmas, assim como as restrições, por si só inexplicáveis, ao papel essencial, para as mulheres, de pôr filhos no mundo e conservá-los vivos...