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Deus é Mediterrâneo?

No documento No Começo Eram os Deuses - Jean Bottéro.pdf (páginas 135-139)

L'HISTOIRE: Deus é mediterrâneo?

JEAN BOTTÉRO: Embora ambos tenham "nascido" em um país à margem do Mediterrâneo, "Deus", a saber, o conceito do Deus único, não é mais mediterrâneo do que o conceito do Ser-enquanto-ser. Cada um mergulha suas raízes em um povo definido, uma civilização particular. As raízes profundas de "Deus" são semíticas, e os semitas antigos não eram propriamente mediterrâneos, uma vez que se espalhavam por todas as partes habitáveis da Península Arábica, e que sua civilização rendeu os frutos mais prodigiosos, ricos e duráveis entre o Tigre e o Eufrates, que se lançam no golfo Pérsico. Sem

mencionar que, naqueles tempos, o Mediterrâneo ainda estava longe de servir como melting pot cultural e de ver criar-se em torno de si uma espécie de civilização comum.

L'HISTOIRE: Quem inventou Deus?

JEAN BOTTÉRO: OS antigos israelitas, autores da Bíblia. Por seu atavismo semítico, eles se atinham, ao mesmo tempo, a uma profunda religiosidade, que lhes submetia a existência inteira ao mundo sobrenatural, e a um vivo sentimento de transcendência, da inacessível superioridade desse mundo.

L'HISTOIRE: Haveria uma explicação histórica para o nascimento do monoteísmo em Israel?

JEAN BOTTÉRO: Deus podia nascer, entre os israelitas, a partir do momento (por volta de 1.280 a.C.) em que o genial Moisés, verdadeiro fundador desse povo como nação, ligou o futuro destino nacional deles não somente à independência, recuperada com a saída do Egito, e ao desígnio de criar para si um território na Palestina, mas também a um pacto de aliança com Javé, uma divindade que seria apenas deles e à qual, para merecer seu apoio irrestrito, deveriam dedicar um apego exclusivo. Isso significava afastar-se de todos os outros deuses, que então pululavam, e demonstrar-Lhe fidelidade antes de tudo, por meio de uma obediência exata ao código moral que Ele lhes havia prescrito. A história dos israelitas compenetrou-se, assim, de sua religiosidade, e sua religiosidade de sua história: foi dessa associação que "Deus nasceu".

Se, instalados em um meio semítico estranho a eles (cananeu) e intensamente atraídos, como se podia esperar, por seus deuses mais "humanos" e carnais, e pelo culto de cerimônias e sacrifícios que lhes eram consagrados, infinitamente mais confortável e mais fascinante que o rigor moral, os israelitas, em sua maioria, esqueceram — de bom grado e com perseverança — as obrigações expressas de sua aliança fundadora com Javé, toda uma elite, entre eles, que Lhe permanecia obstinadamente fiel, não cessou de ver e mostrar ao longo da

história, cada vez menos feliz, de seu povo, a mão, a intervenção de Javé, cada vez mais universal e poderosa.

A partir do momento em que, diante das formidáveis invasões e irresistíveis pilhagens dos assírios (desde a metade do século VIII a.C.), compreendeu-se que, para punir seu povo infiel, Javé era capaz de convocar, mover e manipular à sua vontade a nação e o exército mais consideráveis do mundo conhecido, de que modo evitar que Ele fosse visto não apenas como o deus mais poderoso do mundo, mas como o único: sublime e transcendente a tudo? Foi assim que "Deus. nasceu". E o Mediterrâneo não teve muita coisa a fazer...

L'HISTOIRE: Esse Deus único de Israel impôs-se, contudo, no mundo mediterrâneo?

JEAN BOTTÉRO: O monoteísmo poderia ter permanecido o apanágio de Israel, uma vez que após o Grande Exílio (século VI a.C.) na Babilônia, em vez de fazer-se seu apóstolo em todo o mundo, como o convidava um de seus maiores espíritos — aquele que, por conhecermos apenas por sua obra original, incorporada ao livro bíblico de Isaías, chamamos de o "Segundo Isaías" —, ele se fechou sobre si mesmo, de uma vez por todas. De fato, tenho a impressão de que na época helenística, após Alexandre, o Grande (morto em 323 a.C.), nesse tempo em que se operou a tão fecunda fusão do pensamento grego com tantas veneráveis descobertas nas culturas antigas do Oriente Médio, o monoteísmo, num plano, digamos, "filosófico", afinou-se bastante bem com um dos resultados mais altos e fecundos da reflexão grega, que desde Platão e Aristóteles tendia a reconhecer nos inúmeros fenômenos infinitamente disparatados do universo, não mais tantas causas distintas quanto efeitos — visão superficial e ingênua —, mas uma causa única e superior a tudo. Semelhante conclusão poderia dar suas cartas de nobreza ao monoteísmo, professado por um povo insignificante e sem glória. L'HISTOIRE: E como o Deus de Israel se impôs a todos os homens?

JEAN BOTTÉRO: Dizer "a todos os homens" talvez seja um pouco de exagero. Não me parece que tenha conquistado o Extremo Oriente: é notório, por exemplo, que a religião oficial e tradicional do Japão ainda é o xintoísmo, claramente politeísta. Digamos, ao menos no que nos diz respeito, que se o monoteísmo finalmente triunfou, creio que foi sobretudo porque o cristianismo o incluiu em sua mensagem e se fez o defensor de sua causa: ao conquistar em alguns séculos todo o espaço que hoje chamaríamos de "ocidental" ("mediterrâneo" e muito além), ele impôs em toda parte a idéia, metafisicamente inteligente, atraente, luminosa e fecunda, de uma causa única e transcendente: sobrenatural, para o universo inteiro, em suas origens e em seu funcionamento. Tendo surgido quando tal convicção já havia trilhado no mundo um longo caminho, o islã, também radicalmente dependente do monoteísmo bíblico, não acrescentou muita coisa: apenas confirmou e estendeu seu domínio, ao mesmo tempo por suas vitórias e por sua força de afirmação da unidade absoluta de Deus.

Mas penso que é preciso distinguir o "Deus dos filósofos e dos sábios" do "Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó", em outros termos, o monoteísmo "filosófico" do monoteísmo religioso. A idéia do Deus único e transcendente propagou-se e impôs-se um pouco em toda parte. No primeiro caso, em virtude de seu valor metafísico, que reduzia tudo o que existe a uma causa única e suprema, e satisfazia, dessa maneira, espíritos exigentes e penetrantes. No segundo caso, como conseqüência de uma fé profunda e de um apego pessoal e cordial àquele Deus, qualquer que fosse a apresentação particular que dele fizesse cada uma das três grandes religiões monoteístas.

L'HISTOIRE: Surpreende que certas revoluções políticas se façam hoje em nome do Deus único, na bacia mediterrânea e nos arredores?

JEAN BOTTÉRO: Hoje, uma vez que o mundo se "desencanta" cada dia mais, o monoteísmo religioso deveria perder sua força, enquanto para muitos espíritos, na medida em que conservam um mínimo de sentido metafísico e não admitem,

puerilmente, que "a física e a biologia bastem para explicar tudo", o monoteísmo "filosófico" manteria seu poder de atração.

No entanto, a despeito da lei da gravidade que afasta cada vez mais os espíritos do "sobrenatural", é fato que, destinadas à miséria e ao infortúnio, em face de uma riqueza insolente e cada vez mais concentrada, vítimas dos excessos e da estupidez de um poder crescentemente egoísta, desesperadas diante de tantas promessas jamais mantidas, populações inteiras parecem se apegar por todos os meios, inclusive a violência, na defesa de seu direito ao monoteísmo religioso e na esperança da qual creem que ele seja portador. Deus não está morto, e talvez não tenha acabado de revolucionar o mundo...

CAPÍTULO

II

No documento No Começo Eram os Deuses - Jean Bottéro.pdf (páginas 135-139)