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AS FUNÇÕES DO NEXO CAUSAL

PARTE II – O NEXO DE CAUSALIDADE NA RESPONSABILIDADE CIVIL

5. AS FUNÇÕES DO NEXO CAUSAL

O nexo de causalidade possui duas funções bem definidas na responsabilidade civil. A primeira é a de autêntico pressuposto da obrigação de indenizar, na medida em que serve para apontar o sujeito ao qual devem ser imputadas as consequências de um evento danoso. A segunda é a de delimitar a extensão do dano a ser ressarcido, servindo, nessa perspectiva, como “medida da obrigação de indenizar”267.

Com efeito, basta examinar a função desempenhada por cada um dos três elementos que compõe a obrigação de ressarcir – o dano, o nexo de causalidade e os fatores de atribuição, quais sejam, a culpa e o risco –, para perceber a distinção entre i) o reconhecimento do dano injusto, cuja função é fazer nascer a obrigação de repará-lo; ii) o nexo causal, que será o elemento de ligação entre o dano e o fato do agente, identificando o evento que foi a causa do evento danoso, tornando possível, por conseguinte, identificar o sujeito que o causou; e iii) os fatores de atribuição – culpa e risco – que cumprem a função de qualificar e individuar a conduta do agente – culposa ou arriscada – a quem se pretende imputar a obrigação de ressarcir268.

      

267

ALMEIDA COSTA, Mario Júlio de. Direito das obrigações. Coimbra: Almedina, 9ª ed., 2001, p. 554-555. Sobre a dupla função do nexo de causalidade na responsabilidade civil, ver, ainda, ALPA, Guido. Trattato di Diritto

Civile. V. IV – La responsabilitá civile. Milano: Giuffrè, 1999, p. 317; CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 22; e SANSEVERINO, Paulo de Tarso

Vieira. Princípio da reparação integral. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 153. 268

A lógica recomenda seguir os seguintes passos: primeiro, verifica-se a ocorrência do dano, sem o qual não é possível falar em ressarcimento; depois, investiga-se a relação de causalidade, ou seja, o quê causou tal dano, pelo que se pode indicar qual foi a ação ou omissão que se atribui à causalidade e, via de consequência, qual o sujeito que praticou a conduta; por fim, afere-se a qualidade da conduta daquele que tenha sido responsável pela causação do dano, nas hipóteses de responsabilidade civil subjetiva, isto é, pergunta-se “a conduta que causou o dano foi

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Trata-se, por primeiro, portanto, de pressuposto da obrigação de indenizar e que, por isso, de regra, não pode ser afastado da responsabilidade civil, “sob pena de esta se transformar em um jogo de azar, numa cega loteria”269. Praticamente não existe controvérsia na doutrina quanto ao ponto: é indispensável aferir a presença do nexo de causalidade a fim de que seja apontado o sujeito a quem se reconhece, em princípio, obrigação de indenizar, ou seja, o sujeito cuja conduta ativa ou omissiva tenha causado o dano270.

Não é possível confundir o nexo de causalidade com os fatores de imputação, isto é, com a culpa e o risco271. A relação de causalidade consiste na relação entre um efeito (no caso, o dano) e determinado evento antecedente, ou seja, aquele que o tenha gerado (e por conta disso qualifica-se como “causa”). Ao lado do nexo de causalidade existem as razões jurídicas de

imputação272, isto é, o “nexo de atribuição a alguém da conduta devida”273, que com o nexo de

causalidade é inconfundível274.

O direito brasileiro prevê, a propósito, dupla forma de imputação: i) a imputação subjetiva, regida pelo princípio da inculpação (requerendo ato culposo no suporte fático da responsabilização); e ii) a imputação objetiva (que não requer a culpa), resultante das normas

      

arriscada? Foi imprudente? Foi negligente? Foi imperita?” (MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade

civil por presunção de causalidade. Rio de Janeiro: GZ ed., 2010, p. 81).

269

MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Código Civil. Vol. V. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 133.

270

Nesse sentido, “[p]ode-se ainda afirmar que o nexo de causalidade é elemento indispensável em qualquer espécie de responsabilidade civil. Pode haver responsabilidade sem culpa, como teremos oportunidade de ver quando estudarmos a responsabilidade objetiva, mas não pode haver responsabilidade sem nexo causal” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros, 2003, 3ª ed., p. 46). “Em se tratando de elemento causal”, registra Caio Mário da Silva Pereira, “cumpre ao lesado, no curso da ação de indenização, prová- lo cumpridamente” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 84). Fernando Noronha, de seu turno, aduz que “[e]m princípio só existe obrigação de reparar os danos que tenham sido causados por fatos da responsabilidade da pessoa obrigada a indenizar, embora estes não tenham de ser necessariamente resultantes da sua atuação: poderão ser fatos de outra pessoa, por quem aquela seja responsável, ou fatos de coisas ou animais pertencentes a esta (...)” (NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 3ª ed., 2010, p. 612).

271

MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Código Civil. Vol. V. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 84, nota 7.

272

SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 178. 273

MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Código Civil. Vol. V. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 84.

274

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que atribuem a alguém a assunção de um risco ou de um dever de segurança, ou de garantia, ou a responsabilização pela confiança legitimamente gerada275.

Pelo nexo de causalidade é possível extrair a existência de relação entre determinado evento e o dano, de modo a qualificar o evento gerador do dano como “causa” do mesmo. Pelo nexo de imputação, de outro lado, é possível qualificar juridicamente como “culposa” ou “arriscada” a ação ou omissão do agente que causou o evento danoso, isto é, na perspectiva de sua reprovabilidade pelo sistema jurídico276. A advertência de Pontes de Miranda é das mais relevantes: o nexo de causalidade há de ser verificado entre o fato e o dano, e não entre o devedor e o dano277.

Dito em outras palavras: a qualificação do evento como “causa” supõe reconhecer a existência do nexo de causalidade. Já reconhecer a conduta que gerou o evento (causa) como “culposa” ou “arriscada” supõe a qualificá-la (a conduta) à luz do sistema jurídico. A conduta “culposa”, por exemplo, é aquela negligente, imprudente ou imperita. A conduta geradora da “causa” pode ser também qualificada por “imprudente”, p. ex., mas nem sempre é isso que ocorre. Da conduta “imprudente” nem sempre resulta o dano, porque nem sempre gera o evento “causa”, caso em que não haveria falar na presença do nexo de causalidade. Ou ainda: a conduta “imprudente” até pode resultar no dano, mas, por não consistir em consequência necessária deste (causalidade adequada), não é possível reconhecê-la como “causa” do dano278.

      

275

MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Código Civil. Vol. V. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 88.

276

Isso não significa confundir ilícito com a noção de culpa. Conforme explica Judith Martins-Costa, “convivem, no ordenamento, duas formas de ilicitude: a derivada da noção tradicional, acolhida no art. 186 [CCB], que requer o elemento subjetivo (culpa) e o elemento objetivo (dano); e a noção de ilicitude por exercício inamissível de posição

jurídica (art. 187), que prescinde do elemento subjetivo e do próprio dano para se configurar, devendo ser completa

a partir de conceitos semanticamente abertos, como ‘conduta contrária à boa-fé’, ou ‘ato desviado do fim econômico-social do negócio’. Nesse caso, porém, só haverá obrigação de indenizar, deflagrando-se a eficácia do art. 927, se decorrer dano do exercício inadmissível de posição jurídica” (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários

ao Código Civil. Vol. V. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 127).

277

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo XXII. Rio de Janeiro: Borsói, 3ª ed., 1971, p. 184. O nexo de causalidade não se estabelece, rigorosamente, entre a “conduta culposa e o risco criado e o dano suportado por alguém”, como registra, p. ex., TARTUCE, Flávio. Direito Civil. V. 2. Rio de Janeiro: Forense – São Paulo: Método, 4ª ed., 2009, p. 358-359. A vinculação entre o nexo de causalidade com “outros pressupostos (ou elementos) do ilícito”, na forma em que registra Guido Alpa (ALPA, Guido. Trattato di Diritto

Civile. V. IV – La responsabilitá civile. Milano: Giuffrè, 1999, p. 322), significa outorgá-lo distinta natureza, isto é,

não a de relação entre dois fatos, mas da relação entre a conduta (culposa ou arriscada, p. ex.) e o dano. 278

Caio Mário endossa exemplo de Serpa Lopes baseado na culpa para diferenciar o nexo de causalidade dos fatores de imputação: “Por serem conceitos distintos, pode haver imputabilidade sem a ocorrência do nexo causal, como no exemplo por ele lembrado, de um indivíduo que fornece a outro um copo de veneno, mas a vítima, antes de lhe

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O que se torna importante é distinguir o nexo de causalidade da imputação (nexo de atribuição). Como bem registra Serpa Lopes, são “dois pontos que não se confundem”: diante de um fator de imputação a questão envolve uma imputatio iuris, ao passo que, diante do nexo causal está-se diante de um problema de imputatio facti279. Dito em outros termos: afirmar que a conduta foi culposa ou arriscada, conforme o caso diga respeito a responsabilidade civil subjetiva ou objetiva, é problema afeito ao nexo de atribuição (imputação) e não ao nexo de causalidade. Por isso é que nem sempre o sujeito que causou o dano terá a obrigação de indenizar. Conforme demonstram diversos precedentes envolvendo o problema da responsabilidade civil do médico, ainda que presente o nexo de causalidade entre o fato (comissivo ou omissivo) do médico e o dano, exige-se de regra seja demonstrada a culpa para que seja reconhecida a obrigação de indenizar.

A segunda função do nexo causal, não menos importante que a primeira, sucede após o reconhecimento da obrigação de indenizar. Nessa perspectiva, o nexo de causalidade constitui critério para determinar a medida do ressarcimento devido pelo causador do dano à vítima. Evidentemente que, do ponto de vista da vítima, o ressarcimento deve ser integral280; no que concerne à responsabilização do agente, no entanto, há de se investigar o grau da sua colaboração para que o dano viesse a ocorrer, a fim de que a sua participação na tutela ressarcitória ou compensatória esteja em consonância com a extensão do dano por ele efetivamente causado. Pode ocorrer, p. ex., de a vítima ter colaborado parcialmente para que o evento danoso ocorresse. Nesse caso, não será possível atribuir ao outro partícipe a responsabilidade pela integralidade do ressarcimento. A questão a ser aqui respondida é, portanto, a seguinte: “qual foi o grau de colaboração da conduta do agente, em termos de necessariedade, para que o dano viesse a ocorrer?”.

      

sofrer os efeitos, morre de um colapso cardíaco” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 84).

279

SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, Vol. V, 2ª ed., 1962, p. 252.

280

Sobre o tema, ver, por todos, SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral. São Paulo: Saraiva, 2010, passim.

105 

Semelhante função sempre foi outorgada ao elemento “culpa”, pelo que era e continua sendo comum na prática forense o exame do problema da “concorrência de culpas”281. Trata-se da acepção de natureza subjetiva da mensuração da responsabilidade pelo ressarcimento que se vale, assim, do “grau de culpa” do agente causador do dano para determinar os limites da indenização. A virada paradigmática sofrida pela responsabilidade civil em torno da sua objetivação outorgou a função da mensuração da obrigação de indenizar ao nexo de causalidade. Assim, não mais a reprovabilidade da conduta do agente é que serve de critério para determinar o quantum indenizatório, mas sim o grau de colaboração que este teve para a ocorrência do evento danoso. A “concorrência de culpas” não se revela critério idôneo para, p. ex., determinar a redução da indenização devida a título de ressarcimento. Não é o fato de a atividade desenvolvida pelo sujeito ser mais ou menos arriscada, ou sua conduta ter sido mais ou menos imprudente, p. ex., que serve, rigorosamente, de critério balizador da sua obrigação de indenizar o dano. A culpa ou o risco têm a função de qualificar a conduta do agente. Tal qualificação constitui, em certos casos, elemento presente no Tatbestand abstrata do direito material e, por conseguinte, fator de imputação da responsabilidade civil. Todavia, não constitui, rigorosamente, critério para determinar a medida da obrigação de indenizar: a reparação da vítima deve ser, na medida do possível, integral, devendo ser atribuída em face da existência da causa e como esta projetou seus efeitos para que o dano viesse a ocorrer (nexo de causalidade), e não a partir da investigação acerca de reprovabilidade da conduta daquele que causou o dano.

É curioso notar, no entanto que, nada obstante o avançado estágio em que se encontrava o processo de fragilização do elemento culpa enquanto filtro da responsabilidade civil, restou mantida a redação do art. 945, do atual Código Civil brasileiro de 2002, no sentido de que “[s]e a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano”. Tudo leva a crer que a redação do texto da lei, nos termos em que acabou editada, decorreu de lapso ao se revisar a terminologia do anteprojeto, cuja tramitação no legislativo federal durou quase quarenta anos. Seja como for, a redação colabora não somente para a confusão que frequentemente se estabelece entre nexo de causalidade e o fator de atribuição culpa, mas

      

281

Extrai-se de recente precedente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, p. ex., exame de “[h]ipótese em que evidenciada a concorrência de culpas: da autora, porque realizou a travessia da pista de rolamento fora da faixa de segurança; da ré, porquanto seu motorista trafegava com velocidade imoderada para o local” (Apelação Cível nº 70046736294, Décima Primeira Câmara Cível, relator: Des. Antônio Maria Rodrigues de Freitas Iserhard, julgado em 19/12/2012).

106 

também no que se refere à função de “medida de reparação” que, bem delineados os conceitos de imputação e nexo de causalidade, deve ser outorgada este último282.