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OUTROS FENÔMENOS RELACIONADOS AO NEXO DE CAUSALIDADE

PARTE II – O NEXO DE CAUSALIDADE NA RESPONSABILIDADE CIVIL

6. OUTROS FENÔMENOS RELACIONADOS AO NEXO DE CAUSALIDADE

6.1. Multiplicidade de causas

A causalidade nem sempre se estabelece em uma única circunstância fática. Aliás, é muito mais comum verificar que o dano é resultado não de uma, mas de uma série de diversos eventos que, em conjunto, colaboram decisivamente para a produção do dano.

A multiplicidade ou concurso de causas pode ser melhor explicada a partir dos conceitos de i) causas complementares (concausas); ii) causas cumulativas (causas concorrentes); e iii) causas alternativas283.

A ocorrência de causas complementares, ou concausas, dá-se quando duas ou mais causas concorrem para a produção de um resultado que não teria sido alcançado de forma isolada por nenhuma delas. O fenômeno acontece, portanto, quando o dano é decorrência lógica de diversos fatos que, isoladamente, não teriam eficácia suficiente para causar o dano284. Se cada um, no entanto, provocou situação que o outro agravou, mas somente o último efetivamente causou o dano, porque o primeiro não o poderia determinar, não há concausa285.

      

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Com efeito, já advertia Pontes de Miranda que “é de afastar-se o conceito, que turvou a investigação e perturba a discussão, ainda hoje, de compensação de culpas. Culpas não se compensam. O ato do ofendido é concausa, ou aumentou o dano. Trata-se de saber até onde, em se tratando de concausa, responde o agente, ou como se há de separar do importe o excesso, isto é, que tocaria ao que fez maior o dano, que, aí, é o ofendido” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo XXII. Rio de Janeiro: Borsói, 1971, 3ª ed., p. 195). Também no sentido de outorgar aludida função ao nexo de causalidade, SALLES, Raquel Bellini de Oliveira.

A cláusula geral de responsabilidade civil objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 166-167.

283

CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 28.

284

CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 28.

285

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo XXII. Rio de Janeiro: Borsói, 3ª ed., 1971, p. 192.

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Na hipótese de causalidade cumulativa, ou causas concorrentes, pelo contrário, cada uma das distintas causas teria, por si só, força para determinar a produção do dano286. É o caso, no exemplo de Pontes de Miranda, dos salteadores que, ignorando um o que o outro fazia, atiraram sobre o passante: “os tiros atingem a vítima, que morreria com qualquer um dos tiros”287.

Na perspectiva cronológica, tanto as causas complementares (concausas) quanto as causas concorrentes, podem ocorrer de forma simultânea ou sucessiva.

Distinto é o fenômeno da causalidade alternativa, pelo qual não é possível definir, dentre os diversos participantes em certo grupo, qual deles efetivamente causou o dano. Vale dizer: sabe-se que o agente que causou o dano faz parte do grupo, mas não se consegue identifica-lo. Não há, no caso, problema de concorrência de causas porque o dano é causado por apenas um determinado integrante do grupo288. O problema é identificar, portanto, dentro aqueles que compõem o grupo, qual deles, pela sua conduta, causou o dano.

6.2. “Interrupção” do nexo causal

Fala-se em causalidade interrompida, ou interrupção do nexo causal, quando um evento teria provocado realmente determinado efeito, mas a verificação deste efeito foi impedida por outro evento que, de sua vez, o produziu anteriormente289. Nesse caso, o primeiro fato não foi senão a causa virtual do resultado, e assim não chegou a causá-lo; o segundo fato, que

      

286

CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 29.

287

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo XXII. Rio de Janeiro: Borsói, 3ª ed., 1971, p. 192.

288

CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 31.

289

PEREIRA COELHO, Francisco Manoel. O problema da causa virtual na responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 1998, p. 28.

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realmente provocou o dano, “interrompeu” a primeira série causal e, portanto, constitui autêntica causa deste290.

A expressão “interrupção”, bem como suas derivações, embora inserida na tradição para explicar o fenômeno, não é isenta de críticas. Com efeito, o nexo de causalidade, considerada a sua natureza de peculiar relação que se estabelece entre dois eventos, rigorosamente, não pode ser “interrompido”: ou existe ou não existe.

O nexo de causalidade pressupõe uma relação de necessariedade entre dois eventos (causa e efeito). Se determinado evento, no curso da cadeia sucessória de eventos, foi substituído por outro na condição de necessário para a realização do efeito, jamais chegou a se transformar propriamente em causa, pelo menos à luz de um juízo de prognose póstuma, próprio da teoria da causalidade adequada. Nessa perspectiva, não é possível falar em interrupção do nexo causal porque, em perspectiva posterior ao dano, aquele evento cronologicamente anterior jamais chegou a consistir “causa” e, não existindo “causa”, não se revela possível falar na sua “interrupção”. Não é possível interromper o que não existe. O evento que necessariamente originou o efeito constitui a “causa”, e não o anterior. A doutrina refere, a propósito, a tentativa de cunhar expressões mais adequadas ao fenômeno, como “perturbação ou alteração do resultado”, ou “impedimento do resultado”, ou ainda “impedimento do nexo de causalidade” e “impedimento da formação do nexo de causalidade”. Entretanto, a expressão “causalidade interrompida” acabou mantida por estar consagrada “por um longo uso”, como registra Pereira Coelho291.

Compreendido criticamente o fenômeno, importa deixar claro que nem sempre a interferência de outro fato durante o iter de desenvolvimento da cadeira causal irá consistir em marco interruptivo da causalidade292. Aliás, muito pelo contrário: a interrupção do nexo causal é a exceção293, na medida em que, à luz do id quod plerumque accidit, diversos eventos podem

      

290

PEREIRA COELHO, Francisco Manoel. O problema da causa virtual na responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 1998, p. 28-29.

291

PEREIRA COELHO, Francisco Manoel. O problema da causa virtual na responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 1998, p. 28-29, nota 14.

292

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo XXII. Rio de Janeiro: Borsói, 3ª ed., 1971, p. 189.

293

PEREIRA COELHO, Francisco Manoel. O problema da causa virtual na responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 1998, p. 29.

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colaborar, simultaneamente ou não, para a produção do efeito. Nesse sentido, a doutrina labora com alguns critérios para determinar, diante da ingerência de duas ou mais causas na produção do efeito danoso, quando haverá propriamente a chamada “interrupção do nexo causal”294. São eles:

a) a existência de um (virtual) nexo de causalidade entre o primeiro evento da cadeia e o dano;

b) que o segundo fato – aquele que “interrompeu” o nexo de causalidade – seja independente do primeiro, no sentido de que deste não seja uma consequência necessária;

c) que o segundo fato tenha provocado o dano independentemente do primeiro, de modo que só o iter causal iniciado pelo segundo fato tenha ocasionado o dano verificado.

Imagine-se o caso em que A atropela B (1ª série causal) e B vem a óbito no hospital em virtude de i) suicídio (2ª série causal); ii) erro médico (2ª série causal); ou iii) incêndio que atingiu o nosocômio (2ª série causal). Em tal exemplo, considerando as três hipóteses de resultado, a 2ª série causal “interrompeu” a 1ª série, em virtude de i) fato da própria vítima; ii) fato de terceiro; iii) caso fortuito ou de força maior. É possível verificar do exemplo, pelo menos, duas dimensões do problema: a primeira, no caso de considerar o atropelamento, por si só, como evento determinante para o efeito (morte); a segunda, no caso de considerar que o atropelamento, por si só, não fosse evento determinante para a morte, mas apenas para ferimentos sofridos por B.

Pois bem: quando a eficácia causal dos dois eventos, cada um dos quais seria capaz de produzir o efeito só por si, colaborou efetivamente para o dano verificado, tem-se a hipótese de causalidade cumulativa, examinada supra (Parte II, item 6.1). À luz do exemplo mencionado, trata-se do caso em que o atropelamento levaria à morte. Por outro lado, se a eficácia causal de

      

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Trabalho aqui com os critérios propostos por PEREIRA COELHO, Francisco Manoel. O problema da causa

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um dos eventos não chegou a operar efetivamente no resultado, se o dano, tal como concretamente se verificou, só foi produzido pela eficácia causal do outro, aquele é causa virtual, ou hipotética, em relação a esse dano. À luz do exemplo narrado, trata-se do caso em que o atropelamento não levou à morte; o que a determinou foi o suicídio, o erro médico, ou o incêndio no hospital: trata-se, neste último caso, de um exemplo de causalidade interrompida295. Ou melhor: do surgimento da autêntica cadeia causal do efeito morte.

O que mais importa nesta sede, isto é, muito mais do que aprofundar o exame dos diversos fenômenos que estão ligados ao problema do nexo de causalidade, é registrar a sua existência, de modo a ilustrar como pode se revelar complexa a tarefa do intérprete não apenas no que se refere ao accertamento da causalidade à luz fattispecie substancial da obrigação de indenizar, mas, em especial, no que se refere à sua prova em juízo. Guardados os limites desta tese, o fundamental é, portanto, determinar a natureza do nexo de causalidade, sublinhando a importância do critério da necessariedade proposto pela teoria da causalidade adequada enquanto expressão, no plano jurídico, do modelo nomológico da explicação causal.

      

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PEREIRA COELHO, Francisco Manoel. O problema da causa virtual na responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 1998, p. 25-26. Na nota 9, o autor justifica a utilização do termo “causa hipotética” nada obstante as fundadas críticas dirigidas à expressão: “Se se recear a crítica fácil de que a expressão ‘causa hipotética’ envolve uma contradição nos próprios termos, pois toda a causa é necessariamente real e, se é virtual já não é causa, pode falar-se antes aqui em fato hipotético. Porém, empregaremos de preferência a primeira fórmula. ‘Fato hipotético’ sugere a ideia de um fato não real (não histórico), de um fato que realmente não teve lugar, mas apenas teria tido lugar se se tivesse verificado certa hipótese, que não se verificou. Ora, a causa virtual, se pode ser um fato hipotético, neste sentido, pode também ser, e é por ventura o mais das vezes, um fato real. (...) Para estes casos é mais correto falar-se em causa virtual ou hipotética. Trata-se de um fato que em si mesmo foi real, mas cuja eficácia causal em relação àquele dano é puramente hipotética”.

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PARTE III - A PROVA DO NEXO DE CAUSALIDADE NA RESPONSABILIDADE