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Teoria da causalidade adequada

PARTE II – O NEXO DE CAUSALIDADE NA RESPONSABILIDADE CIVIL

3. NATUREZA (JURÍDICA) DO NEXO DE

3.2. A indevida distinção entre “causalidade material” e “causalidade jurídica”

3.3.2. Teoria da causalidade adequada

A teoria da causalidade adequada considera, para a determinação da causa, a probabilidade de determinado resultado vir a ocorrer. Tal “probabilidade” é realizada abstratamente e constitui produto exclusivo do id quod plerumque accidit, isto é, daquilo que normalmente acontece177. Com efeito, à luz da experiência comum, em reflexão estabelecida abstratamente, examina-se se o fato provavelmente foi apto para produzir o resultado178. Segundo tal concepção, “quanto maior é a probabilidade com que determinada causa se apresente para gerar um dano”, raciocínio que é feito com base na experiência comum, “tanto mais adequada é em relação a esse dano”179. O fato só deve ser considerado causa (adequada) dos danos que constituem consequência normal, típica, provável dele180.

      

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CAPECCHI, Marco. Il nesso di causalità: dalla condicio sine qua non alla responsabilità proporzionale. Padova: Cedam, 2012, 3ª ed., p. 158.

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Assim, SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do

fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 239; CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 64; TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o nexo de

causalidade. In: Temas de direito civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 68; e MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil por presunção de causalidade. Rio de Janeiro: GZ ed., 2010, p. 150-151.

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Para o bem da verdade, à luz das considerações realizadas supra (Parte I, item 2.1) a respeito da distinção entre verossimilhança e probabilidade, o juízo de probabilidade aqui desenhado, rigorosamente, constitui juízo de

verossimilhança, na medida em que coteja determinado fato com o id plerumque accidit para reconhecer (verossímil

ou inverossímil, portanto) a presença do nexo de causalidade. Feita a ressalva, manterei a expressão probabilidade quando do exame da teoria da causalidade adequada, na medida em que toda a doutrina civilista trabalha com a expressão, pelo que a utilização do termo “verossimilhança” colaboraria para desviar a atenção daquilo que realmente interessa aos escopos da tese.

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CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 65. No mesmo sentido, MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Código Civil. Vol. V. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 137.

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O processo lógico inferencial da adequação da causa dá-se do seguinte modo: após a verificação concreta de determinado processo causal, deve-se formular, em um plano abstrato, juízo de probabilidade com cada uma das condições (possíveis causas), de acordo com a experiência comum. Se, após a análise de determinado fato, for possível concluir pela probabilidade na sucessão do evento em termos de relação de causalidade, deve-se reconhecer tal fato como causa adequada181. Tal juízo acerca da idoneidade ou aptidão do fato para causar o dano é denominado, justamente por isso, de juízo de prognose póstuma182.

A concepção, inicialmente elaborada pelo filósofo alemão Von Kries no final do século XIX e posteriormente aperfeiçoada por Rümelin, Trager, Enneceerus e Gabriel Marty, tem por objetivo identificar, na presença de mais de uma possível causa, qual foi a potencialmente apta a produzir os efeitos danosos, independentemente das demais circunstâncias que, no caso concreto, operaram em favor de determinado resultado183.

A previsibilidade do agente a respeito do dano que a sua conduta poderá causar não importa para a aferição do nexo de causalidade. O juízo de prognose prévia importa tão-somente para a aferição da culpa do agente. A noção de adequação, portanto, tem natureza objetiva184, ligando dessa maneira não a qualidade da conduta do agente, mas dois fatos: a causa e o efeito.

A teoria da causalidade adequada também não ficou imune a críticas. Uma das mais importantes decorre de quando o resultado apresenta uma multiplicidade de causas, tornando-se difícil estabelecer qual delas seria a mais adequada. Diante de tal objeção, a concepção foi aperfeiçoada para adotar uma fórmula negativa, de modo a examinar o problema da causa

inadequada, ou seja, toda aquela que se revela estranha ou indiferente ao resultado danoso185. É

conhecido, nesse sentido, certo precedente do Tribunal de Stuttgart que aborda o seguinte caso: logo após a guerra, um veículo carregado de escombros roçou levemente em uma parede, derrubando-a sobre um homem que veio a falecer. Examinando a responsabilidade pelo evento, o

      

181

SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 156. 182

CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 64.

183

TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o nexo de causalidade. In: Temas de direito civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 67.

184

VARELA, João Matos Antunes. Das obrigações em geral. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1996, p. 912. 185

Tal concepção foi seguida, entre outros, por PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito

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tribunal reconheceu que, embora o prédio estivesse em ruínas, o simples contato constituiu causa adequada do evento, porque estava dentro da sua faixa de probabilidade, não se revelando excepcional para que o dano ocorresse186.

Imagine-se, p. ex., se uma pessoa retém outra ilicitamente, fazendo-a se atrasar e perder o avião. Tal pessoa embarca no voo seguinte e o avião que a levava cai, matando-a. De acordo com a teoria da causalidade adequada, não se pode considerar a retenção indevida como causa da morte, pois normalmente da retenção não resultaria na morte da pessoa; tal evento (dano) foi excepcional: só quando para a verificação do prejuízo tenham concorrido decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excepcionais repugnará considerar o fato como causa adequada do dano187.

Outra sorte de crítica tem fundamento na utilização de juízos baseados na ordem natural das coisas e na experiência comum. Por restar baseada em juízos decorrentes do id quod plerumque accidit, a teoria seria carente de elementos que outorgassem maior objetividade e segurança à sua aplicação. Assim, embora tenha o mérito de impor limitação à infinita série dos antecedentes causais (condicio sine qua non), a concepção é criticada porque sua base restaria fundada em algo muito fluídico, e que por isso admitiria distinções várias, de natureza subjetiva, e de acordo com o gosto do intérprete188, abrindo, desse modo, a porta para o cometimento de arbitrariedades.

A utilização de juízos baseados na experiência comum, todavia, pode outorgar – e não raro outorga – razoável grau de segurança ao processo de aferição do nexo de causalidade. Vale lembrar que, na conhecida lição de Stein, as máximas da experiência constituem “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, independentes dos fatos concretos julgados no processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram induzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para outros

      

186

LARENTZ, Karl. Derecho de obligaciones. Trad. Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista Direito Privado, 1959, t. 1, p. 202.

187

VARELA, João Matos Antunes. Das obrigações em geral. Vol. 1. Coimbra: Almedina, 1996, p. 910. 188

CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 82-83.

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novos”189. Tratam-se, com efeito, de generalizações derivadas do id quod plerumque accidit, que

extrapolam, assim, da experiência individual; proposições e juízos de conteúdo geral, adquiridos através da experiência das coisas e independente do caso que é objeto de decisão190. São, ademais, heterogêneas, no sentido de que constituem noções que podem decorrer tanto das ciências naturais quanto das ciências humanas; podem ser fruto de generalizações empíricas, regras de senso comum, prevalências de comportamentos, resultados experimentais decorrentes da valorização das condutas humanas, frequências estatísticas etc191.

Com efeito, nada impede a impugnação a respeito das máximas de experiência utilizadas pelo intérprete no raciocínio que leva ao reconhecimento do nexo de causalidade, não retratarem aquilo que normalmente acontece. Nesse caso, o contraditório funciona como garantia contra o arbítrio na fixação da máxima destinada a aferir o nexo de causalidade: devem ser desqualificados da condição de “causa” aqueles eventos que não sejam efetivamente adequados para provocar o dano.

Recente acórdão do Superior Tribunal de Justiça, no qual se rechaçou demanda indenizatória de seguro obrigatório (DPVAT), por considerar que, estando o veículo parado, este não foi causa do acidente sofrido pelo motorista ilustra bem o problema da utilização das máximas de experiência na compreensão da causalidade adequada. No caso, o motorista, ao tentar sair pela porta, acabou tropeçando e ferindo-se. Segundo o órgão judicial, “o inerte veículo automotor de onde caíra o autor somente fez parte do cenário do infortúnio, não sendo possível apontá-lo como causa adequada (possível e provável) do acidente, tal como não se pode indicar um edifício como causa dos danos sofridos por alguém que dele venha a cair”192. Note-se que, aludindo a uma máxima de experiência (p. ex., “normalmente o veículo parado não é capaz de causar acidentes”), o tribunal induziu a inexistência do nexo de causalidade entre a participação do veículo e o dano sofrido pela vítima. Em outro julgado, o STJ também apurou, segundo semelhante critério, a inexistência de nexo causal entre a liberação de veículo pela empresa de

      

189

STEIN, Friedrich. El conocimiento privado del juez. Trad. Andrés de la Oliva Santos. Madrid: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, p. 22.

190

TARUFFO, Michele. Studi sulla rilevanza della prova. Padova: Cedam, 1970, p. 202. 191

PASTORE, Baldassare. Giudizio, prova, ragion pratica: un approccio ermeneutico. Milano: Giuffrè, 1996, p. 174.

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REsp 1185100/MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 15/02/2011, DJe 18/02/2011. Extrai-se do relatório: “Narra o autor, ora recorrente, ter sofrido ‘acidente em veículo automotor em seu local de trabalho, no pátio da empregadora MASEAL (...), especificamente em uma 'carreta juliana'", acidente esse que consistiu em ‘uma queda ao descer da máquina’, vindo a ‘cair em cima de seu braço e ombro esquerdo’".

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estacionamento, sem a apresentação do correspondente tíquete, para o filho da proprietária e a ocorrência de acidente horas mais tarde193. Neste último caso, a experiência comum impede o reconhecimento de um liame necessário entre a liberação do veículo do estacionamento e o acidente ocorrido horas depois, por denotar a presença de circunstância que “interrompeu” a marcha causal (no caso, a conduta dos motoristas nos momentos que antecederam o acidente).