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As histórias de vida e os contextos escolares

No documento A escola e a opção pelos pobres (páginas 137-141)

No contexto escolar, aproximei-me dos relatos das histórias de vidas, o mais próximo possível da pobreza. Alguns fragmentos desses relatos emergiram como testemunhos da própria vida. Durante o percurso desta pesquisa, ficou claro como as histórias de vida se entrelaçaram na pobreza e como esta define, em parte, as molduras comportamentais, as perspectivas, as concepções de educação, bem como a visão de escola. Os fios com os quais puxei as concepções que os colaboradores me deram fecundaram-se em seus cenários de histórias de vida, misturando-se, assim, à própria marca do sentido vivido para cada um deles.

A realidade de nossas escolas públicas, urbana ou rural, se mescla às vidas que se configuraram em seus espaços. As diversas situações que estiveram presentes no cotidiano dos estudantes pobres levaram os atores dessas escolas, direta ou indiretamente, a serem afetados por situações ligadas à pobreza. Este ensaio busca compreender a relação entre pobreza e escola e como as histórias de vida dos colaboradores sedimentaram essa relação.

Não fui escriba dos pobres; fui apenas artesão de palavras que tomei emprestadas de seus lábios para compor as narrativas extraídas de seus corpos. De alguma forma, identifiquei-me e solidarizei-me com as pessoas que emprestaram generosamente as narrativas de suas vidas. Por isso, encontrei nas histórias de vida dessa população a minha inclusão.

Compreendi pelas lentes do contexto escolar quais os sentidos de vida que os colaboradores deste estudo trouxeram. Como afirmam Pineau e Le Grand (2012, p. 100), “a luta pelo conhecimento da vida começa sempre por um contrabando social”. Saberes e poderes foram, aos poucos, se configurando no lócus escolar e, com isso, delimitaram-se os campos dos saberes.

A pobreza se representa de modo polissêmico em um contexto. O lugar, nessa acepção, é uma realização, uma produção que se concentra na territorialidade, seja no âmbito rural, seja no urbano. A leitura que se faz da vida cotidiana em um dado espaço sedimenta, quase sempre, as ações transformadoras de sentidos.

Schaller (2008) afirma que os lugares são tomados por interesses e experiências que neles vivem as pessoas. Por sua vez, as pessoas transformam o seu entorno e essas transformações acabam por afetar o que elas são e o que elas fazem em seus contextos. Desse modo, as narrativas escutadas ganharam sentidos e se potencializaram como conhecimento gerado que se encontrou na experiência de base existencial sobre a pobreza. A existencialidade das múltiplas dimensões do ser pobre, nesse sentido, é o que define o próprio conceito de pobreza.

As narrativas de si, ao se publicarem na esfera social, reificam os modos como são vivenciados os recursos materiais e imateriais da pessoa. Portanto, considero difícil a dissociação da pessoa que narra, até certo ponto, do lugar que ela ocupa no mundo por considerar a narrativa que a pessoa faz de si no lugar comum como um instrumento de reconhecimento social. Neste estudo, esse reconhecimento se deu na esfera da escola pública urbana e rural.

As paisagens que se abriram, à medida que entrava em campo, desvelaram vozes em meio às sombras das narrativas oficiais e iluminadas pela estética do ser pobre. Nesses encontros, repletos de experiências interpretativas, deixou-se a produção polissêmica narrar as densidades descritivas que compuseram os próprios cenários das escolas urbana e rural. Com efeito, pretendi dirigir a atenção para as matrizes pessoais de meus colaboradores. A minha intenção é relatar perfis desses atores para ajudar-me a revelar cenários do ambiente das escolas urbana e rural.

Tal como Dominicé (2010, p. 93) sugere, “a experiência da diferença social e a tomada de consciência da origem social modificam os ganhos e as perdas da história de vida”. Acrescento, no entanto, que a diferença territorial, no que diz respeito à escola, passa também a ter um papel preponderante nas autorregulações dos colaboradores em relação à escola urbana e à escola rural. Ou seja, as pessoas que vivem no espaço urbano têm a percepção a partir do cenário urbanocêntrico. Já para as pessoas que vivem no contexto rural, a visão sobre a escola não se baseia somente no âmbito rural, mas também no urbano. Dentro desta configuração, no dizer de Brandão (1990, p. 35), a submissão da cultura camponesa se dá no poder simbólico dos códigos da “cultura capitalista letrada e urbana”.

Considerei em minha entrada em campo a aproximação dos processos de aprendizagens como formas de aprender os conteúdos de saberes que a vida cotidiana oferece. Nesse sentido, destaco nas falas de meus colaboradores a condição das aprendizagens individuais e coletivas como passagens importantes e acesso formativo para eles. A esse respeito, as famílias do assentamento rural foram importantes ao resgatarem aspectos de suas histórias de vida e articularem com a educação escolarizada de seus filhos, bem como os depoimentos dos professores, ao relatarem seus percursos formativos implicados com a condição de pobreza.

Os encontros com os colaboradores definiram-se em muitas vozes, o que me faz lembrar o que Bakhtin (2005, p. 44; 197) chama de “polifonia” como “vozes diferentes, cantando diversamente o mesmo tema (...)” (itálicos do autor), tornando possível compreender a “capacidade inata de sentir a palavra do outro e os meios de reagir diante dela”. Isso traduz, com certeza, o imenso valor das trocas que se sucederam durante as idas e vindas ao locus da pesquisa.

No contexto das entrevistas e das observações vivenciais, tomei o cuidado de frisar aspectos significativos em relação às histórias de vida trazidas pelos narradores. Assim como Bruner (1997, p. 54), acredito que “nós sabemos, a partir da nossa própria experiência de contar histórias consequentes sobre nós mesmos, que há um lado inelutavelmente ‘humano’ na produção de significado. E nós estamos preparados para aceitar uma outra versão como ‘apenas humana’” (itálicos do autor). Diante disso, respeitei as narrativas e os fluxos que se moveram no diálogo, entendendo que se deu na construção da narrativa de vida como prática formativa de conhecimento e de aprendizagem. Nesse caso, tal como diz Dominicé (2006, p. 350), considerei a participação dos meus colaboradores como suporte de relações de múltiplos saberes:

A reconstrução do horizonte biográfico necessita de um trabalho de formação que não se reduz a um único registro psicológico de desenvolvimento pessoal. Ela aponta para uma globalidade feita da aliança de saberes múltiplos e de aprendizagens complementares.

Assim, os atores tomaram consciência de suas histórias de vida, ao narrá-la, apercebendo-se dos seus espaços e aprimorando-os. Esse aspecto se deu no âmbito rural, sobretudo, nos encontros com as famílias do assentamento rural, bem como nos encontros com os professores da escola. As histórias de vida narradas por esses grupos permitiram-me compreender, de um modo geral, o movimento das interações estabelecidas que foram se configurando nas diversas etapas de suas vidas. A despeito

disso, Moita (2000, p. 116) nos diz: “Só uma história de vida põe em evidência o modo como cada pessoa mobiliza os seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias, para ir dando forma à identidade, num diálogo com os seus contextos”.

Descobri, portanto, o papel do professor como consciente de seus múltiplos saberes, sejam eles acadêmicos oriundos de sua formação inicial, sejam os delineados ao longo do percurso de sua vida. Esse professor se manifestou em um movimento de repertórios existenciais, na direção da apropriação de novos conhecimentos. Potencialmente, descobre-se em um mundo novo, podendo surgir perspectivas de realização e de atualização das pessoas em relação às tomadas de decisões.

Os percursos de vida analisados deixaram vestígios da pobreza, característica que uniram os domínios da percepção do real e do imaginário de cada um dos participantes. Nas falas de alguns professores, imprimiu-se a possibilidade de superação da pobreza material de seus alunos, o que me permite afirmar que, até certo ponto, eles reformaram a sua prática docente com base nas perspectivas, necessidades e identidades de classes e grupos. É ilustrativo o depoimento da professora Jaqueline, da escola rural:

Percebi desde muito cedo que a minha vida seria educar outras crianças pobres, de mostrar, pela escola, que é possível ela ser feliz, mesmo na condição de pobreza. E isto faz com que eu reflita minha prática docente todos os dias, para eu mudar o que eu tiver que mudar.

Parece que essa docente era consciente da realidade de seu aluno e de que poderia atingir com mais eficácia os objetivos propostos para uma aprendizagem significativa. Apresentou-se, assim, como uma educadora da esperança, que confiava na possibilidade de mudança; via na utopia dos empobrecidos a possibilidade, pela educação, de se superar e viver em um mundo harmônico e justo. Comprometeu-se, desde o início de sua trajetória docente, a orientar o aluno para a reflexão crítica de sua realidade, como condição de sua liberdade. Esse tipo de professor está presente no pensamento de Freire (2005, p. 94) quando este afirma:

Desde o começo, seus esforços devem corresponder com os dos alunos para comprometer-se num pensamento crítico e numa procura da mútua humanização. Seus esforços devem caminhar junto com uma profunda confiança nos homens e em seu poder criador. Para obter este resultado deve colocar-se ao nível dos alunos em suas relações com eles.

Para a professora Jaqueline, pela ação havia a possibilidade de reinventar o mundo. Portanto, posso dizer que, para ela, havia esperanças de que algo novo surgisse na escola, o que a fazia se aproximar de Freire (2003a, p. 104), quando ele diz que “a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”.

A questão está em saber se preferimos, ainda, viver na ilusão de uma suposta neutralidade ideológica da sociedade que aí está e da qual somos parte. Nesse sentido, é importante realçar a percepção da professora Sônia, da escola urbana:

Somos patriotas para a copa do mundo, para a seleção, mas pouco patriotas para o que é da ordem do público, o que é de todos, principalmente saúde e educação, os direitos básicos do cidadão. Mais triste que eu vejo é que a proposta na lei de educação é de formar o cidadão, ele tem que ter direitos e oportunidades iguais. Ele não sabe reivindicar seus direitos, fica que nem uma “vaca de presépio”. Acha que o paternalismo do Estado é a solução. Vai ser mais um para sofrer, trazer outros filhos para sofrer, poucos conseguem romper essa bolha. A escola nada contribui para esse descaso.

Nos meses em que estive imerso no contexto dos colaboradores da pesquisa, elegi algumas histórias de vida para apresentá-las aqui. Esses testemunhos foram obtidos por meio das entrevistas formais, o que exclui, portanto, as informações obtidas em contatos informais durante a minha vivência em campo.

No documento A escola e a opção pelos pobres (páginas 137-141)