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Surgimento e manutenção das condições de preconceitos, intolerância

No documento A escola e a opção pelos pobres (páginas 131-137)

No isolamento, na condição de solitário e somente quando estamos a sós, na ausência da presença dos demais, não podemos nos associar como humanidade. A humanidade pressupõe, sempre, a presença de outros homens juntos à vida de cada um de nós. A condição humana hoje, investida na condição de sociedade de massa, tende a desaparecer como espaço público da presença de outrem, pois a sociedade de massa, além de destruir a esfera privada, tem destruído a dimensão pública, âmbito do acontecimento comum aos seres humanos.

O que se vê em nossas escolas públicas são políticas patrocinadas pelo Estado, voltadas a suprirem as necessidades básicas dos alunos pobres. Quando isso ocorre na sociedade, de acordo com Arendt (2006, p. 88), “as necessidades se transformam em interesses”. O que estava restrito ao campo da privatividade do lar na Grécia Antiga tornou-se atividade de ordem pública nos dias atuais. Isto é, o gozo da liberdade no espaço público só pode ser vivenciado quando as necessidades individuais de sobrevivência são supridas.

Como as necessidades básicas ainda não foram suprimidas em boa parte da população brasileira, o Estado tutela políticas que conduzem e sujeitam as pessoas a condições de penúria. A esfera política torna as pessoas, sobretudo as mais empobrecidas, em animal laborans. Ao tentarem suprir as necessidades elementares da vida, essas pessoas não apresentam condições próprias de se manterem, o que faz com que o Estado intervenha em suas vidas. Isso nos leva a crer que os pobres são identificados, cada vez mais, com o animal laborans e que estão aprisionados às necessidades básicas da vida.

A necessidade obriga a pessoa a comportar-se e não a agir. Pela lei da sobrevivência, o caráter revelador, que é próprio da ação na pluralidade, aniquila-se. Perde-se, assim, a iluminação da existência humana frente ao grau público, dado que a economia suplanta a política.

Justificam-se, hoje, políticas públicas que definem merenda escolar, livro didático, fardamento, transporte escolar, dentre outros. Consequentemente, não haverá liberdade na escola pública enquanto as nossas crianças estiverem assujeitadas às políticas de suprimentos das necessidades básicas, pois as políticas estabelecidas pelos governantes acabam roubando, da esfera da privacidade, as condições de muitas famílias de exercerem o poder de suprirem as suas necessidades básicas. Nesse sentido, em ambas as escolas pesquisadas apareceram, nas falas das famílias, sobretudo, o grau de satisfação em ter benefícios de políticas de suplementação de renda e de bens de consumo.

Como sustenta Arendt (1992b, p. 159), “a liberdade para a ‘boa vida’ assenta-se na dominação da necessidade”. Uma sociedade que prega a conformidade, o isolamento e o cumprimento de comportamentos previsíveis estabelece uma espécie de totalitarismo em meio à sobrevivência individual. Nessas circunstâncias, a “novidade” não pode aparecer em âmbito político e a liberdade fica sob ameaça. Sem a promessa de liberdade, o homem se ofusca na realidade do domínio político (CORREIA, 2008).

A escola formal brasileira contribui para o embaraçamento dessa situação de posição acrítica e alienada que só corrobora as deploráveis manifestações de nossas, cada vez piores, condições de existência, fechando-se no próprio mundo agonizante das angústias e agruras do ser humano. O grande desafio talvez seja o de ampliar as margens do pensamento crítico e valorizar o ser humano frente aos desafios que a escola oferece.

O movimento da “Educação para todos”, em vista de uma mão de obra qualificada para o trabalho, oficialmente aparece em nossa Carta Magna. De acordo com a Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988):

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Título VIII, Capítulo III, Seção I, Art. 205) (itálicos nossos).

Por conseguinte, a educação prepara a mão de obra necessária para suprir as expectativas do mercado. A cidadania para as classes populares no Brasil é marcada pela rápida vinculação à lógica capitalista, a de que a todo custo é preciso trabalhar para alimentar a cadeia do paraíso do consumo. Nas palavras de Alves Neto (2009, p. 190), “uma sociedade de consumo é o outro lado necessário de uma sociedade de trabalhadores”. A emancipação política ou social foi substituída pela ascensão do trabalho para assegurar as coisas necessárias e produzi-las em máxima abundância. Esse dispositivo de inclusão social pelo trabalho se aproxima do sentimento de pertença por aquilo que se consome.

Constatei também que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) corrobora com a Constituição Federal do Brasil ao prever que “A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social” (BRASIL, 1996, Título I, Art. 1º, § 2º). Também o Plano Nacional de Educação (PNE) – 2011-2020 explicita a diretriz de “formação para o trabalho” (BRASIL, 2010, Art. 2º, V). Como visto, o marco regulatório prevalece como premissa do desenvolvimento humano em vista do mercado de trabalho.

Estudos organizados por Regattieri e Castro (2013), publicados pela Unesco, com o apoio do Ministério da Educação, objetivam contribuir para a elaboração de conhecimentos e permitir, com isso, avanços efetivos na consecução das metas da “Educação para Todos”. Sob esta visão, manifestam que existe um “protótipo curricular de ensino médio orientado para o trabalho e demais práticas sociais”, por isso tanta preocupação por parte do governo federal em atender às demandas do mercado para entregar a este os jovens trabalhadores (de)formados pela escola.

A inauguração da propriedade privada e a expropriação do trabalho levaram à dupla face da educação, ao invés de produção de conhecimento, estamos imersos no valor de troca de mercadorias, naturalmente com interesses ligados ao mercado. Vive- se, ainda hoje, sob a égide do trabalho explorado, replicando a figura do escravo, do servo e do assalariado.

Existe na educação o complexo entendimento de que ela transforma o ser humano, vincula a individualidade e a generalidade humana. Em sentido restrito, a educação se insere na forma de produção. Pode-se inferir que a escola que temos atende ao sistema do capital. Ela ajusta os indivíduos ao sistema vigente, o que, por sua vez, também determina alguns ajustes no próprio sistema, o que resulta em grande parte do descrédito da própria escola, tornando-a espaço da banalização da violência.

Preconceitos, intolerância e violência foram percebidos e enraizados na comunidade da escola urbana.

Os territórios existenciais se configuram por meio de preconceitos em relação às pessoas e se enraízam em mensurações e codificações, tornando-as objetos sociais. Não é diferente a opinião de Sandra, aluna da escola urbana, quando se referiu à valorização das pessoas, de modo geral, em relação à classe social a que ela pertencia: “se uma pessoa chegar e se tiver um pobre e um rico, eles vão escolher o rico, porque tá bem vestido, tá melhor de aparência. Eles não olham pela qualidade da pessoa, eles olham mesmo pelo que a pessoa tem”.

Estudos realizados por Galvão e outros (2009) apontam para o preconceito que boa parte dos docentes do Distrito Federal têm em relação ao local de moradia de seus estudantes. Verifiquei isso, nesta pesquisa, pela descrença que os professores da escola urbana demonstraram em relação ao público de seus estudantes. Para a professora Léia, por exemplo, “a comunidade é circundada por violência, tráfico de drogas e desemprego”. Afirmação que também o professor Pedro fez quando identificou as carências físicas e emocionais dos alunos como limitadoras:

Os alunos trazem muitas dificuldades de relacionamento, de convivência, além da carência no meio em que vivem. Essa comunidade é muito violenta, faz parte da cultura das pessoas serem violentas. É uma forma muito agressiva, comecei a pensar, a violência está enraizada, numa brincadeira, num jogo. (...) Eles falam gritando, berrando. Com todo respeito, a cultura dessas pessoas é diferente da bagagem que eu tenho. (...) Já sofri ameaça aqui de um ex-aluno.

Nesse ponto, os alunos da escola urbana assinalaram a bagunça durante as aulas, o que interrompe as explicações que os professores fazem de suas disciplinas. As brigas constantes, os empurrões entre os alunos e xingamentos são alguns exemplos que eles não veem sentido na escola, “uma perda de tempo para nós, aqui tudo é igual do mesmo”, disse uma aluna. Do mesmo modo, uma mãe de aluno reconheceu que o colégio tinha muita bagunça. De acordo com outra professora, Sônia, “a violência em sala, a indisciplina é muito grande, o que acaba gerando o próprio bullying”. Confirma-se assim a constatação de Maria José, avó de alunos da referida escola, ao descrever que um de seus netos é vítima de violência física de um colega de classe, “ele vive batendo na cabecinha de meu neto”, afirmou a senhora.

Em meio às violências, preconceitos, drogas e “bagunças”, para a maioria dos professores e pais dos alunos, a escola deveria ter segurança ostensiva para zelar pela “boa conduta” dos alunos. O medo de os filhos se envolverem com drogas é patente por parte dos pais da escola urbana e até já houve abandono de estudo por alguns alunos, em decorrência do tráfico de drogas, e alguns chegaram a morrer.

A violência cultivada entre seus atores pode ser, ao mesmo tempo, um protesto contra a escola ou um meio “silencioso” de responder à escola democrática dos pobres em que essa igualdade dos indivíduos seria uma farsa diante das desigualdades sociais.

Estudos de Silva (2012) sobre as relações entre a favela, a escola e a sociabilidade das crianças no território urbano é ponto-chave para entendermos que muitas vezes as crianças de nossas escolas públicas “não têm jeito”, na opinião de professores. Sobre isso, Sônia, professora da escola urbana, afirmou que o aluno pobre e ignorante “vai ser mais um para sofrer, trazer outros filhos para sofrer. Ele não sabe reivindicar seus direitos, que nem uma “vaca de presépio”, que acha que o paternalismo do Estado é a solução”. Ainda em relação aos professores da escola urbana, estes pareciam ter mesmo baixas expectativas no que dizia respeito aos alunos. No dizer da professora Amália:

Eles não querem ir além, avançar, eles não têm esse interesse. É como se o ambiente em que eles vivem não desse, eles não visualizassem nada de interessante. Isso é muito triste, o nosso trabalho e o nosso esforço é pra que eles realmente consigam ser um cidadão honesto, trabalhador, que eles avancem na vida. Mas, infelizmente, é a minoria que a gente percebe que desperta para isso, infelizmente, é a minoria.

Em compensação, para Dubet (1997, p. 231), “os professores mais eficientes são aqueles que acreditam que os alunos podem progredir, aqueles que têm confiança nos alunos”. Sobre isso, a professora Dilma, da escola rural, enfatizou que

Os professores têm que estar preparados para se desprender do conteúdo das disciplinas. Porque a preocupação é passar o conteúdo e o menino tem que aprender a ler, escrever, contar, armar e efetuar. Eu acho que escola falha nesse sentido. (...) Precisamos preparar esses meninos para a vida. Eu deixo que eles falem, porque eles precisam sonhar. Eu acredito nesses meninos!

Em entendimento contrário, Tiago, diretor da escola urbana, apresentou baixa expectativa em relação aos alunos de sua escola. Disse-me, em certo momento, que os estudantes tinham ali baixa autoestima, bastava atravessar os muros da escola e ver uma

ilha de prédios denunciando a riqueza da outra cidade administrativa. “Como os estudantes deveriam se sentir vendo aquela realidade de riqueza e estudando em uma escola pobre?”, perguntou-me o diretor incrédulo. Acrescentou ainda que “estudantes advindos de contextos muito pobres como aqueles, quais seriam as suas perspectivas?”. Patenteiam-se, assim, as expectativas que a escola traça para ao seu público: coagindo-o, de certo modo, a se identificar com o fracasso, confirmando os mecanismos e as multiplicações de uma escola “injusta”. Pesquisas de Dubet (2004, p. 542) sobre o que é uma escola justa demonstram que “a expectativa dos professores é menos favorável às famílias desfavorecidas, que se mostram mais ausentes e menos informadas nas reuniões de orientação”. Isso me fez inferir que as desigualdades sociais pesam muito nas desigualdades escolares e que, a depender das concepções que se tenha da pessoa do pobre, a escola pode ser promotora de injustiça social.

O intento do capitalismo é dissociar o discurso da realidade, ou seja, a dissimulação como verdade. No fundo, o slogan educacional deveria assumir a forma de “garantir a acumulação do lucro”; o que o torna duro demais para acreditarmos. A produção de um discurso mitificado no fracasso explica, em parte, a própria exclusão social reafirmada, em parte, pelos preconceitos que se disseminam em atos intolerantes e violentos. Este é um risco se a escola continuar a fazer a opção de estratificar socialmente o seu público.

4 HISTÓRIAS DE VIDA ENTRELAÇADAS À ESCOLA

“Não se pode dizer como a vida é, como a sorte ou o destino trata as pessoas, a não ser contando a história”.

(Hannah ARENDT, 1995, p. 279)

No documento A escola e a opção pelos pobres (páginas 131-137)