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O homem moderno frente ao mundo: alguns lampejos

No documento A escola e a opção pelos pobres (páginas 105-110)

Ser moderno é mover-se na aventura, no poder, no crescimento, na autotransformação e transformação das coisas ao redor. A aparente unidade que se fragmenta diante das mudanças, das contradições e angústias produzidas em nossa época ameaça destruir tudo o que temos, o que sabemos ou o que somos. Para Berman (2007, p. 24), “ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, ‘tudo que é sólido desmancha no ar’”.

A modernidade trouxe para o homem a sensação de estar protegido com os bens privados. Ao invés de ter aproveitado sua riqueza material e privativa para se dedicar aos assuntos públicos, ele quis, antes de qualquer coisa, que a sociedade protegesse os seus bens. Contudo, se distanciou, e muito, do sentido clássico grego, do domínio público e político. O mais agravante é que a propriedade, na Modernidade, coincide com a pessoa, ela se justapõe ao indivíduo. Como bem manifesta Arendt (2010, p. 86), ao afirmar que “a propriedade moderna perdeu seu caráter mundano e passou a situar-se na própria pessoa, isto é, naquilo que o indivíduo somente podia perder juntamente com a vida”. É a própria alienação do indivíduo.

Para Arendt, o marco do limiar da Modernidade está em três acontecimentos decisivos na virada do século XV para o XVI: a descoberta da América, a reforma protestante e a invenção do telescópio; com eles inaugurou-se um novo tempo. Importante destacar que, para Arendt (2010, p. 7), “a era moderna não coincide com o mundo moderno”. A era moderna começou no século XVII com alguns fatos científicos. Quanto ao mundo moderno, a autora se refere a três acontecimentos decisivos ligados aos nomes dos grandes navegadores, de Martinho Lutero (1483-1546) e de Galileu Galilei (1564-1642).

O evento da expansão marítimo-comercial, entre os séculos XV e XVI, provocou profundas transformações no mundo europeu ocidental. Basta pensarmos na ampliação das rotas comerciais em escala mundial, bem como no deslocamento do eixo econômico do Mediterrâneo para o Atlântico, devido à conquista da América e à multiplicação de companhias de comércio. Arendt (2010, p. 311-312), nesse sentido, observa que “os homens vivem agora em um todo contínuo com as dimensões da Terra, no qual mesmo a noção de distância, inerente até à mais perfeita contiguidade das partes, cedeu ante o furioso ataque da velocidade”.

O aperfeiçoamento de instituições financeiras e, consequentemente, a valorização do capital comercial como consequências da expansão ultramarina, pelo visto, estimulou a formulação de teorias que justificavam o lucro e a acumulação de riqueza. Como destaca Arendt (2010, p. 318-319), esse “processo de acúmulo de riqueza, tal como conhecemos, estimulado pelo processo vital e, por sua vez, estimulando a vida humana, é possível somente se o mundo e a própria mundanidade do homem forem sacrificados”. O homem, sob essa ótica, passa a dar sentido à sua existência pelo que ele tem.

Nesse contexto, a Igreja Católica atribulou-se pelas novas mentalidades “modernas” que se espalhavam na Europa, incorporadas pelo desenvolvimento da burguesia, das relações de produção capitalista e da constituição do Estado nacional absolutista. Essas novas forças enfrentavam os interesses ideológicos da Igreja atrelados a um passado feudal. Dentro dessa visão, nascia a Reforma protestante e a Contrarreforma da Igreja Católica, ao desdobrar-se em vitória do nacionalismo contra o internacionalismo político do papado. A Reforma acarretou, enfim, a cisão da cristandade.

A Reforma protestante legou à economia, mais tarde, no século XIX, uma apologia à prosperidade. Prosperidade ligada aos “eleitos” e à redenção destes frente à danação da pobreza. Certamente o acento se deu sobre o elo direto entre o homem e Deus, quando o trabalho passou a ser estimulado como uma forte atividade no mundo. Certamente, para corroborar com essa ideia, é emblemático o pensamento do alemão Max Weber (1864-1920). Com ele, o selo ético do trabalho e a noção de vocação como predestinação individual interpretaram o desenvolvimento do capitalismo moderno.

A visão ética protestante sobre o capitalismo estimulou a pessoa a se empenhar no mundo de modo produtivo, visto que, para Weber (2012, p. 82), o “espírito capitalista (...) pôde surgir somente como resultado de determinado influxo da Reforma [ou até mesmo: que o capitalismo enquanto sistema econômico é um produto da Reforma]” (itálicos do autor). A ética do trabalho e da prosperidade, logo, teve o respaldo da religiosidade, antes aprovada pela esfera econômica.

Na gênese da Reforma, Martinho Lutero (1483-1546) já advertia sobre a necessidade de uma alfabetização generalizada para o povo. A educação escolarizada surgida nos países protestantes sustentava uma educação para os pobres e a nova religião serviria de base para a educação. Com esse reformador, aprovava-se a extinção da universidade tradicional e conclamava-se “os senhores a fundarem bibliotecas e a

forçarem os pais a instruir os filhos” (NUNES, 1980, p. 100). A frequência à escola seria obrigatória e o Estado deveria organizar o ensino, os métodos didáticos para adaptar-se às crianças. Vemos, dessa maneira, a célula da escola pública tutelada pelo Estado. O reformista, convencido de que a ignorância levaria, cada vez mais, ao atraso e à estagnação da cidade sem vislumbrar o desenvolvimento, procurou em seus escritos dar um tom à Reforma por meio da educação. Desse modo, Lutero (1995, p. 309) assinala que

O progresso de uma cidade não depende apenas do acúmulo de grandes tesouros, da construção de muros de fortificação, de casas bonitas, de muitos canhões e da fabricação de muitas armaduras (...) o melhor e mais rico progresso para uma cidade é quando possuem muitos homens bem instruídos, muitos cidadãos ajuizados, honestos e bem educados, capazes de acumular tesouros e riqueza, conservá-los e usá-los bem.

Naturalmente que essa educação não estava neutra da intencionalidade de ocasionar o aumento da produtividade do trabalho e da prosperidade econômica. Pelo contrário, esse tipo de educação nasceu com o desejo de ir ao encontro dos movimentos das mudanças ocorridas nos meios social, político e econômico. Bem verdade que o protestantismo, sob a ótica da prosperidade ou do progresso, teve relevância sobre o desenvolvimento econômico naquelas áreas nas quais veio a difundir-se.

A profissão/vocação teve na Reforma a defensora de que o trabalho perdia o estigma de obrigação e sobrevivência e passou a ter um caráter de profissão. Afinal, Deus chama o fiel para servir à sua obra no mundo. Lembro que quando Max Weber escreveu A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, entre os anos de 1904 e 1905, a universidade alemã passava por transformações no sentido de especializações, divisão de disciplinas, pesquisas empíricas ligadas ao desenvolvimento e ao progresso dos meios da vida, sem falar que as ideias Positivistas e Iluministas pairavam sobre as mentalidades alemãs. Para Lucena e Lucena (2011, p. 218), o pensamento weberiano traduz que “o capitalismo é definido pela existência de empresas cujo objetivo é produzir o maior lucro possível, e cujo meio é a organização racional do trabalho e da produção”.

Outro ensinamento de Weber (2012, p. 161) é o de que “a massa dos trabalhadores e dos artesãos só obedece a Deus enquanto é mantida na pobreza”. Querer ser pobre era o mesmo que querer ser um doente. Permanecer pobre pode ser um desígnio da preguiça. Nesse ponto, sobre a ascese protestante intramundana, enriquecer

rompe os muros que cercavam a ambição pelo lucro e o rico seria bem-visto aos olhos de Deus. A bênção de Deus se dá quando a pessoa obtiver a riqueza como “fruto” do trabalho em uma profissão (WEBER, 2012). Nasce, talvez aqui, a ideia de secularização do consumismo pela via do acúmulo da propriedade com as bênçãos de Deus.

Nota-se que o rígido teocentrismo da Idade Média estava com os dias contados, substituído pela glorificação do humano, pela preocupação da relação homem-natureza. A ideia central seria a de estudar o homem e a natureza e, por conseguinte, levar ao progresso das ciências modernas. Afinal, o renascimento científico se estabelecera para impulsionar essa nova mentalidade de progresso; tinha como caraterísticas a impressão das obras da Antiguidade Clássica, o espírito crítico e a rejeição da autoridade teológica para explicar o homem.

Com essa visão, o homem passou a interpretar a natureza como objeto de sua ação e de seu conhecimento. Com Galileu, especificamente, a técnica para formular os fundamentos de uma teoria em forma matemática idealizada tomou visibilidade com um objeto fabricado pelas mãos humanas: o telescópio.

As explicações teológicas e metafísicas não mais satisfaziam o homem moderno, cioso de sua objetividade e de querer compreender as leis da natureza. Somente a razão poderia encontrar os meios para explicar os principais fenômenos da natureza, a qual a Escolástica, ao associar fé e razão, por meio dos ensinamentos aristotélicos, não poderia mais explicar.

Ao enfatizar as consequências que a Modernidade trouxe ao homem, Guardini (2000, p. 52) enfatiza que “a Idade Moderna gosta de fundamentar as normas da ciência na sua utilidade para o bem-estar do homem. Assim se ocultaram as devastações produzidas pela ausência de escrúpulos. Creio que o futuro falará doutra maneira”. O próprio saber foi corrompido, pois a aquisição de um determinado saber, indissociável da formação do espírito, destituiu-se em favor do peso de uma mercadoria. O que é lamentável, pois o conhecimento separável do ser, do fazer e do conviver só pode desintegralizar o homem. Concordo com Moraes (2011, p. 138) quando afirma que o conhecimento é “inseparável da ontogenia” das pessoas.

A exigência de explicar a natureza por meio da própria natureza levou o homem a reduzir esta à pura objetividade mensurável. Os próprios elementos da natureza são purificados pelas conexões metafísico-teológicas. Metafísico, pois os pressupostos aristotélicos foram substituídos por leis gerais e universais, e teológicos por causa da eliminação dos últimos escolásticos. Com o Renascimento científico dos séculos XVI e

XVII, os homens deixaram de ser movidos pelos impulsos primitivos e supersticiosos ligados à Igreja para buscarem as suas conveniências na natureza; as leis, afinal, já estavam lá.

A pretensa conquista do universo resultou, paradoxalmente, na perda do mundo. Ao mesmo tempo em que dominamos o perdemos. Dessa maneira, parece que o homem se percebe em um mundo enclausurado, onde a sua existência se revela em desabrigo e sem o sentido da existência. A finitude do mundo aumenta o desamparo, por certo além do mundo não há nada, de modo que sem a morada na Terra tudo se torna somente ilusão. Tal reflexão vem complementar o que Guardini (1963, p. 99; 108) diz sobre a vivência no mundo, de que este sem morada é tudo

atrás da tentativa de conquista das coisas, desperta o sentimento de que elas são aparências. (...) A base da aparência torna-se aí a base da autonomia desesperada, da existência fechada na sua carência de sentido. O mundo fechou-se sobre si mesmo. Não se sai dele, quer caminhando para o interior, quer subindo para o alto. Está cerrado no seu topo como no seu seio.

Quando o francês René Descartes (1596-1650) liderou o racionalismo francês no século XVII com a matemática analítica, interromperia a explicação divina das coisas e guiaria dúvidas e respostas ao homem pelo rigor dessa ciência. O homem passou a prever consequências do agir no mundo. Para Descartes (1973, p. 135), “Nem um Deus nem um mau espírito podem alterar o fato de dois e dois serem quatro”.

O mundo da experimentação científica, embora seja criado pelo homem, possibilita e aumenta o seu poder de criar e de agir, mas o aprisiona em sua própria mente, nas limitações de seu intelecto, retirando das coisas materiais, que são visíveis, a comparação essencial para definir as coisas imateriais e inimagináveis. O homem que então se compreende como construtor de sua realidade fecha sua mente para a representação da própria natureza e se abre para o mundo científico. Ou seja, um mundo comprovado por experimentos passou a ser aceito como real, porque é feito por ele, como “milagre da vida” (ARENDT, 2010, p. 335). Aquilo que antes era prerrogativa da ação divina passou para a onipotência humana.

As novas ciências baseadas na lógica matemática e na astrofísica embalavam todo o pensamento dos pensadores, à época, para explicar o mundo. A esse respeito merece a afirmação, mais uma vez, de Descartes (2008, p. 17): “Eu fiquei especialmente encantado com a matemática, por causa de certeza e evidência dos meus raciocínios”.

Descartes desembaraçou, pela dúvida, o ego pensante de dado exterior, de tudo o que foi adquirido ou recebido para encontrar as ideias claras e distintas que trazemos inatas na mente. Como já explicitado, ele traz o ponto arquimediano para dentro da mente e faz vincular o pensar com o fazer para eliminar a contemplação. Com isso, a filosofia se tornou serva das descobertas das ciências. Assim como o pensamento teológico foi banido das verdades terrenas, finalmente a fé em Deus afasta-se da razão.

A construção do homem historicamente social, do animal laborans para homo faber deve-se ao salto da natureza de reprodução para a inauguração da consciência do fazer. O homem que se mantinha na sobrevivência passou a ser o trabalhador que planeja o que faz, que dá finalidade à sua ação. Novos complexos foram vinculados à ação do homem como o “fazedor” de coisas. Na educação, não diferentemente, desde a concepção da escola tecnicista, o que importa é aprender a fazer. Uma educação que quer se voltar para o trabalho e que legitima a divisão de grupos sociais. No caso, aqui, o grupo dos pobres e a pobreza vistos como um fenômeno inerente à própria estrutura social. Em termos de escola, como afirma Saviani (2005), essa estrutura só pode reforçar a dominação e legitimar a pobreza.

No documento A escola e a opção pelos pobres (páginas 105-110)