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O pobre na Bíblia

No documento A escola e a opção pelos pobres (páginas 184-188)

No Antigo Testamento (BÍBLIA, 1995), todos os bens terrenos eram estimados, inclusive a riqueza. Na história dos patriarcas, a posse de bens materiais era sinal da bênção divina (Gn 24, 35). Com a conquista da Palestina, a vida nômade é substituída pela vida do camponês, da propriedade privada. Na época bíblica judaica do pré-exílio

babilônico, século VI a.C., os profetas reclamavam por justiça em relação aos pobres; com efeito, eles eram oprimidos, pequenos e indigentes (Am 2, 6; Is 10, 2; Eclo 4, 1), são os piedosos que se opõem aos detentores de poder. Com Sofonias, por exemplo, os pobres começam a adquirir uma denotação ética e escatológica: os anawim são os que estão submetidos à vontade de Deus e aguardam a sua providência. O protesto feito por muitos profetas se baseava na antiga lei de Deus, na qual o pobre pertencia a uma desprezível e baixa classe social, estava em estado diminuto de capacidades e de força. Portanto, desprezado pela sociedade, mas guardado por Deus. Esse pobre, materialmente falando, se encontrava marginalizado e socialmente dependente, incluso, por sua vez, por motivações religiosas. Essa característica de inferioridade ou dependência social era a que mais contava para a mentalidade judaica da época.

No Novo Testamento (BÍBLIA, 1995), todavia, Jesus desenvolveu um plano novo em relação ao pobre. Ele justificou a sua mensagem no Reino de Deus ou dos Céus. A realização desse reino deve ser vista no mandamento do amor livre de obstáculos materiais ou terrenos e enraizado no próprio amor de Deus. Para Pagola (2010, p. 126), esse reino “consiste em libertar a todos daquilo que os impede de viver de maneira digna e feliz”. Jesus viveu as promessas messiânicas da evangelização dos pobres, pois ele próprio era a boa-nova. Jesus não ensinou a rejeição à riqueza, mas nos alertou para o perigo que ela poderia causar em relação à liberdade, uma liberdade que abre para a dimensão do outro, do mundo e de Deus. Os bens materiais, nessa acepção, são meios para o serviço ao próximo na caridade fraterna. Portanto, a moderação na busca e posse de bens terrenos pode elevar o ser humano à sua condição de dignidade perante ele mesmo e o mundo.

A pobreza como valor significa uma disposição interior de desapegar-se dos bens materiais ou de qualquer fixação que impeça o ser humano de se relacionar com o outro na comunhão. Esta disposição, baseada na liberdade, leva a pessoa ao encontro genuíno com ela mesma e com os demais. A virtude própria do pobre no espírito é a liberdade. Esta condição deve favorecer toda ascensão espiritual e toda verdadeira criatividade em qualquer dimensão da poética humana.

O pobre em língua hebraica – ‘aní – está ligado à cosmogonia, à obra criadora de Deus, ao caos, ao vazio, ao nada e de onde Ele pode agir. Em Gelin (1953, 1973), Oliveira (2005) e Orofino (2011), no entanto, encontrei três palavras em hebraico que fazem referência ao campo socioeconômico: ‘aní – que geralmente é traduzida por pobre, dependente, humilhado, aflito. A palavra no plural corresponde a anawim. Diante

dele está o opressor. Outro sentido semântico é o de ´Èbyon – com foco na pessoa indigente, mutilada, sem dinheiro, necessitada, desvalida, desamparada, mas também considerada o pobre “desejoso”. Esse tipo de pobre mendiga porque é privado da satisfação das necessidades básicas de alimentação e vestuário. É o indigente, o necessitado, indefeso frente aos poderosos; um oprimido que clama por justiça. Nesse estágio, geralmente, indica estar em pecado diante de Deus. E, por fim, dal – entendida também como a pessoa na condição de desvalida, sem meios, fisicamente fraca e socialmente sem prestígio ou importância. Por ser fraca, pequena, torna-se, frequentemente, oprimida. Dessa forma, designam o ser pobre como indigente, necessitado, vítima de injustiças, ou mesmo depositário de sentimento ou atitude de sofrimento e humildade.

No Antigo Testamento, a pobreza ora aparece como vergonha ou castigo, preguiça e descaso, ora como abençoada e predileta de Deus (OROFINO, 2011). Por outro lado, ser nada, estar completamente aberto, é a condição para acolher o Absoluto. Nesse último sentido, não seria esse o estado de ser pobre no espírito? De estar permanentemente aberto a acolher o outro, o mundo e o Absoluto?

De qualquer forma, os nossos idiomas modernos traduzem a pobreza como ausência de bens, dão uma conotação econômica, a exemplo das línguas grega e latina. Porém, no testamento bíblico, o pobre é menos um indigente que um inferior, um pequeno, um oprimido: trata-se de uma noção social (SANTA ANA, 1980). De modo igual, a palavra anawim pode ser traduzida como pobres, infelizes, pequenos, humildes ou sofredores. Aqueles que se reconhecem pequenos diante de Deus, que se curvam diante dele. Essa acepção dá-nos um indicativo conotativo de atitude interior. São os oprimidos, sujeitos às perseguições, despojados de seus bens, envolvidos em uma trama de infelicidade.

Mais ainda, biblicamente, Hayen e Régamey (1965) também defendem que os anawim não eram considerados para este mundo, eram reduzidos ao mais baixo nível: tornavam-se “húmus”, em sentido de rebaixamento e curvatura diante da pobreza. A força do abandono do mundo condicionava essas pessoas a se realizarem no encontro com Deus. O desamparo do mundo aos anawim encontrava lugar e proteção no coração de Deus. É bom lembrar, todavia, que eles não se amarguravam, embora se considerassem um “nada” diante Dele, pois estavam disponíveis à Sua vontade. Por isso, ao empregarem a palavra pobre, os textos testamentários expressam toda e qualquer espécie de miséria e aflição, seja qual for a causa. Ela não está ligada,

somente, a uma pessoa carente de bens materiais, mas a toda aquela que sofre o aniquilamento e, portanto, experimenta o despojamento. Segundo essa visão, ser pobre é ser manso, humilde, modesto, bom e justo, igualmente, virtudes teologais encontradas nas bem-aventuranças.

Ainda, Oliveira (2005, p. 86) afirma que: “Anawim são os pobres sociológicos que, por terem feito uma profunda experiência de YHWH [Deus], colocam nele sua fé, confiança e esperança e nele encontram sua alegria”. Os pobres nessa condição têm a capacidade de acolher a Deus, numa abertura e disponibilidade para Ele. Tal ideia decorre de que o primeiro defensor dos pobres é Deus. Dentro dessa linha, considerei que a pessoa nessa situação não tem com quem contar no mundo e torna-se objeto do amor misericordioso de Deus. Desse jeito Ele se manifesta, em sua infinitude, por meio da abertura das pessoas. Em outros termos, o pobre no espírito torna-se aberto a Deus, na disponibilidade de quem o espera.

Os autores neotestamentários tinham em mente, ao se referirem aos pobres, não somente os grupos economicamente desprovidos, mas também aqueles que não tinham status social para governantes estrangeiros ou para autoridades de seu próprio povo. Desse ponto de vista, a palavra pobre não estava confinada, exclusivamente, àqueles que tinham pouco ou nenhum dinheiro. Com isso, na época de Jesus, os pobres eram identificados mais como o‘aní e `Èbyon. Na língua grega, o pobre corresponde, à época, ao termo πτωχός (ptôchós), em sentido de estar curvado ou em atitude de humilhar-se diante de alguém (OROFINO, 2011); mas também se dizia pobreza com a palavra ἀπορία (aporia), como falta de caminho (WAGNER DE REYNA, 1982), situação sem saída, sem salvação e em estado de angústia. Já na língua latina, a característica mais importante do pauper (pobre) era a sua dependência, por ter pouco (WAGNER DE REYNA, 1982; MOLLAT, 1989). Posso inferir que as raízes latinas mostram aspectos do pobre quantitativamente, enquanto na concepção grega tem um sentido mais qualitativo, por remeter às circunstâncias negativas de ordem biológica e psicológica.

Mas, para o meu entendimento de pobreza hoje, como uma condição social, foi importante me fixar na palavra pobre de etimologia latina, pois o pauper passou de adjetivo a substantivo, ao se identificar como categoria social – estado daquele que possui pouco e que é capaz de produzir pouco. Importante frisar que, desde o século XII, a pobreza foi reconhecida como condição social. Essa nova visão substituiu a visão anterior de pobreza como fraqueza ou culpa.

Mas quem são os pobres de hoje, efetivamente? As “mudanças sociais, econômicas e culturais estão determinando uma nova configuração da sociedade e, ao mesmo tempo, geram novas situações de pobreza”. Com relação a essas novas situações de pobreza, o Celam (2007, p. 38), com base na V Conferência Geral, em Aparecida, SP, alerta-nos: “O que existe hoje é a pobreza de conhecimento e do uso e acesso a novas tecnologias. Por isso, é necessário que os empresários assumam suas responsabilidades de criar mais fontes de trabalho e de investir na superação dessa nova pobreza”. Anteriormente a essa Conferência, a Igreja, por meio da Encíclica Populorum Progressio, na voz do papa Paulo VI (1997, p. 127), denunciou a pobreza por meio do analfabetismo, em que “A fome de instrução não é menos deprimente que a fome de alimentos: um analfabeto é um espírito subalimentado. Saber ler e escrever, adquirir uma formação profissional, é ganhar confiança em si mesmo e descobrir que pode avançar junto com os outros”. Embora a tônica aqui também seja a da formação profissional como processo de escolarização, não diminuiu o mérito da preocupação, por parte da Igreja, desse tipo de excluído em nossa sociedade.

Com efeito, os referidos documentos atingem a pobreza como algo novo diante da economia capitalista: grupos sociais que fazem parte da própria exclusão social. Com isso, fere um dos direitos fundamentais das pessoas: o de não sentirem pertença no mundo. Esses novos rostos de pobreza maculam os direitos humanos, visto que, em consonância com outro documento episcopal, o de Santo Domingo (CELAM, 1993, p. 134, n. 167), “Os direitos humanos são violados não só pelo terrorismo, repressão, assassinatos, mas também pela existência de condições de extrema pobreza e de estruturas econômicas injustas que originam grandes desigualdades”.

Diante disso, é inegável que vivemos uma época marcada de paradoxos. Por um lado, assistimos a um acelerado processo de fragmentação de valores humanos, que parece indicar uma das fases mais iníquas da História. Por outro lado, é inegável o avanço na consciência e na defesa dos direitos fundamentais que efetivam a dignidade humana. Contudo, temos a chance, diante das crises geradas pelas transformações abruptas em nossa sociedade, de refletirmos, eticamente, à luz da teologia e da filosofia, sobre os valores e as normas que devem orientar nossas ações, em busca de uma vida ética.

No documento A escola e a opção pelos pobres (páginas 184-188)