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O enfoque econômico da pobreza

No documento A escola e a opção pelos pobres (páginas 89-93)

Diante do exposto até o momento, em relação às desigualdades sociais e mensuração de pobreza, a noção de pobreza vinculada às desigualdades sociais, realmente, revela-se em enfoques na sobrevivência, necessidades básicas e privação relativa. Esses enfoques, em outras palavras, colocam significados centrais na pessoa do pobre. Tudo indica que, sobre essa ótica, a essência da pobreza é a desigualdade, pelo fato de os pobres estarem privados em relação à riqueza material. Sem dúvida, junto com as necessidades materiais estão outras insuficiências.

O enfoque da pobreza com ênfase na sobrevivência teve origem nos trabalhos de nutricionistas ingleses e predominou até a década de 1950. Essa concepção de pobreza, no limiar da sobrevivência, entendeu que a renda não cobria as necessidades físicas da pessoa, por conseguinte, causava deficiências nutricionais no organismo.

Tal observação vem ratificar, no Brasil, o expoente trabalho de Josué de Castro (1908-1973) que pela primeira vez deu à fome um atributo político. Em sua obra-prima Geografia da fome, dissecou a realidade alimentar no país e desarticulou a ideia de que a fome estava associada à raça. Fundamentou o fenômeno da fome na perspectiva social e não natural. Denunciou, em sua época, as mazelas das políticas públicas no combate ao flagelamento da seca e suas consequências para o povo nordestino: as causas estariam mais ligadas ao “arcabouço social” e menos “aos acidentes naturais, às condições ou bases físicas da região” (CASTRO, 1984, p. 260). Ele intuiu, enfim, que as explicações restritas ao campo biológico e aos fenômenos naturais não eram suficientes para dar a amplitude das causas e do complexo efeito da fome na população. A segunda noção de pobreza, com ênfase nas necessidades básicas, originou-se a partir de 1970, como resultado da internacionalização da economia e contou com a participação direta de ajudas estabelecidas de instituições financeiras internacionais. A

importância da concepção das necessidades básicas se deve ao princípio de favorecer aos indivíduos que eles desenvolvam a sua existência.

Estudos de Doyal e Gough (1994a, 1994b) apontam que são necessidades básicas universais aquelas baseadas na saúde e na autonomia. Assim, as necessidades humanas básicas estipulam o que as pessoas devem conseguir se querem evitar danos graves sofridos nesses termos. Para os referidos autores, saúde significa ter alimentação adequada e água potável, moradia adequada, ambiente de trabalho seguro, atenção sanitária apropriada, infância segura, entorno físico seguro, relações primárias significativas, seguridade física, segurança econômica e ensino adequado.

No que se refere à autonomia, Doya e Gough (1994a, p. 81) entendem quando a pessoa possui “a capacidade fazer escolhas informadas sobre o que fazer e como fazê- lo”. Nesse aspecto, a autonomia quando privada vulnerabiliza a pessoa de sua capacidade de agir. Como isso, atender às necessidades básicas humanas significa transpô-las de uma condição desumana de penúria para uma condição humana em que saúde e autonomia são respeitadas em vista da dignidade das pessoas. Pelo visto, sob essa condição, muitas pessoas são atingidas pela ausência de suprimento das necessidades básicas.

Por último, a partir de 1980, a pobreza passa a ser medida pela privação relativa, ou seja, sair da linha de pobreza significava satisfazer necessidades físicas mínimas, como alimentação adequada, certo nível de conforto e ter oportunidade de desenvolver papéis e comportamentos socialmente adequados. Esse enfoque teve como um dos principais fundadores Sen (2000a), para quem o fato de a pessoa ser pobre não acarreta somente privação material, embora esta privação iniba as capacidades das pessoas, mas a supressão de outras liberdades de realizar combinações alternativas e de ter estilos de vida diferentes.

Na verdade, desde que os ares revolucionários franceses, em final do século XVIII, estabeleceram as democracias republicanas, a igualdade como triunfo obstinado das nações passou a ser perseguição de um ideário da igualdade dos indivíduos, apesar e além das desigualdades sociais reais. Aqui, devemos ter o cuidado de, em nome dessa igualdade, não padronizar e equalizar as pessoas frente à realização das igualdades social, econômica, educacional etc. Arendt (2004, p. 261), nesse aspecto, tece crítica a respeito da ideia de igualdade em nossos tempos:

Quanto mais iguais as pessoas se tornam em todos os aspectos, e quanto mais a igualdade permeia toda a textura da sociedade, mais as

diferenças provocarão ressentimento, mais evidentes se tornarão aqueles que são visivelmente e por natureza diferentes dos outros.

Em termos políticos, Arendt acena para a condição, na diferença, de estarmos juntos e de estarmos uns com os outros. Ademais, o que nos distingue como ser humano é a nossa desigualdade e diferença. Para ser livre é preciso ser desigual. A liberdade, no campo político, é a faculdade de nos apresentar aos demais pelo nosso discurso e pela ação. A singularidade passa a ser um componente na pluralidade. Somos iguais pelo nascimento como um direito inato. Mas também é verdade que esse direito era desconhecido antes da Idade Moderna.

A percepção de alguns professores da escola urbana é a de que os alunos pobres, na condição de destinatários da escola pública, são considerados “carentes” não somente do ponto de vista material como também das relações afetivas. Para a professora Amália, por exemplo, tratam-se de alunos com

Carência afetiva, aquele que precisa conversar com alguém, de se expor. Assim como existem as carências financeira e de aprendizagem, os alunos não dão o devido valor ou os que dão talvez não tenham assistência devido ao acompanhamento dos pais. Falo de todo tipo de carência aqui na escola.

No mesmo sentido, Pedro, outro professor, é de opinião que a escola urbana atende majoritariamente aos alunos “carentes”. Para ele, os alunos carentes, não só são vistos pelo ângulo “financeiro ou monetário, mas os carentes de atenção, de apoio familiar, de educação, entre outras coisas”. Podemos inferir, com isso, que a pobreza tem seu aspecto multidimensional, que não só atende aos parâmetros econômicos.

De fato, vários indicadores modernos mapeiam a população pobre no intuito de traçar políticas públicas para combater a pobreza e dar assistência a essas pessoas. Seria importante identificar o que esses indicadores apontam e quais as intencionalidades dos organismos governamentais a respeito dos pobres. A luta contra a pobreza material deve ser sempre acompanhada pela luta contra a pobreza moral de outra parte da população.

Em estudo realizado sobre a obra de Georg Simmel (1858-1918), sociólogo alemão, autor da obra Les pauvres, sobre a sociologia da pobreza, Ivo (2008, p. 172) afirma que “a condição de ‘ser assistido’ constitui a marca identitária da condição do ‘pobre’”, o que leva a pessoa do pobre a pertencer a uma camada específica da sociedade inevitavelmente desvalorizada ou desprestigiada socialmente. Isso se deve ao fato de que, para Simmel (2010), do ponto de vista sociológico, o pobre é justificado pela dependência e assistência que deveria receber. Ou seja, o pobre só vai se identificar

com o grupo de pobres quando for assistido. Desse jeito, a identidade do ser pobre se constrói socialmente em relação à dependência e à assistência.

Nesse sentido, são significativas algumas falas de pais, tanto da escola urbana como da escola rural, em relação à dependência e assistência do governo. Caso explícito neste estudo é o Programa Bolsa Família, programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e em extrema pobreza no país. O Bolsa Família integra o “Plano Brasil Sem Miséria” (BRASIL, 2011b) e baseia-se na garantia de renda, inclusão produtiva e no acesso aos serviços públicos. Apesar desse programa político governamental de transferência de renda atender a 13 milhões de famílias pobres no país, recentes pesquisas demonstram quão irrelevante é esse programa para diminuir as desigualdades no Brasil (MARIZ, 2013).

Ao complementar esse mapeamento de característica da população pobre no Brasil, interessante o estudo de Rego e Pinzani (2013, p. 153) sobre as vozes subalternas das pessoas beneficiárias do Bolsa Família, ao encontrar características fenomenológicas da pobreza. Para esses autores, são elementos constitutivos a falta de condições básicas para uma vida saudável; acesso nulo ou irregular à renda derivada de um trabalho regular; trabalho infantil e abandono escolar; alta natalidade; acidentes; falta de crédito; invisibilidade e mudez; desigualdade interna às famílias; vergonha; cultura da resignação e, por fim, exclusão da cidadania.

Ainda, em relação a esse programa, algumas das mães entrevistadas ressaltaram o benefício como prêmio. É o caso de Marli, mãe de três alunos da escola rural, ao se referir ao cartão de material didático e que não recebeu o benefício:

É isso que eu tô falando, a gente recebeu uma doação da escola. Tenho o benefício do Bolsa Família e ainda tem o Bolsa Escola, onde a gente recebeu um cartão e que tem direito ao material escolar. Mas a gente não recebe, não. Parece que nem todas as escolas foram premiadas, tem que ser premiada, tem que estar na lista de premiados. E se teve eu não fui premiada.

Outro pai, Osvaldo, da zona rural, encontrou como ponto positivo na escola rural ter o transporte escolar para levar a sua filha. Segundo ele, é uma “assistência muito boa para todos”. Já uma mãe da escola urbana, Luísa, se referiu como satisfeita com a merenda escolar, pois a sua filha chega em casa com “o bucho cheio” e não precisa almoçar, já “economiza” uma refeição. Vale salientar que a referida mãe é beneficiária do Bolsa Família.

Sobre a assistência ao pobre pelo Estado provedor, vem uma crítica mais politizada por parte de uma colaboradora da escola rural. De acordo a professora Jaqueline, a assistência por parte dos governos locais ou federais, bem como a dependência dos pais em relação a essas políticas assistenciais, levam os pobres a uma alienação de sua condição de cidadão. Segundo a docente,

O que me dá pena desses pais de nossos alunos é que eles não se dão conta que são vítimas do próprio sistema. Ao mesmo tempo em que ganham do governo algum auxílio, o mesmo governo lhes rouba o que lhe são devidos. Quando tem reunião aqui na escola, eu esclareço para eles que isso não é presente do governo, na verdade, estão devolvendo, de outra forma, o que lhes roubaram.

A desvalorização do pobre pode se enraizar no estigma gerado pelo rótulo de “assistido”. Como sugere Kowarick (2003, p. 78), os processos de vulnerabilidade em que se encontram pessoas pobres no Brasil conduzem ao “processo de descidadanização”. As políticas públicas voltadas para o combate à pobreza têm a pessoa do pobre como destinatário e ela nem sempre gosta do tratamento de assistido ou de dependente do Estado provedor. Esse tipo de caridade estatal pode levar as pessoas a terem vergonha da situação como desemprego ou algum tipo de assistência do Estado. Um exemplo disso é o de Isa, mãe de um aluno da escola rural, que atesta: “Eu não quero entrar nessa história de família carente não, de depender de governo. Se Deus quiser, eu vou tentar com todos os meus esforços de conseguir um empreguinho”.

Sou de opinião que a mensuração delimita os pobres dentro de cada posição social, com enfoques estigmatizados relacionados às condições de vidas degradadas (GOFFMAN, 2008). Dessa forma, a pobreza, como um fenômeno social, pode ser definida como frustração de oportunidades. Frustração essa que impede o desenvolvimento da capacidade humana, fazendo com que o pobre, especificamente, se sinta negado como constituição de pessoa. Desse ponto de vista, Bajoit (2006, p. 101) garante que “o pobre de hoje, em nossas sociedades de informação e de consumo, vive sua pobreza segundo o modo de negação identitária: ele se sente negado (renegado, denegado)” (itálicos do autor).

No documento A escola e a opção pelos pobres (páginas 89-93)