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3. AS JUNTAS ADMINISTRATIVAS DA PROVÍNCIA DO CEARÁ

3.1. AS JUNTAS ADMINISTRATIVAS DOS COMERCIÁRIOS DE FORTALEZA E

As duas primeiras juntas (a primeira e a segunda junta dos comerciários) representaram diretamente o movimento político que destituiu o governador Rubim em 1821. Como dito, um grupo formado por comerciantes, padres, militares juristas e/ou funcionários da Junta da Fazenda Real e alfândega. Para além dos interesses mais imediatos e rixas pessoais ou familiares, era um governo que atendiam diretamente os objetivos políticos dos comerciantes de Fortaleza e Aracati. No entanto, pouco dialogava com as casas do sertão cearense.

Como supracitado, uma das pretensões destas juntas era, primeiro: dar governo aos senhoriatos do litoral cearense, no sentido de favorecer a atividade comerciária em que a maioria deles, ou membros de suas casas, estavam diretamente envolvidos, mas não só isto. Entre estas casas do litoral havia duas famílias mais influentes e rivais. Portanto, entre os comerciários, existia uma disputa de espaço de poder entre duas casas: os Castro e Silva, representados por Joaquim José Barbosa, o padre José de Castro e Silva e Manuel do Nascimento de Castro e Silva, contra a casa dos Moreiras Gomes, representados na pessoa do capitão-mor Antônio José Moreira Gomes; seu genro Antônio José Machado, o padre Antônio José Moreira, filho do capitão-mor; estes aliados com o ouvidor Adriano José Leal290. As desavenças

entre estas famílias datam ainda da época do governador Inácio de Sampaio (1812- 1820), por vários fatores, dentre estes, destacamos a própria ocupação de cada uma das casas: enquanto Manuel do Nascimento de Castro Silva era “Juiz inspetor do Algodão desta vila, recebedor dos dízimos e direitos do mesmo algodão e do subsídio da aguardente”291; Antônio José Moreira Gomes era comerciante, transportando

algodão do Ceará para Portugal e trazendo manufaturados europeus para comercializar em Fortaleza e região. Portanto, as duas famílias estavam em atribuições cujos interesses se chocavam, no sentido de um fiscalizar e cobrar

290 Como é facilmente observável nas tabelas acima, nem todos estes indivíduos compuseram propriamente em algum momento o governo das juntas em si, mas antes a influenciavam e, através de acordo, inseriam membros de suas casas nas mesmas.

291 Manuel Inácio de Sampaio. Nomeação de Escrivão [ilegível] que sucede fazer nos papéis apreendidos ao Doutor João Antônio Carvalho ao Padre Antônio José Moreira, Mariano Gomes da Silva, passando a Manuel do Nascimento de Castro Silva a José Alexandre de Amorim Garcia. In: CEARÁ. Registro de provisões de ofício de justiça, data 1817-1820, caixa: 26, livro: 83, fl. 17v. APEC.

impostos do outro. Além disto, em 1817, quando Moreira Gomes e seu filho Antônio José Moreira foram acusados de complô republicano na província, Nascimento foi nomeado por Inácio de Sampaio para confiscar e investigar as correspondências entre o padre Antônio José Moreira, Marciano Gomes da Silva e o então ouvidor João Antônio Rodrigues de Carvalho292. Investigação que resultou no exílio de Moreira

Gomes pai, seguido da nomeação de Antônio José de Castro e Silva para capitão- mor de Fortaleza no lugar de Moreira Gomes; além de processos contra o padre e a prisão do ouvidor Carvalho e Marciano Gomes da Silva. Assim, como podemos perceber, as razões para que estas duas famílias se odiassem eram bastante consistentes.

Em 1822, a junta de Porbem Barbosa instalou uma comissão para elaborar um “Projeto de Melhoramento da província do Ceará”, sendo membro da mesma o capitão-mor e comerciante Joaquim José Barbosa, o padre Antônio de Castro Silva, o capitão-mor e comerciante Lourenço da Costa Dourado e o comerciante Manoel Caitano de Gouveia. Basicamente, um projeto que, se não totalmente elaborado pelos Castro e Silva, o foi na maioria293 e que diz muito sobre como os mesmos pensavam

um governo da província.

O citado projeto era dividido em vários pontos, tanto para atender um anseio de melhoramento e urbanização de Fortaleza, como as demais vilas, com uma primeira atenção ao disciplinamento do sertão da província. A parte que tratava de Fortaleza tinha como maior destaque (ou pelo menos era apontado pela Comissão de Melhoramento como o mais importante) identificar nos arredores da vila um melhor lugar para a instalação de um novo presídio, pois no presídio que existia no centro da cidade “... [o] ar pútrido, que ordinariamente exalam semelhantes edifícios, e dos ataques que [os presos] fazem ao público, quando lhes não dão esmolas”294. É

possível que os dejetos da cadeia, acumulados em latrinas, as vezes por dias, fossem jogados pelos próprios presos no mar ou em terrenos baldios mais afastados, todavia, este intervalo entre uma descarga e outra, a julgar pela reclamação no projeto de melhoramentos da província, produzindo odores pútridos que incomodavam a elite

292 Idem.

293 A influência dos Castro e Silva sobre o projeto se faz perceber na rivalidade ali presente contra Antônio José Moreira Gomes, inimigo declarado da casa Castro.

294 Operação da Comissão encarregada dos melhoramentos na Província do Ceará. Suplemento ao nº 104 do Conciliador (Maranhão), 10/7/1822, HDBN.

local que trafegava no entorno da cadeia. Além de que o deslocamento dos desejos pelas ruas centrais da cidade, provavelmente também incomodava295. Outra

possibilidade, era a de que os excrementos simplesmente não fossem recolhidos, transformando a prisão eu atoleiro pútrido que incomodava a vizinhança296. Somando-

se a isto, pelo que nos relata as descrições elaboradas pelos Castro e Silva, os presos eram periodicamente soltos sob escolta para pegarem banho de sol, momento em que aproveitavam para esmolarem e, quando não atendidos pelos transeuntes, aqueles os insultavam297. Neste sentido, para os Castro, tirar o presídio do centro e construir

um novo próximo ao mar, livraria os senhoriatos daquela presença incômoda, era uma das maiores prioridades do novo governo. Portanto, o projeto dos Castro e Silva contemplam uma prática que se repetirá no transcorrer do século XIX: um desejo da elite local em se livrarem do convívio, ou da presença mais direta das populações que estes definiam como vadios e vagabundos.

Os Castro e Silva também chamava a atenção para a necessidade da construção de uma “nova casa de alfândega, e inspeção” no “lugar de embarque, e desembarque dos gêneros de exportação, e importação [...] fazendo-se um canal pelo Riacho Maceió, que naveguem lanchas”298 e agilizar a fiscalização dos gêneros de

exportação, especialmente o algodão. É bom que se diga que os cargos da alfândega desde o governo de Manuel Ignácio de Sampaio eram sucessivamente ocupados por membros da casa Castro, assim como estavam envolvidos no plantio e comercialização do algodão, na criação de boi e comercialização de carnes secas e peles. Portanto, regular estas atividades e agilizar a fiscalização era também atender

295 Sobre esta possibilidade, cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. in: História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das letras, 1997, p. 11- 93 e cf. SILVA, Alberto da Costa e. População e sociedade. In: Crise colonial e Independência 1808-

1830. Vol. 1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 35-73.

296 Sabemos que na vila do Crato, e possivelmente nas demais vilas, não havia o recolhimento dos excrementos. Manuel do Nascimento Castro e Silva. BRASIL. Annaes do Parlamento Brazileiro, Camara dos Snr. Deputados, segundo anno da primeira legislatura. Sessão de 1827, tomo quarto. Rio de Janiro: Typographia de Hyppolito José Pinto e Cia, 1875, sessão de 18 de agosto de 1827, p. 163. 297 Somente em 1845, através de um regulamento do Ministério da Justiça, os presos foram proibidos de saírem das prisões para esmolarem. “Artigo 38. Não será permitido a preso algum a sair para tirar esmolas.”. BRASIL. Regulamento para a Cadeia da Cidade de Aracati, na província do Ceará. In: Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça em 22 de setembro de 1845 = João Carneiro de Campo. Ministro da Justiça, livro 40, (1844 a 1846), Fundo: Ministérios, APEC. Na descrição dos Castro e Silva, como posto acima, os presos “atacavam” quem se recusasse a dar esmolas, de onde supomos tratar- se de ataques verbais, pois, ainda segundo a mesma fonte, as saídas dos presos da cadeia davam-se somente mediante escolta. Operação da Comissão encarregada dos melhoramentos na Província do Ceará. Doc. Cit.

diretamente os interesses econômicos de sua casa, mas não só isto. O projeto também sugeria, como medida de aformoseamento da capital, alinhar as ruas e casa. Mas por outro lado, destacava como não prioritários a construção de um teatro e a pavimentação das ruas centrais, que haviam sido solicitados pela junta administrativa.

Além das questões de aformoseamento, higienização da capital, o projeto apontava, principalmente, para a necessidade de se construir estradas interligando a capital às vilas próximas do interior, destacando a importância destas para o desenvolvimento do comércio. Mas, o que realmente queremos destacar deste projeto de 1821, é o olhar que o mesmo lançou sobre o sertão cearense. Para além das sugestões estruturais da capital, os Castros e Silva, juntamente com os demais comerciários citados, lançavam um ataque aos “vadios”299 e as populações sem

ocupação da província, sugerindo a criação de uma polícia provincial para, literalmente, combatê-los. Além de uma política de esvaziamento das atribuições dos capitães-mores de ordenança.

Uma das coisas, que vossas excelências não deixaram de ter vistas, é uma

rigorosa polícia em toda esta província, a qual sendo administrada restritamente por Cidadãos probos, e verdadeiros Constitucionais, será capaz

de destruir a inação [não ação] e a liberdade licenciosa, que graça no Brasil [...] será preciso, que primeiramente ordenem a todos os Comandantes, e Diretores de toda a província, que organizem um mapa de todos os habitantes de seus distritos [...] Conseguindo os ditos mapas, vossa excelência em cada vila constituirão uma junta, [...] que todos os meses deverá dar parte à mesma Junta de todos os acontecimentos, e progressos, que cada um dos cabeças de fogos tenham feito nas suas plantações, empregos, ou ofícios, segundo as suas possessões, filhos, escravos, e fâmulos que tiverem de nove anos para cima.

Aqueles cabeças de fogos, e proprietários de terras, que não cumprirem com os seus deveres, segundo as participações dos Agentes dos distritos, as Juntas das Vilas respectivas os mandarão vir a sua presença, e com palavras persuasivas lhes farão ver a sua inação, ou libertinagem, e o prejuízo que causam à sua existência, e de suas famílias, ao público, e à Nação, e que se

não corrigirem-se para o futuro, os enviarão ao governo para os castigar rigorosamente fazendo igualmente ver aos senhorios de terras, que não

devem conservar nelas rendeiros, ou agregados fugitivos, vadios, e facinorosos, impondo-lhes as mesmas responsabilidades; e pelo contrário os

persuadirão para que facilitem o arrendamento de terras, que não poderem cultivar, àqueles cidadãos, que dão provas de bons Compatriotas; e aos

299“o que não tem ofício, emprego, nem modo de vida, vagabundo, ocioso.” SILVA , Antonio de Moraes. Diccionário da Lingua Portugueza. Reformado e acrescentado. Tomo Segundo (L=Z). Lisboa: officina

de Simão Thaddeo Ferreira, M.DCC.LXXXIX. Disponíveis em www.uspbrasiliana.com.br, acesso em novembro de 2010 P. 505. Ou “Quem não tem amo ou senhor com quem viva” aquele “Que não tem trato honesto, negocio, mister, emprego ou modo de vida”. VIEIRA, Francisco Domingos. Grande

Diccionario portuguez ou Thesouro da língua portuguesa. Quarto volume. Porto: Editores, e Charron e

vadios, e ociosos, das vilas e povoações, os obrigarão a aprenderem ofícios, ou a trabalharem.300

Se recuarmos um pouco na história das práticas administrativas da província do Ceará, percebe-se que o projeto dos Castro e Silva para o sertão era bem próximo da política ilustrada dos últimos governadores de província. Como já posto acima, durante o governo de Manuel Inácio de Sampaio301, que antecedeu o

governador Rubim, Manuel de Nascimento de Castro e Silva foi nomeado inspetor do algodão da junta da Fazenda do Ceará em 1814, administrador dos direitos de exportação em 1818 e secretário interino do governo em 1820302, enquanto seu pai

José de Castro e Silva (segundo) foi nomeado capitão-mor da vila de Fortaleza em 1818303. Sendo assim, muito provavelmente os Castro e Silva participavam ativamente

da execução da política do governador Sampaio, que, segundo Peixoto, já tinha este caráter civilizatório e centralizador304. De tal forma que muito da proposta disciplinar

dos Castro para o sertão, estava referendada na experiência administrativa adquirida durante o governo Sampaio na província, que inclusive, também tentou atacar o poder dos capitães-mores de ordenanças e transformar as populações pobres locais em mão-de-obra.

Todavia, uma ação civilizatória com esta abrangência provincial, na verdade, só pôde ser praticada com algum êxito, anos depois, mais precisamente no governo de José Martiniano de Alencar entre 1835 a1837. Na ocasião, Alencar e os Castro e Silva estabeleceram uma aliança que resultou na formação do partido Chimango cearense, e na intensificação da presença das instituições estatais no sertão da província. Mas em 1821 também já se trata de um projeto civilizador para o sertão, que tentava disciplinar as relações de trabalho, a produção agrícola e o comércio, dando combate aos “vadios” e os forçando a aprenderem ofícios e, principalmente, pelo menos em forma de intenção política, buscava acabar com as “liberdades licenciosas”, representadas nas significativas autonomias administrativas das vilas do interior. Medida que se pretendia executar, em grande parte, através da

300 Idem, grifo nosso.

301 Cf. PEIXOTO, João Paulo. Op. Cit.

302 Manuel Inácio de Sampaio. Portaria que autoriza a Manuel do Nascimento Castro Silva para tomar posse do lugar de Secretário do governo. In: CEARÁ. Registro de provisões de ofício de justiça. Cit. fl. 79.

303 STUDART, Guilherme. A Família Castro. Revista do Instituto do Ceará, Tomo LXXII, p. 108-219, 1958.

organização da polícia e ligando efetivamente a administração das vilas ao governo da província. Neste sentido, também era um ataque ao poder personalista dos senhoriatos das vilas, principalmente no que estava representado simbolicamente nos capitães-mores de ordenanças:

...para se plantar a arvore da justa liberdade, isenta de toda a ruína, é preciso, que se derroguem todas as autoridades constituídas pelo despotismo, e se constituam as autoridades legítimas, que suplantado o mesmo despotismo, e arbitrariedades, façam florescer a santa liberdade da nossa regeneração política, portanto, conservando aqueles antigos capitães-mores na

administração da polícia, será desde já começarmos a ouvir o trovão do despotismo, e o clamor dos povos.305

Os capitães-mores de ordenanças eram mais diretamente a quem se voltavam os ataques dos Castro e Silva por serem os símbolos maiores dos potentados sertanejos. O interessante era que muitos membros da família Castro exerceram ou exerciam naquela data as funções de capitão-mor. A exemplo de José Joaquim Barbosa, então capitão-mor de Sobral e José de Castro e Silva segundo, capitão-mor de Fortaleza em 1818. Mas o ataque dos Castro e Silva aos capitães- mores tinha interesses familiares bem diretos. Eles, os Castro, dirigiam-se principalmente a Antônio José Moreira Gomes, capitão-mor de Fortaleza e inimigo declarado de sua casa, por disputarem os mesmos espaços de mando e comércio. Então, ao mesmo tempo em que o projeto da chamada “Comissão encarregada dos melhoramentos na província do Ceará”, assumia um tom civilizatório e centralizador, próximo ao que defenderam antes os últimos capitães-mores governadores (educados sob a orientação ilustrada e enxergando o sertão como bárbaro ou indisciplinado), também representava uma disputa de espaço de mando entre as casas Moreira Gomes e Castro.

A influência dos Moreira Gomes sobre as duas primeiras juntas era marcante. Foi o padre Antônio José Moreira, filho do capitão-mor Antônio José Moreira Gomes, juntamente com seu genro José Antônio Machado, o ouvidor Adriano José Leal e o comandante geral Francisco Xavier Torres, como já posto acima, que organizaram o levante contra o governo Rubim, resultando na instalação da Junta administrativa da província do Ceará.

305 Idem.

Ainda sobre as rivalidades entre aquelas casas, diante do “projeto de melhoramento da província” dos Castro e Silva, o capitão-mor Antônio José Moreira Gomes apresentou à Junta de Porbem Barbosa uma segunda proposta para se contrapor ao de seus inimigos, os Castros. Este focava, quase que exclusivamente, no combate e imposição do trabalho aos “vadios” e “vagabundos”, destacando a necessidade de desterro destes da vila de Fortaleza para as terras devolutas do interior da província.

Querendo esta Junta que se ocupem e utilizem os muitos homens vadios

deste distrito [...] e desejando eficazmente promover a cultura das terras

produtivas, que se acham abandonadas [...] fazer povoar as serras próprias

para plantações, e outros lugares, por essa casta de gente obrigando-os a irem residir e plantar no terreno, que vossa senhoria lhes assinar, com obrigação de pagarem o foro que for do estilo se as terras pertencerem à Câmara [...] Aquele que estando nas referidas circunstâncias, resistir às suas

ordens, será logo preso, e entregue por vossa senhoria às justiças com parte oficial para ser sumariado como vadio, na forma da lei306

Impressiona a proximidade deste projeto de Moreira Gomes com a reivindicação dos vereadores de Fortaleza em 1803 ao rei, que por sinal, o mesmo Moreira Gomes participou. Na ocasião, a câmara de Fortaleza cobrava o direito dos fazendeiros utilizarem a mão-de-obra indígena dos aldeamentos, tanto como forma de retirarem os nativos do “ócio, roubos e vícios a que estavam acostumados”, como a promoverem a agricultura que necessitava de braços para o seu desenvolvimento:

Ainda mais suplicamos a V. A. R. [Vossa Alteza Real], que atendendo a grande necessidade, que a agricultura tem de braços, por não haver aqui, até hoje, importação de escravaturas dos domínios de África, se sirva V. A. R. ordenar aos governadores desta capitania [que] façam observar uma boa direção sobre os índios dela seguindo o seu diretório, e que sobre eles se observa um tal regimento, e uma muito ativa disciplina, polícia, afim de se evitarem os roubos, e danos que eles nos causam pela relaxação em que se acham, própria de semelhante Nação, por serem totalmente faltos de sentimentos, de temor de Deus, de religião, e de humanidade, de sorte que não há entre eles um só, que resulte utilidade a si, e ao público, por serem só propensos ao ócio, e aos vícios; e ultimamente, que os mencionados índios, a benefício da mesma agricultura, sejam semanalmente, e com regularidade repartidos com os lavradores307

306 Antônio José Moreira Gomes. Idem.

307 CONSELHO ULTRAMARINO. Carta da Câmara da vila de Fortaleza ao [príncipe regente D. João] sobre as dificuldades atravessadas pela capitania, devido à seca de 1791-1793, o que acabou por prejudicar a agricultura e as rendas reais, e sobre as medidas tomadas pelo governador Bernardo Manuel de Vasconcelos acerca da derrubada das matas. Anexo: 2ª via. Fortaleza, 28 de maio de 1803. Caixa 17, doc. n. 992, AHU.

Segundo João Paulo Peixoto, durante o período joanino havia uma “intensa” tentativa de transformar o índio em mão-de-obra no Ceará308. Pelo exposto,

acreditamos que este projeto, com as modificações devidas, persistiu também pelo menos até meados da década de 1830, haja vista José de Castro Silva ter mencionado em 1826 a necessidade de “civilizar” os índios eliminando os aldeamentos, para só assim ficarem “úteis a si, e à sociedade, principalmente caindo sobre eles o rigor da polícia, que tanto temem, e respeitam”309. Muito embora, como o próprio Peixoto

destaca, este disciplinamento era somado à uma política de apagamento da identidade indígena, associada agora a expressões genéricas e chulas como vadios e vagabundos ou a substituição do termo índio por caboclo, para se referir a estas populações nativas. De tal forma que, a julgar pelo ofício da câmara de Fortaleza de 1803 e as declarações de José de Castro e Silva em 1826, para os Moreira Gomes, os Castro e os comerciários da capital, a civilização passava não apenas pela imposição do trabalho, mas principalmente por uma submissão forçada das populações pobres, majoritariamente formada por índios, aos senhores de terra. As resistências a esta política disciplinadora eram punidas com a cadeia, recrutamentos